quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Uma-em-três ou uma-em-quatro

No outro dia, tendo como pano de fundo a notícia de que uma mulher tinha sido morta pelo ex-marido no Barreiro - a terceira desde que o ano começou - o D. fez-me uma pergunta muito simples: 

'Achas que no Médio Oriente as mulheres sofrem mais violência doméstica ou a diferença não é assim tão grande em relação à Europa?'

O meu instinto foi replicar-lhe com um muito óbvio 'É CLARO que no Médio Oriente a violência doméstica está mais generalizada do que na Europa. Nem compares, por favor.' mas calei-me a tempo porque o que parece óbvio nem sempre é assim tão óbvio e dei imediatamente conta de que na realidade eu não sabia. Nunca tinha ido ver números, estimativas, estatísticas, comparações, o que fosse. A minha ideia era apenas uma perceção formada por ouvir-dizer, por leituras superficiais ao longo dos anos, por uma ligação que me parecia lógica entre falta de direitos civis e maior desrespeito pela humanidade das mulheres nessa parte do mundo do que na Europa, e pela proximidade às campanhas de consciencialização do tema em Portugal e arredores. O único número que conheço, divulgado pela ONU e adotado por inúmeras instituições internacionais e organizações não-governamentais, é a estatística de que uma em cada três mulheres será vítima de violência de género durante a sua vida. Suponho que haja diferenças entre diferentes partes do mundo e que o 1-em-3 fosse uma média mundial. Supus também que se no Ocidente é difícil por vezes obter estatísticas fiáveis sobre os verdadeiros números da violência doméstica, - nem todas as vítimas fazem queixa, nem todas as vítimas têm a consciência de que foram vítimas de um crime - imaginei que em países ditos em desenvolvimento esses números fossem ainda mais difíceis de conseguir e que portanto uma comparação rigorosa não fosse possível entre Europa e Médio Oriente.

Só para terem uma noção, a União Europeia tem desde há meia dúzia de anos para cá um instituto para a igualdade de género, cuja responsabilidade é realizar estudos quantitativos sobre a igualdade entre homens e mulheres nos 28 estados membros da UE todos os anos em diversas áreas, e compará-los uns com os outros e com a média europeia, para que se conheça a evolução ou a regressão de cada um em cada área da vida (aquilo tem estatísticas para coisas corriqueiras como salários, educação, presença na política e em cargos de liderança de empresas, mas também tem estatísticas em áreas como a saúde, o tempo livre de qualidade que cada sexo tem, a segregação nas áreas do saber, etc. Quem gostar de números aconselho vivamente a visitar o índice que está visualmente apelativo e apresentado de forma interativa aqui: http://eige.europa.eu/gender-statistics/gender-equality-index). Uma das áreas que o índice pretendia medir era também a da violência de género, mas precisamente pela falta de estatísticas recolhidas de forma sistemática e fiável por todos os países europeus, essa parte do índice está ainda por preencher convenientemente.

Portanto, se uma instituição especificamente dedicada à coisa não consegue realizar um índice com estatísticas sobre a violência contra as mulheres na Europa, cujos países têm órgãos de estatística relativamente bem equipados, independentes e fiáveis, imaginemos no resto do mundo. Foi isto que eu pensei.

Acabei por não arrumar o assunto e uma pesquisa no Google direcionou-me para um relatório da Organização Mundial de Saúde sobre a prevalência da violência contra as mulheres no mundo em 2012 (o relatório: http://www.who.int/reproductivehealth/publications/violence/9789241564625/en/ ; sumário dos dados principais: http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs239/en/). A OMS publicou esta infografia muito útil para comparação entre regiões:


Portanto como eu suspeitava, há uma diferença entre a Europa e o Médio Oriente e portanto fui logo comunicá-la ao D., contente por ter algo mais concreto com que continuar a nossa conversa do que um 'acho que sim', ou um 'é óbvio que sim' ou coisa do género. 25% das mulheres europeias sofrem violência física ou sexual às mãos de um parceiro (ou sexual às mãos de um não-parceiro) mas 37% sofrem-no no Médio Oriente. O D. não achou essa diferença assim tão significativa - e para ser franca, nem eu. É a diferença entre uma em quatro ou um pouco mais de uma em três, disse-lhe eu. Mas francamente pensei que comparativamente estivéssemos um pouco melhor.

Tenho noção de como esta comparação toda parece no mínimo de mau gosto e no máximo a roçar ideias de superioridade europeia, mas a minha intenção não é de todo essas. Como disse lá em cima, existe uma proposição lógica de que quanto mais igualdade a nível de direitos civis formais existir, quanto mais bem sucedida estiver a ser a luta pela emancipação das mulheres, mais elas serão vistas como pessoas de pleno direito, mais respeito haverá pela sua liberdade e pelas suas decisões, menos aceitável parecerá subjugá-las à vontade de um homem, incluindo pela violência. Por esta lógica, a Europa, como continente onde esta igualdade formal está melhor e há mais tempo conseguida, deveria ser um dos sítios onde a violência seria mais baixa, por oposição a uma região do mundo onde ainda falta dar passos tão básicos em alguns países como direito ao voto, participação no mercado de trabalho, etc. E essa diferença existe realmente, só não é tão pronunciada como eu esperava.

Mas se pensarmos que há pouco mais de 40 anos as mulheres portuguesas não podiam viajar para o estrangeiro sem a autorização do marido, e de que há pouco mais de 20 é que a violência doméstica se tornou crime, se calhar não devia ser assim tão surpreendente. O interessante, mas penso que isso não existe porque só há poucas décadas é que o tópico começou a merecer atenção internacional, era comparar a evolução destas estatísticas europeias ao longo do tempo, saber por exemplo se no início do séc. XX a taxa de violência contra as mulheres era mais elevada do que agora, para termos o consolo de que, por elevada que ela ainda parece no presente, que está a haver decréscimo e que portanto os esforços de consciencialização para o flagelo e as conquistas da igualdade não estão a ser em vão.

Porque depois há outra questão para além da violência em si: a da consciencialização dessa violência e de que ela é mesmo violência. Por exemplo, em 2014 a FRA publicou um estudo realizado nos 28 estados membros europeus sobre a violência contra as mulheres na Europa, este mais completo do que o da OMS porque inclui violência psicológica também (já agora, neste estudo o número de mulheres que foram vítimas de violência física ou sexual é de 33%, diferença ainda menor). Os dados foram baseados em entrevistas com 42 000 mulheres na Europa e estão desagregados por países e por tipo de violência (fica aqui o sumário dos dados em português: http://fra.europa.eu/sites/default/files/fra-2014-vaw-survey-factsheet_pt.pdf ; e o relatório inteiro: http://fra.europa.eu/sites/default/files/fra-2014-vaw-survey-at-a-glance-oct14_pt.pdf). Qual não foi o meu espanto quando os países com as percentagens mais elevadas de mulheres que sofreram assédio sexual foram a Dinamarca, Suécia e Holanda (Portugal estava no meio da tabela). Não só esta não é a minha experiência - nem a de várias mulheres que já viveram em países do norte da Europa e do sul e que portanto sabem a diferença na quantidade de importunações na rua de que somos alvo nuns e noutros - como estes são os países que precisamente têm os melhores indicadores de igualdade entre homens e mulheres do mundo. 

Visto que este é um inquérito sobre perceções, acho que isso faz toda a diferença nos resultados finais. Como ficou bem visto no debate sobre a criminalização do piropo há uns meses/anos atrás, um quantidade absurda de mulheres portuguesas não acha que ouvir um 'Lambia-te essa c**a toda' gritado na rua por um desconhecido seja assédio sexual, quanto mais um ato de violência. Isso vai-se refletir na resposta a este tipo de inquérito sobre experiência de violência. Eu só posso afirmar que fui vítima de determinado tipo de violência se tiver consciência de que aquilo que me aconteceu ou que me foi dirigido é um tipo de violência. Razão pela qual há cada vez mais queixas relacionadas com violência doméstica, razão pela qual parece que a violência doméstica está cada vez pior. Quanto mais consciencializadas, mais elevados os casos, maior a incidência. Isto faz-me suspeitar de que os números do relatório da OMS possam estar subestimados em regiões como o Médio Oriente, se os números se baseiam em inquéritos diretos às mulheres desses países. Não sei de todo se é o caso, mas seria algo a ter em conta. 

Isto para dizer que não, o feminismo não está de todo obsoleto no Ocidente como muitos parecem crer; que não, o progresso, se houve, não foi assim tão espetacular ainda; e que não, no que toca a respeito pela humanidade das mulheres e pela sua liberdade, não há uma diferença tão abismal na prática entre o mundo dito desenvolvido e os muçulmanos, como muitos após os ataques em Colónia nos querem fazer crer.



S. 

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Relatório maioritário

A blogosfera anda mortiça e este blog não é exceção. Aborrece-me cada vez mais a monotonia das opiniões expressadas, o elevar de pequenas embirrações de dia-a-dia a problemas de primeiro mundo, irrita-me a impaciência dos blogueiros para com as idiossincrasias dos outros, os posts pespinetas, os posts pseudo-humorísticos, a banalidade destas partilhas. E este blog não é exceção.

Tenho cada vez menos paciência para escrever sobre feminismo, e suspeito que isto tenha pouco a ver com o facto de estar a fazer uma investigação sobre ele. Sinto que estou sempre a bater na mesma tecla, que o que tenho para dizer é óbvio, básico, que já toda a gente sabe isto, para quê repeti-lo. Que as mulheres ainda são discriminadas por serem mulheres deveria ser óbvio, a parcialidade do status quo deveria ser mais que evidente a qualquer pessoa minimamente inteligente, a objetificação e hipersexualização das mulheres deveria ser um fenómeno que é mais que óbvio (e consequências nefastas também, já agora), a necessidade de uma lei que criminalize a importunação sexual uma coisa que já cá devia estar há mais que tempo, a justeza de sistemas de quotas uma evidência, que existe violência contra mulheres por estas serem mulheres (ou seja, que deriva dos papéis atribuídos a elas e respetiva 'correção' quando estes não são respeitados) idem. Mas depois leio coisas, oiço coisas e vejo discussões que ainda estão presas ao significado de palavras, que o feminismo não se devia chamar feminismo, que igualdade é que é, que humanismo é que é, e que há homens que também são, e chego à conclusão que o que parece óbvio não é óbvio, não senhora, e o senso comum não é tão comum quanto isso. O problema é que adotei uma posição de aprendizagem exclusiva, que é como quem diz: eu educo-me, os outros que se lixem. Prefiro perder tempo a ler coisas do que a debatê-las, que não devo explicações a ninguém e quem se quiser educar há muito material à solta, é só pesquisar. E isto é um bocado triste.

O que também é um bocado triste é eu ter passado de correr 60-70 km semanais a 5-7 (com sorte). Toda eu apanhei um trauma tão grande à intensidade e sacrifício das últimas semanas de treinos para a maratona que o meu corpo agora é fisicamente avesso à ideia de programar uma corridinha que seja. A mente, essa, esgotou-se-lhe toda a força de vontade no ato de calçar os ténis nessas últimas semanas. Para a última coisa que está virada é para instigar o corpo num 'vá, vamos lá correr 10k!' Não há objetivos à vista, e assim será até voltar a ficar entusiasmada com alguma prova e ansiar preparar-me para ela. É só um bocado triste e não inteiramente porque não fazem ideia do bom que é saber que não tenho que acordar às 6h da manhã de domingo para ir rolar 3h no asfalto (se calhar até fazem, eu agora é que passei para o lado dos normais outra vez). Ou acordar e pensar 'argh, logo à noite tenho que ir correr antes de poder vestir o pijama e refastelar no sofá'. A única maneira de sair para uma corrida é agora: a) com companhia, ou b) acabar o trabalho do dia e pensar para mim mesma, como quem não quer a coisa: 'e se fosse agora correr um bocadinho?' e ir, logo, logo. A palavra tabu é PLANEAMENTO. O equilíbrio - que demorou umas boas semanas - já está restabelecido mas o bichinho não voltou a picar. E por enquanto estamos muito bem assim.

Entretanto já escrevi (leia-se: rascunhei) cerca de um terço da minha tese e ainda não perdi a vontade de viver. Pensava que era isso que os doutoramentos faziam. Gosto muito do meu projeto, mas às vezes gostava de ter escolhido alguma coisa que fosse mudar o mundo. Mas também tudo o que está abaixo de curar o cancro parecer-me-ia sempre poucochinho, por isso sei melhor do que ir por aí. Penso tantas vezes 'mas que merda fui fazer?!' quando me ocorre que me despedi para voltar a estudar, e tornei-me mais perita em evitar pensar na minha vida para lá de setembro de 2017 do que em evitar a praga. Estou mais relaxada no que toca a planear coisas a curto-prazo. A palavra tabu é PLANEAMENTO.

Num gesto de altruísmo auto-servidor, participo desde o início como cobaia numa investigação sobre o percurso de mulheres doutorandas em universidades de Sheffield e as entrevistas anuais com a investigadora são uma catarse tão poderosíssima que acho que eu lhe devia pagar. Melhor que terapia.

Foi tão difícil acostumar-me a ter uma vida diferente das pessoas normais, que trabalham em empregos normais das 9 às 17, que saem de casa para ir para o escritório e voltam para casa à noite, que estive à beira de arrancar cabelos. Nunca pensei que a normalidade fosse tão importante para mim, ou que estivesse tão enraizada cá dentro que quando não a executo se alojasse um sentimento de culpa e de inadequação que não é abalado por mais que o tente demover racionalmente: 'Estás no bom caminho, vê só a lista dos artigos todos que já reviste, vê só o que já escreveste! Se não estás convencida por ti mesma, ouve a validação externa, a publicação em vista, as call for papers garantidas com sucesso. O teu supervisor diz que está tudo a andar sobre rodas, que está contente com o teu progresso! O calendário de tarefas está a ser cumprido. Que mais precisas para te assegurares de que estás a trabalhar, que o teu esforço diário é válido?' Hardwired. Eu estou hardwired para equacionar emprego com sucesso pessoal, e isto é tão neo-liberal, tão capitalista e tão poucochinho que se me revolvem as entranhas. Mas está ao nível do subconsciente, que posso fazer.

(Re)comecei a gostar de roupas bonitas. E gosto tanto de batons. Eu nunca tive paciência/jeito/vontade para maquilhagem, mas agora gosto tanto de batons. Não sei o que me deu, mas vou com a corrente. Isto vai e vem, sei melhor do que dramatizar estas obsessões repentinas. Os seres humanos são criaturas de contradições maravilhosas.

No outro dia o meu dentista de há 15 anos - que não via há uns 5 - nas perguntas de circunstância perguntou se havia namorado. 'Sim, é o mesmo.', 'O mesmo? Que tédio.' Oh meu bom homem, com tanta mudança de vida, de casa, de país, de rede social, de a-fazeres, de hobbies, que felicidade, que alívio, que segurança, que sanidade mental, que constância é ter o mesmo homem - o meu melhor amigo - sempre ao meu lado. 



S.

     


domingo, 10 de janeiro de 2016

Media, é assim mesmo #9

(Já tinha falado ao de leve sobre isto, daí que esta cena me tenha arrancado um sorriso. Também relevante em relação a campanhas como Princess Free Zone e Let Toys Be Toys. Não que brincar às princesas tenha algum mal, mas às vezes as raparigas só querem ser um hobbit de orelhas pontiagudas e pés nojentos e ir destruir anéis a vulcões.)











S.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Porque a Thatcher era um inimigo tão odiado que chegou a unir estes dois grupos




A história de um grupo de ativistas gays que decidem angariar dinheiro para apoiar os mineiros em greve em 1984 no Reino Unido. Sobre aliados improváveis, ultrapassar preconceitos, sobre gratidão, luta, coragem, discriminações que se entre-cruzam.  E o melhor de tudo é que isto aconteceu.

Um dos filmes mais emocionantes e inspiradores que vi nos últimos tempos. A empatia é uma coisa maravilhosa.




S.