No outro dia, tendo como pano de fundo a notícia de que uma mulher tinha sido morta pelo ex-marido no Barreiro - a terceira desde que o ano começou - o D. fez-me uma pergunta muito simples:
'Achas que no Médio Oriente as mulheres sofrem mais violência doméstica ou a diferença não é assim tão grande em relação à Europa?'
O meu instinto foi replicar-lhe com um muito óbvio 'É CLARO que no Médio Oriente a violência doméstica está mais generalizada do que na Europa. Nem compares, por favor.' mas calei-me a tempo porque o que parece óbvio nem sempre é assim tão óbvio e dei imediatamente conta de que na realidade eu não sabia. Nunca tinha ido ver números, estimativas, estatísticas, comparações, o que fosse. A minha ideia era apenas uma perceção formada por ouvir-dizer, por leituras superficiais ao longo dos anos, por uma ligação que me parecia lógica entre falta de direitos civis e maior desrespeito pela humanidade das mulheres nessa parte do mundo do que na Europa, e pela proximidade às campanhas de consciencialização do tema em Portugal e arredores. O único número que conheço, divulgado pela ONU e adotado por inúmeras instituições internacionais e organizações não-governamentais, é a estatística de que uma em cada três mulheres será vítima de violência de género durante a sua vida. Suponho que haja diferenças entre diferentes partes do mundo e que o 1-em-3 fosse uma média mundial. Supus também que se no Ocidente é difícil por vezes obter estatísticas fiáveis sobre os verdadeiros números da violência doméstica, - nem todas as vítimas fazem queixa, nem todas as vítimas têm a consciência de que foram vítimas de um crime - imaginei que em países ditos em desenvolvimento esses números fossem ainda mais difíceis de conseguir e que portanto uma comparação rigorosa não fosse possível entre Europa e Médio Oriente.
Só para terem uma noção, a União Europeia tem desde há meia dúzia de anos para cá um instituto para a igualdade de género, cuja responsabilidade é realizar estudos quantitativos sobre a igualdade entre homens e mulheres nos 28 estados membros da UE todos os anos em diversas áreas, e compará-los uns com os outros e com a média europeia, para que se conheça a evolução ou a regressão de cada um em cada área da vida (aquilo tem estatísticas para coisas corriqueiras como salários, educação, presença na política e em cargos de liderança de empresas, mas também tem estatísticas em áreas como a saúde, o tempo livre de qualidade que cada sexo tem, a segregação nas áreas do saber, etc. Quem gostar de números aconselho vivamente a visitar o índice que está visualmente apelativo e apresentado de forma interativa aqui: http://eige.europa.eu/gender-statistics/gender-equality-index). Uma das áreas que o índice pretendia medir era também a da violência de género, mas precisamente pela falta de estatísticas recolhidas de forma sistemática e fiável por todos os países europeus, essa parte do índice está ainda por preencher convenientemente.
Portanto, se uma instituição especificamente dedicada à coisa não consegue realizar um índice com estatísticas sobre a violência contra as mulheres na Europa, cujos países têm órgãos de estatística relativamente bem equipados, independentes e fiáveis, imaginemos no resto do mundo. Foi isto que eu pensei.
Acabei por não arrumar o assunto e uma pesquisa no Google direcionou-me para um relatório da Organização Mundial de Saúde sobre a prevalência da violência contra as mulheres no mundo em 2012 (o relatório: http://www.who.int/reproductivehealth/publications/violence/9789241564625/en/ ; sumário dos dados principais: http://www.who.int/mediacentre/factsheets/fs239/en/). A OMS publicou esta infografia muito útil para comparação entre regiões:
Portanto como eu suspeitava, há uma diferença entre a Europa e o Médio Oriente e portanto fui logo comunicá-la ao D., contente por ter algo mais concreto com que continuar a nossa conversa do que um 'acho que sim', ou um 'é óbvio que sim' ou coisa do género. 25% das mulheres europeias sofrem violência física ou sexual às mãos de um parceiro (ou sexual às mãos de um não-parceiro) mas 37% sofrem-no no Médio Oriente. O D. não achou essa diferença assim tão significativa - e para ser franca, nem eu. É a diferença entre uma em quatro ou um pouco mais de uma em três, disse-lhe eu. Mas francamente pensei que comparativamente estivéssemos um pouco melhor.
Tenho noção de como esta comparação toda parece no mínimo de mau gosto e no máximo a roçar ideias de superioridade europeia, mas a minha intenção não é de todo essas. Como disse lá em cima, existe uma proposição lógica de que quanto mais igualdade a nível de direitos civis formais existir, quanto mais bem sucedida estiver a ser a luta pela emancipação das mulheres, mais elas serão vistas como pessoas de pleno direito, mais respeito haverá pela sua liberdade e pelas suas decisões, menos aceitável parecerá subjugá-las à vontade de um homem, incluindo pela violência. Por esta lógica, a Europa, como continente onde esta igualdade formal está melhor e há mais tempo conseguida, deveria ser um dos sítios onde a violência seria mais baixa, por oposição a uma região do mundo onde ainda falta dar passos tão básicos em alguns países como direito ao voto, participação no mercado de trabalho, etc. E essa diferença existe realmente, só não é tão pronunciada como eu esperava.
Mas se pensarmos que há pouco mais de 40 anos as mulheres portuguesas não podiam viajar para o estrangeiro sem a autorização do marido, e de que há pouco mais de 20 é que a violência doméstica se tornou crime, se calhar não devia ser assim tão surpreendente. O interessante, mas penso que isso não existe porque só há poucas décadas é que o tópico começou a merecer atenção internacional, era comparar a evolução destas estatísticas europeias ao longo do tempo, saber por exemplo se no início do séc. XX a taxa de violência contra as mulheres era mais elevada do que agora, para termos o consolo de que, por elevada que ela ainda parece no presente, que está a haver decréscimo e que portanto os esforços de consciencialização para o flagelo e as conquistas da igualdade não estão a ser em vão.
Porque depois há outra questão para além da violência em si: a da consciencialização dessa violência e de que ela é mesmo violência. Por exemplo, em 2014 a FRA publicou um estudo realizado nos 28 estados membros europeus sobre a violência contra as mulheres na Europa, este mais completo do que o da OMS porque inclui violência psicológica também (já agora, neste estudo o número de mulheres que foram vítimas de violência física ou sexual é de 33%, diferença ainda menor). Os dados foram baseados em entrevistas com 42 000 mulheres na Europa e estão desagregados por países e por tipo de violência (fica aqui o sumário dos dados em português: http://fra.europa.eu/sites/default/files/fra-2014-vaw-survey-factsheet_pt.pdf ; e o relatório inteiro: http://fra.europa.eu/sites/default/files/fra-2014-vaw-survey-at-a-glance-oct14_pt.pdf). Qual não foi o meu espanto quando os países com as percentagens mais elevadas de mulheres que sofreram assédio sexual foram a Dinamarca, Suécia e Holanda (Portugal estava no meio da tabela). Não só esta não é a minha experiência - nem a de várias mulheres que já viveram em países do norte da Europa e do sul e que portanto sabem a diferença na quantidade de importunações na rua de que somos alvo nuns e noutros - como estes são os países que precisamente têm os melhores indicadores de igualdade entre homens e mulheres do mundo.
Visto que este é um inquérito sobre perceções, acho que isso faz toda a diferença nos resultados finais. Como ficou bem visto no debate sobre a criminalização do piropo há uns meses/anos atrás, um quantidade absurda de mulheres portuguesas não acha que ouvir um 'Lambia-te essa c**a toda' gritado na rua por um desconhecido seja assédio sexual, quanto mais um ato de violência. Isso vai-se refletir na resposta a este tipo de inquérito sobre experiência de violência. Eu só posso afirmar que fui vítima de determinado tipo de violência se tiver consciência de que aquilo que me aconteceu ou que me foi dirigido é um tipo de violência. Razão pela qual há cada vez mais queixas relacionadas com violência doméstica, razão pela qual parece que a violência doméstica está cada vez pior. Quanto mais consciencializadas, mais elevados os casos, maior a incidência. Isto faz-me suspeitar de que os números do relatório da OMS possam estar subestimados em regiões como o Médio Oriente, se os números se baseiam em inquéritos diretos às mulheres desses países. Não sei de todo se é o caso, mas seria algo a ter em conta.
Isto para dizer que não, o feminismo não está de todo obsoleto no Ocidente como muitos parecem crer; que não, o progresso, se houve, não foi assim tão espetacular ainda; e que não, no que toca a respeito pela humanidade das mulheres e pela sua liberdade, não há uma diferença tão abismal na prática entre o mundo dito desenvolvido e os muçulmanos, como muitos após os ataques em Colónia nos querem fazer crer.
S.
Obrigada. :)
ResponderEliminarDe nada. Estes posts ajudam-me a meter o pensamento em ordem, por isso são um exercício mais egoísta do que possam parecer :)
Eliminar"uma quantidade absurda de mulheres portuguesas não acha que ouvir um 'Lambia-te essa c**a toda' gritado na rua por um desconhecido seja assédio sexual, quanto mais um ato de violência". Fiquei com a sensação que as mulheres que recusavam a ideia de o piropo ser assédio de rua negavam que a aquele tipo de frase pudesse ser enquadra na categoria do "piropo". Também me apercebi de algumas categorizações que dividiam os piropos em "ordinários" e "galanteios".
ResponderEliminar"Eu só posso afirmar que fui vítima de determinado tipo de violência se tiver consciência de que aquilo que me aconteceu ou que me foi dirigido é um tipo de violência.". Apenas acrescentaria que para se ser vítima é preciso conhecer os seus direitos. Incomoda-me bastante o incómodo que as pessoas sentem com a palavra "vítima" porque a despojaram de direitos. Ser vítima é falhar. Ser vítima é falhar o dever de se auto proteger e é, antes de mais, estar desempoderado/a. Pois eu não acho. Eu acho que é no momento em que sabemos que fomos vítimas que começa o processo de empoderamento.
Também gostei muito deste texto. Acrescento apenas que existe um índice de desigualdade de género (mundial): https://en.wikipedia.org/wiki/Gender_Inequality_Index
Ceridwen, o preferível era que a palavra "piropo" nunca tivesse entrado nesta conversa, mas quando se começa a falar dos fenómenos é normal que eles ainda não tenham uma palavra certa para os descrever e se recorra à palavra que mais se aproxime do fenómeno e que seja melhor reconhecida pela maior parte da população. Perdeu-se demasiado tempo a discutir semântica, mas acho que no final a escolha dos legisladores por "importunação sexual" foi acertada.
ResponderEliminarEm relação à questão da palavra "vítima", sem dúvida. Num contexto neo-liberal em que o ênfase está no indivíduo ser responsável por si mesmo, por tudo o que faz e por tudo o que lhe acontece, uma pessoa ser rotulada de "vítima" é muitas vezes uma afronta. Mas a palavra vítima também tem uma conotação completamente neutra que as pessoas muitas vezes ignoram (ser vítima de um acidente de viação, ser vítima de uma cheia...) e é essa que devia ser entendida quando se fala de vítima de violência de género, por exemplo. E concordo muito com isso de quando se entende que se foi vítima é que começa o empoderamento: é o entender que o que aconteceu está errado e que não era inevitável, que eu não tenho que me sujeitar a determinado comportamento e que aquele comportamento está errado aos olhos da lei. Pessoalmente desde que saiu a lei sobre a importunação sexual que me sinto mais digna enquanto mulher portuguesa, e talvez até mais corajosa em relação a quem me dirigir tais comportamentos.
:) Obrigada pela informação sobre o índice mundial.
O crime de "importunação sexual" já existia. Apenas acrescentaram as "propostas de teor sexual". É isso que são, supostamente, (escrevo supostamente, porque, para mim, piropos não são propostas sexuais. São imposições. E por isso é que são violência. Porque uma proposta sexual não tem de ser violenta (no sentido de ser imposta)). O resto já existia. A importunação sexual não é um crime novo. Com aquela epígrafe existe desde 2007.
ResponderEliminarNão me parece (mas admito que posso estar enganada) que não houvesse palavras para definir o fenómeno. O assédio [sexual] de rua está já criminalizado em alguns países. As pessoas não têm dificuldade em reconhecer o assédio (seja moral, seja sexual). Vê, p.e., aqui http://www.stopstreetharassment.org/resources/definitions/. O que me parece é que há pessoas (de todos os sexos) que consideram que os homens devem deter o privilégio de dizer o que bem lhes apetecer às mulheres que circulam no espaço público sem acompanhantes masculinos.
Queria ainda dizer que discordo da "neutralidade" em relação a certas vitimações (como os exemplos que deste: de acidente de viação ou de causas naturais). Mas preciso de formular o pensamento. E vou também procurar um ensaio da Carine Mardorossian, em que ela discute esta questão, para partilhar contigo. Até breve :)
ResponderEliminarMas o facto de as "propostas de teor sexual" se enquadrarem na questão mais geral de "importunação sexual" significa logo à partida que não são desejadas, que são uma imposição e portanto uma violência. Uma proposta de teor sexual não tem que ser uma imposição, claro que não, mas quando é uma importunação é-o automaticamente, e como só nesses casos é que é crime parece-me que não está errado como os legisladores colocaram este tipo de assédio na lei.
ResponderEliminarTalvez assédio na mente coletiva portuguesa tenha uma conotação demasiado pesada e pressuponha uma sistematização do mesmo agressor que levasse as pessoas a não reconhecer um "piropo ordinário" como um caso de assédio e portanto fizesse com que os "piropos ordinários" acabassem por fugir por entre as malhas de uma legislação que os caracterizasse como tal. Não sei seria o caso, estou só a pensar alto.
Acho que o positivo de a palavra "piropo" ter entrado na conversa é que agora, mesmo no caso das pessoas que ridicularizaram todo o debate e continuam a ver tudo isto como um atentado à liberdade de expressão, um piropo já não é inofensivo, já há qualquer coisa de errado com ele, nem que seja por ter gerado toda a polémica que gerou. Talvez já se pense duas vezes, talvez já comece a haver uma pontinha de dúvida quando se manda um, quem sabe de culpa... (Talvez esteja um bocadinho otimista, eu, mas espero que não ingénua. Sei que ao nível das mentalidades estas coisas levam muito tempo a mudar).
Fico à espera do ensaio ;)
Eu confesso: li este post quando foi publicado, guardei-o nos favoritos, mas não disse nada. Aproveito agora, um bocadinho em resposta ao comentário sobre as mariquices sulistas no que toca à chuva (compreendo perfeitamente, estamos mal habituados e qualquer céu além do limpo e sem nuvens nos faz tremer), para dizer alguma coisa. Na verdade, não é nada de muito pertinente: achei apenas que gostarias de saber que já me servi várias vezes deste teu post para mostrar aos mais teimosos (ou a quem nunca pensou muito do assunto) que ainda há muito trabalho a ser feito no que diz respeito à violência contra as mulheres, e que o problema tem dimensões monstruosas. E olha que tenho discutido muito isto ultimamente. Colónia fica mesmo aqui ao lado.
ResponderEliminarFico contente que o post tenha sido útil para alguém além de mim e que substancie argumentos para convencer que é mais cético (acho que por vezes não é má fé, é antes como dizes as pessoas não terem pensado muito no assunto ou não terem visto os números que existem e terem uma ideia errada ou muito vaga). Tenho pena que o meu alemão não seja suficiente para acompanhar as discussões na imprensa alemã sobre Colónia, mas a Helena do Dois Dedos de Conversa tem traduzido muita coisa sobre o assunto. Pode te ser útil nas discussões sobre Colónia ;)
EliminarD.S: o prometido é devido. O ensaio a que aludi é este: http://www.jstor.org/stable/10.1086/337938?seq=1#page_scan_tab_contents (não consigo encontrá-lo em regime aberto) e o artigo não é exclusivamente sobre as tensões entre vítima vs sobrevivente, mas ocupa uma parte com o tema. Para se perceber a que me estava a referir:
ResponderEliminar"(....) While victimization and interiority were indeed articulated
through consciousness raising, they were not yet welded together to the
point of occluding agency. The 1970s were a time when women suffering
from domestic and sexual violence—that is, forms of violence that were
not yet identified as crimes—started demonstrating in mass against rape
and battery. The movement’s examination of the destructive effects of
power on women’s psyches could therefore not be divorced from these
waves of feminist activism that were sweeping the country. In such a
context, being a victim did not mean being incapacitated and powerless.
It meant being a determined and angry (although not a pathologically
resentful) agent of change.
The opposition between victimization and agency is one that developed
in response to the radicalism of the late 1960s and has since shaped and
refashioned both mainstream and academic configurations of feminism. I
contend that feminist anger and activism—that is, the very fuel that was
driving the social movement for change—has been radically and increasingly
disarticulated from the victimization that caused such a reaction in
the first place. In focusing exclusively on portraying women as “victims”
of sexual and domestic violence, the media have been effectively erasing
their visible agency and contributing to the ideologically motivated rift
between “real” and “fake” victims that motivates mainstream representations
of sexual violence. Real victims have been increasingly distinguished
from the “angry feminists” whose anger, as a result, is seen as
self-contained and pathological. Contemporary representations of feminists
stereotypically see “angry” feminists as harboring an anger that has,
very much like Nietzsche’s resentment, taken on a life of its own and has
a motivation that exceeds its originating moment. (...)
The reduction of the discourse of victimization to an agentless interiority
has contributed not only to changing our perceptions of victims
of violence but also to refashioning the feminist movement itself. What
made the second wave strong was that victims of male violence took social
transformation into their own hands and started organizing and demonstrating,
founding and running shelters and women’s communities, and
volunteering their time and energy to promote social justice. While such
political activities still occur, they have been irremediably dissociated from
victims insofar as the latter are now the objects rather than the subjects
of these movements. We are back to a model of nineteenth-century charity
whereby privileged women are perceived as better equipped to help victims
cope with and make sense of their experience. Victims themselves are
represented as irremediably and unidirectionally shaped by the traumatic
experience of rape and hence incapable of dealing with anything but their
own inner turmoil. The strength of the second wave was precisely that it
showed the world and victims themselves that they were more than the
sum of their traumatic experiences, that they had the capacity to act and
organize even as they were dealing with the psychic effects of rape or
domestic violence."
(espero que o blogger aceite um comentário tão grande.
Ainda a respeito da importunação sexual, as propostas sexuais que causam importunação poderão, embora muito raramente, ocorrer na rua. Parece-me mais plausível que surjam em contextos laborais. Há propostas sexuais que podem ser inoportunas e, nesse sentido , importunar, mas não me parece que sejam crime. Em contextos laborais há uma questão óbvia de assimetria de poder (como acontece em qualquer situação de assédio, seja ele sexual ou não). No entanto, o que chamamos de piropo (seja mais ou menos ordinário, essa questão é irrelevante para o que estamos a falar), claramente não é uma proposta sexual. É uma imposição e é porque é uma imposição que é violência. De outra forma, uma mera proposta, p.e. um homem aborda uma mulher que não conhece de lado nenhum e pergunta-lhe se ela aceita ir tomar um café, ou pergunta se a pode conhecer, não constitui qualquer ilícito criminal. A mulher é livre de aceitar ou não. Não há qualquer imposição ainda que o convite possa ser indesejado. Já o que se ouve em diversos espaços públicos entra numa categoria totalmente distinta e, na minha opinião, está muito distante de serem "propostas".
ResponderEliminarEntão o "piropo" estaria mais bem enquadrado dentro da categoria dos assédios? Eu não tenho educação jurídica (com muita pena minha, já por várias vezes lamentei não saber mais do que uma leiga neste campo) mas francamente associo assédio com repetição do mesmo comportamento, que haja sistematização, talvez com algumas semelhanças mais ao stalking do que ao "piropo" lançado uma vez por um homem (que ao longo do tempo, por serem vários, acumulam na experiência de uma mulher de usufruir dos espaços públicos, e por isso é que se tornam castradores da liberdade) numa situação individual. Posso estar completamente errada, claro. Talvez seja boa ideia ir ver como outros países lidaram com a questão dos piropos ao colocá-los na categoria de assédio de rua.
ResponderEliminarO artigo vou guardar para dar a atenção que ele merece, obrigada pela partilha.
D.S. partilho da tua associação à reiteração relativamente ao assédio. A questão é que, para efeitos legais - no sentido de se deduzir acusação a alguém - a reiteração do comportamento tem de ser associada a quem faz (e não quem sofre o assédio). Isto é, uma mulher pode sofrer diversas experiências de assédio de rua no mesmo dia/semana (irrelevante), mas, sendo na rua, o mais provável é que o agente não seja sempre o mesmo. Embora a lei não refira que o comportamento tenha de ser reiterado, apenas exige que "importune". A minha questão é com o facto de se chamar "propostas de teor sexual" aos comportamentos que constituem assédio de rua. Na minha leitura, comentar o corpo alheio ou dizer o que se faria com ele não constitui nenhuma proposta de teor sexual. E tudo o que abra campo para interpretações jurisprudenciais muito diversas - como é o caso desta norma legal - para mim, é mau. Os tribunais interpretam a lei de forma distinta e, por vezes, oposta, instituindo uma desigualdade formal e real quer para quem é arguido/a, quer para quem é vítima (ofendido/a). Apesar de saber que não é fácil encontrar um texto legal que satisfaça todas as exigências técnicas e sociais, é possível definir mais do que faz a lei portuguesa (aliás, basta comparar com outras legislações europeias). Vê, p.e., algumas destas propostas de definição: http://www.stopstreetharassment.org/resources/definitions/
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