Desde que tive conhecimento da existência deste tipo de campanhas que sempre fui uma grande apoiante do
Princess Free Zone,
Pinkstinks, e afins. Tão apoiante quanto uma pessoa sem filhos e sem ideias de os ter no curto-prazo possa ser, pelo menos. Parece-me muito óbvio que a pressão cada vez mais intensa de empurrar raparigas para tules, princesas, purpurinas, maquilhagem, tiaras e cor-de-rosas não só é redutora de interesses como potencialmente nociva para a formação da pessoa que serão no futuro; o mundo é muito mais vasto e muito mais interessante do que as princesas da Disney o pintam. Ultimamente, e especialmente depois de ter lido o
Raising My Rainbow, tenho tido algumas dúvidas. Acho que este tipo de campanhas dá o tiro ao lado.
They miss the point, se quisermos.
O
Raising My Rainbow - Adventures in Raising a Fabulous, Gender Creative Son conta a história e as reflexões de uma mãe que tem um filho
gender creative, como ela o apelida. Logo aos dois anos a criança demonstrou um fascínio tão grande por Barbies, bonecas, purpurinas, princesas e afins que só se intensificou com o tempo, e que os pais acabaram por aceitar e aprender a lidar, não com a criança propriamente dita, mas com as reações de todas as outras pessoas. As festas de aniversário temáticas, sempre uma escolha entre fazer o filho feliz com o tema princesas mas arriscar o gozo ou mesmo insultos das outras crianças ou pais, ou fazer festa com tema neutro (leia-se: masculino) como
il faut mas transmitir ao filho que os gostos dele são errados, máscaras de Halloween idem, brinquedos levados para a escola, roupa preferida da criança, etc. Uma necessidade constante de policiamento dos gostos de uma criança ou uma necessidade constante de aguentar a reprovação social de quem não obedece à norma.
Agora imaginem se tivesse sido o contrário: se lhe tivesse calhado uma filha gender creative. Mal daria uma história. Uma rapariga ter interesses 'masculinos' mal é digno de nota. Quanto muito, é motivo de orgulho. Uma rapariga gostar de futebol, de subir às árvores, de brincar com carrinhos, negar Barbies e princesas é uma rapariga empoderada, muito à frente, diferente das outras raparigas*. E a autora do livro está consciente deste facto durante todo o discurso, referindo-o explicitamente várias vezes:
'If a little girl had been pretending to be a prince, people would have applauded her in their minds for being empowered. How come when girls play with gender it's a sign of strength and when boys play with gender it's a sign of weakness? I could slap whoever made our society that way.'
Portanto, campanhas que pretendam incentivar raparigas a fugir às princesas parecem-me um bocado redundantes: a penalidade social por fazê-lo não é elevada. Uma rapariga gostar de brinquedos/atividades de rapaz é muito mais aceitável, até aplaudido, do que rapazes brincarem com coisas de rapariga.
A questão é porquê. Porquê? É porque há realmente uma diferença qualitativa nos dois tipos de brinquedos/brincadeiras (tipo, os brinquedos de menina são bastante menos interessantes, só que ver com tomar conta de bebés, que envolvem bonecas, roupas e maquilhagem, etc, enquanto os brinquedos de rapaz estimulam o intelecto, a criatividade, etc)? Isto para mim - e acho que para todos os que apoiam as campanhas que são especificamente dirigidas a raparigas como a Princess Free Zone e a Pinkstinks (diferentes da Let Toys Be Toys ou da 'polémica' - lol - do McDonald's) - estava dado como certo, certinho. As princesas da Disney dão um mau exemplo por serem tão passivas, e terem como único propósito na vida arranjar um príncipe rico e bonito, e ronhonhó, e jogar à bola é que é saudável e estimula a coordenação motora e o espírito de equipa, e os brinquedos mais científicos e os legos e assim são cada vez mais marketizados é para os rapazes e esses é que são brinquedos interessantes.
Entretanto existe outra perspetiva que me tem permeado o pensamento sobre os assuntos de género e de igualdade, do que é realmente o feminismo e o patriarcado, e que me fez ver isto de outra forma: e se é antes porque simplesmente valorizamos as atividades masculinas de forma muito mais elevada do que valorizamos as atividades femininas, e portanto qualquer coisa tradicionalmente associada aos homens é desejável, enquanto as atividades associadas às mulheres são ridicularizadas como superficiais? Quantas mulheres têm orgulho em afirmar 'eu não sou como as outras mulheres!', ou 'eu nem gosto de [inserir atividade/produto de gaja ou que grande parte das mulheres gosta], gosto é de [cerveja/futebol/piadas sexistas/qualquer outra coisa geralmente identificada como masculina]'? Essa é tipicamente considerada uma 'gaja fixe', especialmente nos filmes mais mauzinhos. Mas tenho reparado muito no reflexo inconsciente de tantas mulheres - eu incluída - de constantemente se distanciarem o mais possível dos gostos estereotipados de mulher para serem vistas numa melhor luz. Ora isto é nada mais nada menos que o reflexo muito humano de querer pertencer ao clube dos fixes, de almoçar com os importantes, de estar onde se é valorizado. O que me faz questionar seriamente se o ódio às princesas e ao cor-de-rosa não é mal direcionado.
Porque, vejamos, se é a primeira hipótese - se é realmente uma questão de os brinquedos/atividades femininas serem qualitativamente piores, então não é desejável que ninguém brinque com princesas/bonecas/cozinhas. Nesse caso essas campanhas estão a ir na direção certa e os pais que proíbem os seus filhos rapazes de brincar com brinquedos de gaja estiveram sempres corretos. Só precisamos agora é de elevar as raparigas ao pódio dos brinquedos masculinos e ignorar o cor-de-rosa e as purpurinas para todo o sempre. Mas se é a segunda hipótese - se o problema é o problema do patriarcado em poucas palavras: um problema de hierarquia de géneros, e não de desigualdade - então já temos um problema muito mais colossal. Neste caso, pode ser que campanhas como o Pinkstinks estejam a reforçar a vergonha nas atividades femininas, em vez de empoderar raparigas.
Pode ser uma mistura das duas coisas. Legos e brinquedos mais científicos são muitas vezes direcionados a rapazes, quando antes não era assim, e realmente a Disney com os seus filmes mais antigos de princesas era do mais clichezinho que havia; mas deixem que vos diga que quando eu brincava às Barbies com as minhas primas nós construíamos cidades inteiras com todos os serviços e profissões para manter uma cidade a correr, e representávamos verdadeiras histórias de vida completas ao longo de várias gerações que só podia contribuir para o estímulo da criatividade e do pensamento complexo! E não somos únicas nisto, garanto.
E agora uma reflexão em jeito de provocação: mesmo que os brinquedos das raparigas conduzam a papéis de cuidados e os de rapazes a papéis científicos, so what? Eu sei qual é o problema: a nossa sociedade valoriza muito mais uma carreira científica do que as tarefas rotineiras de criar uma criança, portanto brinquedos que promovam estes papéis de forma estereotipada são indesejáveis. Mas porque é que continuamos a dar mais valor a uma carreira científica do que às tarefas de criação de um ser humano?**
*Se há elogio mais pernicioso, que toda a feminista deveria desprezar, é precisamente quando lhe dizem 'tu não és como as outras raparigas'. Evitar afirmar 'eu não sou como as outras raparigas' com sentimento de superioridade pode ser difícil mas é essencial.
** Pista: será porque ciência e fazer coisas no mundo em geral seja tradicionalmente coisa de homens e criar pessoas seja coisa de mulher e portanto desinteressante/subvalorizado? Who Cooked Adam Smith's Dinner é um bom começo.
S.