quarta-feira, 29 de junho de 2016

Escócia na UE

No meio do clusterfuck que está a ser o Reino Unido nestes dias imediatamente a seguir ao Leave ter ganho o referendo, os meus olhos estão postos em Edimburgo e na forma como a Escócia está a lidar com uma decisão que não foi a sua. A minha admiração vai para a maneira como a Nicola Sturgeon está a lidar com a situação. Pá, que classe, que sobriedade, que praticalidade, que contraste com os mentirosos, auto-calculistas mas sem qualquer plano à vista para o país, retratores dos machos alfa em Westminster.

Logo na manhã em que os resultados se tornaram oficiais, a First Minister da Escócia fez um discurso impecável e bastante sóbrio considerando as circunstâncias onde congratulou a Escócia pelo resultado expressivo a favor do Remain, reiterou que os imigrantes europeus continuavam a ser benvindos e agradeceu a sua contribuição ao país ('Scotland is your home'), estabeleceu os passos seguintes para explorar as possibilidades de manter a Escócia na UE e respeitar o resultado do referendo, e ainda agradeceu ao Cameron o seu trabalho como Primeiro-Ministro do UK durante 6 anos ('leadership is hard'), desejando-lhe sucesso para o seu futuro.


A sério, se quiserem restaurar fé na competência de líderes políticos, perdei dez minutos do vosso dia a ouvir a senhora. Bónus: o sotaque encantador escocês com que ela debita tudo isto.

Desde então tem cumprido sem falhas o que se comprometeu fazer: reuniu-se com o resto do governo escocês para estabelecerem uma posição comum e pediu ontem ao parlamento escocês um mandato para negociar a posição da Escócia na Europa (em relação a Westminster, Bruxelas e com os outros estados membros), que obteve com aprovação de 92 contra 0 deputados (fora os deputados conservadores que se abstiveram). O seu discurso no parlamento escocês é incrível mais uma vez pela serenidade com que descreve a situação da Escócia, a clareza com que explica o que pretende fazer a seguir, e a forma como lida com a questão da independência, que não é de todo a questão central para ela (duplamente incrível vindo de uma independentista ferrenha do Scottish National Party). Já esteve em conversações com o mayor de Londres, Sadiq Khan (outro exemplar de dignidade e tolerância neste lodaçal em que se tornou a política britânica), com o governador de Gibraltar e com o líder da Irlanda do Norte para encontrar pontos em comum sobre a permanência destas regiões na UE, e iniciou agora uma ronda de reuniões com os líderes dos grupos parlamentares em Bruxelas para discutir opções para a Escócia (está neste momento com o Guy Verhofstadt, líder dos liberais e democratas e o MEP que disse ontem no Parlamento Europeu que já não faltava muito para se acabar com o maior desperdício do orçamento europeu: o salário do Farage). 



A posição de apoio aos imigrantes europeus do mayor londrino, em contraste com o silêncio vergonhoso do governo britânico e dos líderes do Brexit na condenação aos ataques xenófobos e racistas após o referendo. 



Acho que ele estava há muito tempo à espera de poder dizer isto, haha.


Penso que esta é uma posição partilhada pela grande maioria dos deputados escoceses - basta olhar para a aprovação 92-0 do curso de ações a tomar pela Sturgeon, para as intervenções dos deputados escoceses em Westminster ontem durante as questões ao Primeiro-Ministro e dos MEPs escoceses em Bruxelas ontem na primeira reunião do Parlamento Europeu depois do referendo ('I beg you, do not let Scotland down!' Alyn Smith MEP), e por uma maioria considerável da população escocesa. 


Uma ovação de pé no Parlamento Europeu após o eurodeputado escocês pedir aos colegas europeus para não deixarem mal a Escócia.


Discurso do deputado escocês Angus Robertson, líder da bancada do SNP em Westminster, afirmando que a Escócia é um país europeu e que arrancá-la da UE será uma decisão completamente inaceitável do ponto de vista democrático.

Aliás, a Sturgeon no seu discurso ao parlamento escocês refere-se ainda aos mesmo assim relevantes 38% eleitores que votaram para sair da UE e afirma que não pretende ser surda às preocupações deles mas que precisa da união de todos os quadrantes para conseguir uma boa situação para a Escócia dentro da Europa. A grande diferença aqui é que o Remain ganhou em todos os círculos eleitorais da Escócia, pelo que não há a divisão territorial entre apoiantes do Leave e do Remain que aconteceu no Reino Unido e que está a dividir o país. Neste sentido há um inequívoco e muito claro mandato democrático do eleitorado para que a Escócia se mantenha na União Europeia. Significa isto necessariamente independência do UK? 



Não. E muito se tem falado do precedente da Gronelândia, que em 1985 abandonou a União Europeia sem que o país a que pertence, a Dinamarca, o tenha feito. E do exemplo das Ilhas Faroé, um arquipélago que pertence à Dinamarca mas que não pertence à União Europeia (lembro-me a propósito disto uma colega de mestrado faroense que, apesar de ser dinamarquesa, por viver nas Ilhas Faroé, ter tido que pagar as propinas relativas aos estudantes internacionais, muito superior ao que os estudantes britânicos e europeus pagam). Agora, é certo que a importância cultural, populacional e económica da Escócia é muito superior a estes dois territórios e a verdade é que a situação da Escócia seria o inverso destes dois exemplos: uma parte de um país continuar a pertencer à UE quando o país em si mesmo a abandona. Mas o ponto aqui é que a independência não é a única nem sequer inevitável situação para a Escócia permanecer na UE já que existem estas exceções em que partes de um país pertencem e não pertencem à UE. E é por isso mesmo que o discurso da Sturgeon não revolve à volta da independência mas sim de explorar todas as opções para respeitar o desejo dos escoceses de se manterem na Europa ('every option must be on the table'). Os media têm-se focado muito na possibilidade de um segundo referendo sobre a independência escocesa e alarmaram que os papéis já tinha sido metidos para organizá-lo mas acho que estão a subestimar a compreensão da Primeira-Ministra escocesa sobre os obstáculos em convencer o eleitorado - uma segunda vez - a sair do Reino Unido, e a sobrestimar a vontade política dela de se meter em mais um uns meros 2 ou 3 anos depois do referendo falhado. Vontade pessoal, acredito muito; política, assim-assim.

Porque, vejamos. As circunstâncias em relação ao referendo de 2014 alteraram-se significativamente, fundamentalmente, aliás. Na altura o Better Together explorou - e com razão - os obstáculos que a Escócia teria em voltar a pertencer à União Europeia se saísse do Reino Unido: teria com grande probabilidade que se candidatar como qualquer outro país para entrar na União, o que demoraria anos e a incerteza e caos que o entretanto causaria. A saída da UE foi uma preocupação grande que levou uma parte considerável dos eleitores a preferirem o status quo. Ora, isto é precisamente o contrário do que se passa neste momento. A Escócia está perante a realidade de que vai ser tirada da UE contra a sua vontade precisamente por ser parte do Reino Unido e portanto este argumento passa não só a ser nulo como a virar-se ao contrário: a independência da Escócia agora abriria-lhe caminho a uma pertença da UE, como é o desejo de 62% dos eleitores.

Mas o problema aqui é que parece que, a haver um segundo referendo de independência, os escoceses se deparariam com a seguinte escolha fundamental: a qual das uniões quero pertencer, Reino Unido ou União Europeia? E não estou nada convencida de que mais de metade da população escolhesse a UE. Isto porque não importa quão europeístas sejam os escoceses, quão 'outward-looking' ou 'cosmopolitan' e 'progressive' (palavras da Nicola Sturgeon no discurso de 24 junho), os ingleses, irlandeses do norte e galeses serão sempre 'our closest neighbours and best friends' (também palavras da Sturgeon, no discurso ao parlamento escocês de 28 junho, se não me engano). As relações culturais, familiares e sociais são muito mais estreitas com o resto do UK do que com o resto da Europa. Para não falar das económicas, é claro. A vasta maioria das transações económicas da Escócia faz-se pela fronteira - inexistente - com a Inglaterra. Em 2014, o grande medo da independência seria o de se erguer uma fronteira muito real, muito custosa, entre a Escócia e o resto do Reino Unido (por virtude da Escócia deixar de pertencer à UE e portanto ao Mercado Único europeu). Vão eles agora querer erguer tal fronteira com a Inglaterra como preço para o acesso a esse mesmo Mercado Único, considerando que a enorme fatia de comércio é feita é precisamente com os vizinhos do sul? Não acredito.

Isto vai depender muito do tipo de acordo que o Reino Unido conseguir com a UE. A maior das probabilidades é manter-se o acesso ao Mercado Único e a consequente liberdade de circulação de bens, serviços e pessoas que é condição sine qua non do mesmo (e aqui é que está a parte mais imbecil e masoquista do Leave: o Reino Unido continuará a aceder ao Mercado Único porque o contrário disso é suicídio económico, continuará portanto obrigado a respeitar a liberdade de circulação não só de bens mas também de pessoas, continuará a ter que pagar contribuições para o orçamento comunitário para aceder a esse mercado - vide o caso da Suíça - e continuará a ter que obedecer às decisões do Tribunal Europeu de Justiça, mas terá perdido a sua voz na produção das regras que regem tudo isto. Ninguém, - e isto é a tragédia - ninguém, vai portanto ficar feliz com a saída da UE: nem os que votaram a favor dela para controlar a imigração, acabar com as contribuições para a UE e para recuperar soberania, nem quem votou para sair porque enfraquecerá a posição do UK na Europa e no mundo). 





Neste cenário a independência da Escócia não ditaria o erigir de uma fronteira com a Inglaterra porque ambos pertenceriam ao Mercado Único. Mas então para que quereria a Escócia independência? Apenas se eles estiverem realmente interessados em ter uma voz na produção das leis europeias que terão que obedecer, ao contrário do que parece ser a posição do resto do UK. Valerá essa voz à mesa europeia a secessão do Reino Unido? Mais uma vez, não acredito. Mesmo que as sondagens a favor da independência sejam agora de 60% dos eleitores.

Mas para que a Escócia mantenha todas as opções em aberto para se manter na UE, é fundamental que um referendo sobre a independência, a acontecer, seja antes de o Reino Unido sair formalmente da UE. Porque assim que o artigo 50 for invocado pelo governo britânico, as negociações começam entre a UE e o país cessante e têm a duração máxima de dois anos (extensível se acordado unanimemente por todos os 27 estados membros). A partir daí os tratados deixam de se aplicar ao Reino Unido, i.e. o Reino Unido é corrido da UE sem cerimónias. A Escócia seria arrastada para fora da UE como consequência e, mesmo que conseguisse independência depois, teria que voltar a candidatar-se à adesão da UE. Há portanto uma janela temporal muito apertada para a Sturgeon explorar as opções para a Escócia se manter na Europa, incluíndo a eventual organização de um referendo para a independência. Foi por isso mesmo que já começaram os procedimentos legais para a realização deste referendo, não porque ele seja inevitável, mas para que, em se querendo (como último recurso, acrescentaria eu), ele se mantenha uma possibilidade dentro desses 2 anos de negociações que o UK tem. Acho que ela tem tempo porque nem o Cameron, que sacudiu as mãos da responsabilidade das consequências deste referendo, nem os conservadores a favor do Brexit e potenciais Primeiros-Ministros, como o Boris Johnson ou o Michael Gove, estão com pressa em invocar o artigo 50. Sabem que quem o fizer vai ser o culpado pelas consequências merdosas do voto Leave (e, oh, vide acima com a questão do Mercado Único, como elas vão ser merdosas para quem quis sair), principalmente por quem votou Leave. 



O problema com a outra opção, i.e. o Reino Unido fora da UE com a Escócia a manter-se mas sem a independência, é como é que isto funcionaria em termos de representação. O que é que significa a Escócia manter-se na UE? Seria ter assento à mesa do Conselho Europeu e do Conselho de Ministros, eurodeputados escoceses eleitos como os outros estados membros e possivelmente um comissário europeu na Comissão Europeia? Mas a Escócia não é um estado, como poderia sentar-se à mesa com os outros estados membros? A Escócia é parte do Reino Unido, se o Reino Unido sai não é possível ela manter-se com voz em pé de igualdade com os outros estados membros; ela é apenas uma região. A não ser que, a sair da UE, saíssem apenas Inglaterra e Gales, e o resto do Reino Unido (Escócia e Irlanda do Norte) se mantivesse; assim Inglaterra e Gales teriam o estatuto da Gronelândia, enquanto o Reino Unido se manteria na UE formalmente (mas com a grande maioria da população, território e poderio económico fora dela). Mas para isto era preciso que os quatro países britânicos tivessem um estatuto constitucional igual dentro do Reino Unido, o que não é de todo o caso (Inglaterra não tem um parlamento ou qualquer assembleia representativa, como é o caso da Escócia ou de Gales, muito porque Westminster aka o governo britânico aka o Reino Unido é quase sinónimo dos interesses ingleses, e esta região historicamente sempre dominou as regiões vizinhas. O Reino Unido está muito longe de ser um estado federal e a devolução de poderes às regiões é uma coisa extremamente recente, com não mais de 20 anos). Não é pois possível que a Escócia e eventualmente a Irlanda do Norte se continuem a sentar à mesa europeia em nome do Reino Unido (sem a presença da Inglaterra).

Que imbróglio do caraças. Não invejo o papel da Sturgeon porque reconheço a complexidade da situação e as águas desconhecidas em que terá que navegar se quiser dar consequência à decisão do eleitorado de continuar na UE. Tudo consequências de uma decisão que não foi a dela, nem dos seus eleitores. Acho mesmo que esta é uma batalha mais dura e difícil do que a de lutar pela independência há dois anos atrás, que se revelou infrutífera. Talvez a melhor opção será mesmo a de não fazer nada, esperar pelo novo acordo entre a UE e o Reino Unido que, muito provavelmente como disse em cima, será uma pertença ao Mercado Único e manutenção da liberdade de circulação, portanto sem nenhuma consequência prática para as empresas ou para as pessoas. Essa é a negociação mais lógica e provável porque a que melhor serve os interesses britânicos e europeus. Dito isto, não sei não, porque a imbecilidade, irracionalidade e o masoquismo parecem estar na ordem do dia. Como diz o outro, tudo é impossível até ser feito. Por isso a Sturgeon sabe melhor do que esperar quietinha que o governo britânico negoceie um bom acordo com a UE e deixar nas mãos destes líderes Brexiteers sem noção o futuro da Escócia. Já começou as conversas em Bruxelas, portanto.




S.  


P.S. A questão da Escócia é interessante mas ainda ninguém discutiu a sério a questão da Irlanda do Norte (exceção aqui), bastante mais sensível e que também já regista movimentações (o líder da Irlanda do Norte já esteve em conversações com o líder da República da Irlanda, o vice-presidente do partido Sinn Féin, espécie de braço político do IRA, e reclamou a necessidade de se fazer um referendo para a união das duas Irlandas). Não esquecer que o Good Friday Agreement de 1998, que trouxe a paz àquela região, resta na premissa de que não existiria nenhuma fronteira entre as duas Irlandas em virtude de ambas estarem na UE; vai agora a Inglaterra criá-la, ao arrastar a Irlanda do Norte para fora da UE. Parece que a guerra não é um conceito tão longínquo como no dia 23 de junho. Que o bom senso e os bons líderes nos protejam.