Isto parece uma frase motivacional pirosona, sem originalidade nenhuma ainda por cima, mas deixem-me partilhar o que se passou comigo ontem.
Como já cheguei a dizer aqui, eu sou uma pessoa muito avessa ao desconforto físico. Sou dona de uma mente muito dramática que panica rapidamente quando se descobre fora do seu normal. Mas sonho muito. Com números e paces, tempos de corrida a bater. Já conquistei a distância rainha, e como não gosto de trail, só me consigo superar agora pela velocidade. Invejo records de outros atletas, quero aquelas horas e minutos para mim, quero que seja aquele fácil para mim também. Tenho sonhos de longo prazo, que vão durar anos a conseguir, mas quero-os. E então planeio e treino e tento recomeçar o daily grind que é o único caminho para obter essa velocidade, pelo meio das múltiplas mudanças de cidade, casa, trabalho que têm sido os últimos anos (mas, figas, no more!).
Estes sonhos envolvem muito desconforto físico - oh, se envolvem! Não é o no pain, no gain, que nada disto é suposto doer, e é muito mau sinal que doa. Mas sofrimento tem que haver. Porque grande parte do treino para meias-maratonas e maratonas é habituar a mente a ter o corpo desconfortável durante períodos longos de tempo. E isto para mim já devia ter sido mais do que claro há muito tempo, uma vez que já passei por um ciclo de treino para maratona e o que me quebrou - mas o que me salvou no dia da prova - foram aquelas manhãs todas de domingo no verão de 2015 a palmilhar estrada durante 3 horas e tal, sozinha e em silêncio. Mas só ontem se me fez luz.
Porque ontem foi a mente a minha pior inimiga. E os assaltos que os pensamentos fizeram na minha capacidade de continuar a pôr um pé à frente do outro fizeram da The Big Half, a minha primeira corrida nas ruas de Londres, a minha corrida mais sofrida até hoje.
Já não sou novata nenhuma na distância e sei perfeitamente como o meu corpo reage a ela, os pontos críticos e onde vai ser mais difícil continuar (ali dos 12 aos 16 km, quando já passou metade mas ainda faltam tantos km para o fim). Mas os pensamentos intrusos continuam tão fortes como sempre. É exatamente como se estivesse alguém a falar-me ao ouvido: "Desiste". Não é um grito, mas durante algum tempo é o pensamento que domina.
"Pára". (Ressoa em toda a cabeça)
"Isto não é a tua vida".
"É tão fácil, olha, é só encostares-te à beira do passeio".
"Olha um voluntário da prova, diz-lhe que não aguentas mais. A sério, é tão fácil, ninguém te vai recriminar, dizes que não conseguias respirar bem. O que é verdade, estás constipada. Olha esse nariz a pingar. De certeza que os pulmões estão obstruídos. Dizes que foi por precaução, que foi pela tua saúde. Tens a de maio, essa é que é a verdadeira, para a que estamos a treinar."
"Pelo menos pára de correr e caminha, não faz mal nenhum caminhar numa prova. Depois continuas."
"Olha aquele atleta a caminhar, vês? Não é vergonha nenhuma, vá. Anda."
É horrível porque é tão sedutor, tão senso-comum, tão fácil. E tudo verdade. E de repente num ataque de ansiedade noto vividamente a minha respiração acelerada, as minhas pernas pesadas, as bolhas que começo a sentir nos dedos dos pés, e essas coisas, perfeitamente aguentáveis até aqui, tornam-se insuportáveis. E a confiança em como vou cruzar aquela meta dentro do tempo que queria - que vou sequer cruzar a meta! - esfuma-se e eu já não sei o que estou a fazer.
"Faltam 8 km ainda, achas mesmo que vais aguentar 8 km neste ritmo? São 45 minutos. Nunca na vida."
"Se não é para acabar nesse tempo mais vale parar - não andamos aqui a colecionar meias-maratonas pelo prazer que isto dá. QUE É NENHUM."
Apetece-me chorar, porque depois viro uma esquina e vejo uma reta interminável à minha frente e nenhuma placa de mais um km ultrapassado à vista (estavam em milhas, ainda por cima, menos e mais escassas pelo caminho. Pelo menos deram-me algo para entreter o cérebro e abafar a voz sedutora: cálculos milhas-km). O tempo demora a passar, a reta não termina, o km - a milha! - não chega e a noção de tempo altera-se. Sinto que estou a correr há uma vida e não sei quando vai acabar. É isso que a mente, inconscientemente, teme: que aquilo agora seja a nossa vida. O esforço hercúleo é ir buscar a razão e dizer: "faltam 7 km, faltam 6 km, tu sabes o que custam 6 km, nada!, são duas vezes 3 km, são três vezes aquelas séries rápidas que fizemos ainda a semana passada e conseguimos, oh. Depois isto acaba, este esforço não é permanente."
Ao pé deste combate mental, o esforço físico durante as duas horas é canja.
Eu sei que isto é um mecanismo biológico completamente normal. É uma questão de vida ou morte. O principal objetivo da mente é preservar a minha sobrevivência e ela sabe que aquele esforço não é sustentável. Está a ser exigido dos meus músculos um trabalho fora do normal, os pulmões são obrigados a puxar mais ar do que o habitual, o coração é obrigado a enviar o sangue com mais rapidez para onde ele está a ser preciso. Dali a uma ou duas horas acabam-se as reservas de energia e por isso os alarmes da reserva já acenderam lá dentro. É daqui que vêm os pensamentos intrusos.
Mas não é uma questão de vida ou morte. E é a isso que a parte racional tem de se agarrar: "isto não é a nossa vida a partir de agora, daqui a 40 minutos isto acaba."
O meu problema é que não sou muito boa a combater os pensamentos intrusos. A minha força de vontade é fraca nestas situações porque eu não gosto de desconforto físico. Torno-me insuportável, rabugenta. De repente odeio as pessoas que nos estão a ver, odeio o barulho que fazem a puxar por nós, o-d-e-i-o os gritos de incentivo que incluem "you're almost there!" e "you can do this!". Sempre me garantem pelo menos um minuto de resmunguice interior: "I can do it o quê, sei lá se consigo! Não sei se consigo, vou aqui a morrer, sabes lá tu alguma coisa da minha vida, pessoa aleatória a ver-nos passar." Acabo sempre por ceder aos pensamentos intrusos. Nunca tinha não caminhado um bocadinho numa meia-maratona. Nunca tinha não cedido aos pensamentos intrusos.
É por isso que ontem foi tão excecional. Tão sofrido: os pensamentos intrusos não gostam de ser ignorados, voltam uma e outra vez, inesperadamente quando pensávamos que tinham ido finalmente dar uma volta ao bilhar grande. Mas é por isso que estou tão orgulhosa. Mais do que ter conseguido o tempo que almejava mas que só contava conseguir em maio, pela primeira vez cruzei a meta de uma meia-maratona tendo dado absolutamente tudo (já tinha cruzado uma de 10 km com esta sensação, mas aguentar uma hora de esforço é fácil, os pensamentos intrusos não têm tempo para se instalar e o nosso caso racional é mais forte: faltam sempre só 5, 4, 3 km e isso é tão pouco!). Não sei como não desfaleci assim que passei a meta. Lembro-me do gemido-soluço patético que soltei, vindo tão cá de dentro, por ter chegado ao fim. E das pernas cederem assim que parei de correr. Nunca me tinha sido tão nítido que o que me sustinha era força de vontade. Ela ganhou pela primeira vez. E agora já não me param.
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Uma vez li que a lógica do treino é a de mandar stress (controlado) para cima do nosso corpo. Ele vai-se adaptando porque pensa que aquilo agora é a nossa vida. É por isso que a coisa mais importante para se melhorar é a consistência. A regularidade. Convencê-lo de que a qualquer momento vai ser preciso acelerar: o coração, pulmões e músculos das pernas têm de estar preparados. É maravilhoso pensar nisto, mesmo: sempre que treinamos as fibras minúsculas dos nossos músculos partem-se e durante o descanso o nosso corpo encarrega-se de as recoser, mas mais fortes dessa vez, para da próxima não se partirem. E por isso temos de ir aumentando o stress que lhe lançamos, ou pela distância, ou pela velocidade, ou pelo volume. Sempre devagarinho, para o corpo ter tempo e capacidade de se ir reconstruindo. Mas regularmente, para ele pensar que esta é a nossa nova vida. E é assim que melhoramos.
S.