Eu culpo a minha educação de ciência política misturada com a minha paixão pela história UKiana para este meu entusiasmo desmesurado e aparentemente fora do lugar, mas vou tentar contagiar quem está aí desse lado. É que, reparem, independências a bem são da coisa mais rara possível na História, independências lembram guerras, revoluções, lutas sangrentas, inflamadas e impregnadas de valores e sentidos de identidade. O sentido de identidade não falta na questão escocesa, claro, sem sentido de identidade a criação de um novo Estado é sensaborona, artificial, sem objetivo. O que é novidade é a falta das outras características todas. Eu vi o lançamento desta espécie de blueprint, white paper, plano para negociação, manifesto, o que quer que os jornalistas lhe chamem, e aquilo foi tão business-like, tão comedido, tão racional, tão pacífico que fez impressão. Agora é que vai começar a campanha a sério, baseada nas ideias para o futuro da Escócia ali explicadinhas, e vai começar a extenuante tarefa de convencer os escoceses - e o resto do UK e Europa, já agora - que uma Escócia independente seria uma Escócia melhor mas ainda assim viável.
Viável... É engraçado como uma das grandes preocupações deste plano é mostrar através de ideias concretas como é que a Escócia seria um país viável a nível económico, como se conseguiria sustentar a si próprio sem os cofres do UK. Foi esta aliás a maior crítica apontada a esta ideia de independência: que a Escócia não é capaz de sobreviver sem as transferências de dinheiro de Whitehall. E ainda que seja bom que isto seja pensado e ideias concretas apresentadas, não deixa de ser um bocado injusto que uma região tenha que provar que é economicamente sustentável para conseguir a sua independência. Se fosse esse o critério para se ser um país então o nosso mapa-mundi seria deveras interessante. E muitos dos países soberanos mais velhos do mundo não existiriam de certo... (Todos temos um na ponta da língua mas vamos deixar o nome por dizer, vá.) Mas bom, a Escócia ao que parece foi bafejada com a sorte dos deuses e aquele Mar do Norte está todo impestadinho de petróleo pelo que têm rendimentos para viver por umas boas décadas sem fazer mais nada.
Um repórter da BBC afirmava muito espantado que tinha esperado que o lançamento do plano fosse carregado de euforia, simbolismo, carga emocional forte - afinal aquela gente do SNP luta por uma Escócia independente há décadas! - e em vez disso tinha visto um Primeiro-Ministro muito sóbrio a apresentar o seu plano para o futuro do país. Dizia o repórter que achava que era estratégia, para que os escoceses se descansem que uma Escócia independente não seria muito diferente do que é atualmente: continuará com a Rainha como chefe de estado, manterá a libra esterlina, continuará na UE e na NATO, etc. Será só uma Escócia sem coisas que Londres decide e que os escoceses abominam, como a polémica do
bedroom tax, com controlo fiscal e controlo do seu próprio futuro. Uma Escócia mais socialista, portanto.
E por falar em socialismo, é muito interessante isto de a Escócia se tornar mais esquerdista (já aqui tinha falado dessa diferença e do que uma amiga escocesa me disse, qualquer coisa como "We are not like the English, we want to succeed but we want to bring everyone with us.") porque isto significaria que a Inglaterra-Gales-Irlanda-do-Norte se tornar mais conservadora. Já vários escoceses me afirmaram que se a Escócia se vai embora o Partido Trabalhista nunca mais volta a ter maioria em Westminster, já que é muito através dos círculos eleitorais escoceses que lá tem deputados. Daí que se os Conservadores na Inglaterra estão a fazer campanha para um "Better Together" UK e não querem mesmo, mesmo nada ver a Escócia partir (se bem que foi o seu líder que autorizou o referendo pela independência, não percebi ainda em nome de quê, gente estranha), os Trabalhistas também não têm interesse nenhum em que a Escócia se vá embora.
Bom, dizia eu, a Rainha fica, a libra fica, a UE e a NATO ficam, as armas nucleares que estão num submarino qualquer estacionado na Escócia vão embora, a Union Jack não mais será defraldada na Escócia (uuuh, simbolismo!), a BBC vai embora também. No manifesto estão lá os planos detalhados para a negociação de cada uma destas coisas.
Mas depois vem um senhor deputado Conservador e diz: "ah, e tal, isto é tudo muito bonito mas é no papel, o plano não passa de um lindo trabalho de ficção, e não se esqueçam eles que quase todos estes pontos não dependem do governo escocês, dependem de terceiros que podem não estar dispostos a ceder a estes termos, numa negociação não se ganha tudo o que se quer, etc." Eeeeer... A sério que ouvi bem? Oh camafeu, o teu partido quer fazer um referendo em que uma das opções é votar para manter o UK na UE mas com novas condições e poderes repatriados, coisa que nenhum partido pode oferecer porque não está nas mãos de nenhum governo garantir que o resto da UE aceita essas novas condições, e tu vens dar bitaites a outrém sobre como não se consegue tudo o que se quer em negociações? Ide dar esse conselho ao vosso próprio partido, ora essa! Cambada de hipócritas...
Vamos lá entao por partes:
- Sobre manter a libra esterlina, ou seja, fazer uma união monetária com o resto do UK:
"Ah, o resto do UK pode não aceitar." Ao que o Salmond responde "ah, então eu posso não aceitar alarcar com a parte que nos cabe da dívida pública do UK. Uma coisa implica a outra." A dúvida maior seria se a Escócia não seria obrigada a adotar o Euro, como dizem os tratados... Eles dizem que não, "olha para a Suécia, não quis, não entrou, continua a assobiar para o ar a ver se ninguém se lembra dessa exceção que tem que não é bem exceção. Nós fazemos o mesmo!" Não sei, não...
- Sobre manter a Escócia na NATO:
"Hmmmmm, não sei se vos deixam, vocês querem-se livrar do armamento nuclear!", dizem os céticos. Oh valha-me deus. Desde quando é que um país tem que ter armas nucleares para pertencer à NATO? Querer livrar-se dele é que devia ser condição para entrada, se é por um mundo mais pacífico que a NATO luta (é? não me lembro bem.). E que o mundo saiba, só 3 marmanjos na NATO é que as têm.
- Sobre manter a Rainha:
Bah, esta condição não tem problema, ela é chefe de tanto sítio, mais um ou menos um tanto lhe faz.
- Sobre manter a Escócia na UE:
Esta é a mais complexa de todas elas, concedo. E as dúvidas que os apologistas da união ou os simplesmente mais céticos levantam são legítimas. Nunca a UE teve que lidar com uma região secionista. Aquilo passa a ser um novo país, terá que pedir adesão novamente e esperar uns anitos até entrar? Mas, e entretanto? Rouba a UE ao povo escocês o direito de livre circulação que deteve até aqui, só porque escolheu ser independente? O que o Salmond quer é negociar com os outros estados-membros uma emenda ao Tratado de Lisboa para incluir que a Escócia continuará com os mesmos direitos de estado-membro caso se torne independente, como desde 1973 detém. Aqui há muitas reticências porque para esta emenda ser aprovada a tempo da independência (em 2016) tem que começar a ser negociada já, é preciso que Londres concorde (não quer concordar porque isto é abrir caminho a um "Sim" certo no referendo, os escoceses são eurófilos de coração), é preciso que outros países com problemas na sua casa concordem, como a Espanha (olha a Catalunha aos pulos lá atrás!) ou a Bélgica (já consigo imaginar os flamengos a irem-se embora e a levarem Bruxelas com eles).
E os escoceses, o que pensam eles disto tudo? Segundo fontes confidenciais e ultra-fidedignas (vá, um ou dois amigos) é mesmo muito difícil de prever. Vai tudo depender de que rumo tomará a campanha a partir do lançamento deste plano e provavelmente do quanto as políticas do Cameron os irritarem nestes próximos 10 meses. As fontes confidenciais e ultra-fidedignas dizem-me que não, que tudo vai depender é se fizer chuva ou sol no dia do referendo porque isso ditará se muitas ou poucas pessoas saírão de casa para votar. Parece-me uma análise tão válida como qualquer outra.
S.