terça-feira, 26 de novembro de 2013

O plano dos azuis e brancos

Eu já tinha partilhado o meu entusiasmo com esta notícia hoje no Facebook do blog mas faço-o novamente: o Alex Salmond, Primeiro-Ministro da Escócia, lançou hoje o plano detalhado com tudo explicadinho sobre como será a independência da Escócia. Isto é um momento histórico: há uma região que tem um plano de 670 páginas, que cobre todas as áreas do que é ser-se um Estado, e que explica como farão quando e se se tornarem um país daqui a 10 meses. É um documento histórico e nem precisa de o plano se concretizar para o ser: nunca ninguém antes planeou uma independência com tanto afinco e detalhe como os escoceses. E nunca essa decisão dependeu tanto da vontade democrática de um povo como acontecerá no dia 18 de setembro de 2014.




Eu culpo a minha educação de ciência política misturada com a minha paixão pela história UKiana para este meu entusiasmo desmesurado e aparentemente fora do lugar, mas vou tentar contagiar quem está aí desse lado. É que, reparem, independências a bem são da coisa mais rara possível na História, independências lembram guerras, revoluções, lutas sangrentas, inflamadas e impregnadas de valores e sentidos de identidade. O sentido de identidade não falta na questão escocesa, claro, sem sentido de identidade a criação de um novo Estado é sensaborona, artificial, sem objetivo. O que é novidade é a falta das outras características todas. Eu vi o lançamento desta espécie de blueprint, white paper, plano para negociação, manifesto, o que quer que os jornalistas lhe chamem, e aquilo foi tão business-like, tão comedido, tão racional, tão pacífico que fez impressão. Agora é que vai começar a campanha a sério, baseada nas ideias para o futuro da Escócia ali explicadinhas, e vai começar a extenuante tarefa de convencer os escoceses - e o resto do UK e Europa, já agora - que uma Escócia independente seria uma Escócia melhor mas ainda assim viável.

Viável... É engraçado como uma das grandes preocupações deste plano é mostrar através de ideias concretas como é que a Escócia seria um país viável a nível económico, como se conseguiria sustentar a si próprio sem os cofres do UK. Foi esta aliás a maior crítica apontada a esta ideia de independência: que a Escócia não é capaz de sobreviver sem as transferências de dinheiro de Whitehall. E ainda que seja bom que isto seja pensado e ideias concretas apresentadas, não deixa de ser um bocado injusto que uma região tenha que provar que é economicamente sustentável para conseguir a sua independência. Se fosse esse o critério para se ser um país então o nosso mapa-mundi seria deveras interessante. E muitos dos países soberanos mais velhos do mundo não existiriam de certo... (Todos temos um na ponta da língua mas vamos deixar o nome por dizer, vá.) Mas bom, a Escócia ao que parece foi bafejada com a sorte dos deuses e aquele Mar do Norte está todo impestadinho de petróleo pelo que têm rendimentos para viver por umas boas décadas sem fazer mais nada. 

Um repórter da BBC afirmava muito espantado que tinha esperado que o lançamento do plano fosse carregado de euforia, simbolismo, carga emocional forte - afinal aquela gente do SNP luta por uma Escócia independente há décadas! - e em vez disso tinha visto um Primeiro-Ministro muito sóbrio a apresentar o seu plano para o futuro do país. Dizia o repórter que achava que era estratégia, para que os escoceses se descansem que uma Escócia independente não seria muito diferente do que é atualmente: continuará com a Rainha como chefe de estado, manterá a libra esterlina, continuará na UE e na NATO, etc. Será só uma Escócia sem coisas que Londres decide e que os escoceses abominam, como a polémica do bedroom tax, com controlo fiscal e controlo do seu próprio futuro. Uma Escócia mais socialista, portanto. 

E por falar em socialismo, é muito interessante isto de a Escócia se tornar mais esquerdista (já aqui tinha falado dessa diferença e do que uma amiga escocesa me disse, qualquer coisa como "We are not like the English, we want to succeed but we want to bring everyone with us.") porque isto significaria que a Inglaterra-Gales-Irlanda-do-Norte se tornar mais conservadora. Já vários escoceses me afirmaram que se a Escócia se vai embora o Partido Trabalhista nunca mais volta a ter maioria em Westminster, já que é muito através dos círculos eleitorais escoceses que lá tem deputados. Daí que se os Conservadores na Inglaterra estão a fazer campanha para um "Better Together" UK e não querem mesmo, mesmo nada ver a Escócia partir (se bem que foi o seu líder que autorizou o referendo pela independência, não percebi ainda em nome de quê, gente estranha), os Trabalhistas também não têm interesse nenhum em que a Escócia se vá embora.

Bom, dizia eu, a Rainha fica, a libra fica, a UE e a NATO ficam, as armas nucleares que estão num submarino qualquer estacionado na Escócia vão embora, a Union Jack não mais será defraldada na Escócia (uuuh, simbolismo!), a BBC vai embora também. No manifesto estão lá os planos detalhados para a negociação de cada uma destas coisas.

Mas depois vem um senhor deputado Conservador e diz: "ah, e tal, isto é tudo muito bonito mas é no papel, o plano não passa de um lindo trabalho de ficção, e não se esqueçam eles que quase todos estes pontos não dependem do governo escocês, dependem de terceiros que podem não estar dispostos a ceder a estes termos, numa negociação não se ganha tudo o que se quer, etc." Eeeeer... A sério que ouvi bem? Oh camafeu, o teu partido quer fazer um referendo em que uma das opções é votar para manter o UK na UE mas com novas condições e poderes repatriados, coisa que nenhum partido pode oferecer porque não está nas mãos de nenhum governo garantir que o resto da UE aceita essas novas condições, e tu vens dar bitaites a outrém sobre como não se consegue tudo o que se quer em negociações? Ide dar esse conselho ao vosso próprio partido, ora essa! Cambada de hipócritas...




Vamos lá entao por partes:

- Sobre manter a libra esterlina, ou seja, fazer uma união monetária com o resto do UK:
"Ah, o resto do UK pode não aceitar." Ao que o Salmond responde "ah, então eu posso não aceitar alarcar com a parte que nos cabe da dívida pública do UK. Uma coisa implica a outra." A dúvida maior seria se a Escócia não seria obrigada a adotar o Euro, como dizem os tratados... Eles dizem que não, "olha para a Suécia, não quis, não entrou, continua a assobiar para o ar a ver se ninguém se lembra dessa exceção que tem que não é bem exceção. Nós fazemos o mesmo!" Não sei, não... 

- Sobre manter a Escócia na NATO: 
"Hmmmmm, não sei se vos deixam, vocês querem-se livrar do armamento nuclear!", dizem os céticos. Oh valha-me deus. Desde quando é que um país tem que ter armas nucleares para pertencer à NATO? Querer livrar-se dele é que devia ser condição para entrada, se é por um mundo mais pacífico que a NATO luta (é? não me lembro bem.). E que o mundo saiba, só 3 marmanjos na NATO é que as têm.

- Sobre manter a Rainha: 
Bah, esta condição não tem problema, ela é chefe de tanto sítio, mais um ou menos um tanto lhe faz.

- Sobre manter a Escócia na UE: 
Esta é a mais complexa de todas elas, concedo. E as dúvidas que os apologistas da união ou os simplesmente mais céticos levantam são legítimas. Nunca a UE teve que lidar com uma região secionista. Aquilo passa a ser um novo país, terá que pedir adesão novamente e esperar uns anitos até entrar? Mas, e entretanto? Rouba a UE ao povo escocês o direito de livre circulação que deteve até aqui, só porque escolheu ser independente? O que o Salmond quer é negociar com os outros estados-membros uma emenda ao Tratado de Lisboa para incluir que a Escócia continuará com os mesmos direitos de estado-membro caso se torne independente, como desde 1973 detém. Aqui há muitas reticências porque para esta emenda ser aprovada a tempo da independência (em 2016) tem que começar a ser negociada já, é preciso que Londres concorde (não quer concordar porque isto é abrir caminho a um "Sim" certo no referendo, os escoceses são eurófilos de coração), é preciso que outros países com problemas na sua casa concordem, como a Espanha (olha a Catalunha aos pulos lá atrás!) ou a Bélgica (já consigo imaginar os flamengos a irem-se embora e a levarem Bruxelas com eles).

E os escoceses, o que pensam eles disto tudo? Segundo fontes confidenciais e ultra-fidedignas (vá, um ou dois amigos) é mesmo muito difícil de prever. Vai tudo depender de que rumo tomará a campanha a partir do lançamento deste plano e provavelmente do quanto as políticas do Cameron os irritarem nestes próximos 10 meses. As fontes confidenciais e ultra-fidedignas dizem-me que não, que tudo vai depender é se fizer chuva ou sol no dia do referendo porque isso ditará se muitas ou poucas pessoas saírão de casa para votar. Parece-me uma análise tão válida como qualquer outra.





S.

7 comentários:

  1. Gosto muito do teu post. Eu já ando a ouvir pormenores disto tudo desde que começaram a falar no referendo, e sim, parece-me super interessante e também que o SNP tem feito um trabalho excelente, com cabeça, ao pensar ao pormenor como é que a independência deve ser implementada. Acho que é a primeira vez que se estuda uma independência que não sai de uma guerra ou de uma ruptura menos pensada, e parece-me que as potencialidades de um país independente pensado ao pormenor, com tempo para escolher tudo o que essa independência implica, admirável.
    (Tenho um escocês em casa :))

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  2. É exatamente isso que eu acho notável, este planeamento tão racional e detalhado de uma futura independência. Isto nunca foi feito. Mas no meio disto tudo o que acho mesmo surpreendente é termos um país que está disposto a deixar que uma parte de si mesmo se vá embora caso os seus habitantes o prefiram. Acho isso extraordinário. Se houver independência e se tudo correr bem esta Europa de regiões vai ficar em polvorosa, ninguém vai conseguir segurar Catalunhas e Flandres. Madrid deve estar a tremer.

    (E ter um insider em casa numa altura histórica destas, quão fixe é isso! Eu tento sempre sacar informação ao pessoal escocês com quem me dou mas é sempre um bocado de fugida, não é de todo a mesma coisa. Ele vai votar?)

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  3. Não sei se deixar é o melhor termo, acho que Londres não acredita propriamente que a independência poderá tornar-se realidade. Talvez agora com o white paper. Penso que a razão para levantar certos problemas como a participação na Nato ou na UE tem precisamente a ver com a Espanha: se a Escócia se tornar independente cria uma possibilidade que até então parecia mais difícil de alcançar.

    Nopes, quem vive no estrangeiro não pode votar a não ser que seja contemplado pelas excepções.

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  4. Sendo que a adesão de novos países à UE (e seria isso que estaria em causa) requer unanimidade, é um caso bicudo a resolver. Ainda que o governo do UK pudesse aceitar (não imagino como), vários países estão claramente contra, pois iriam abrir a caixa de Pandora.

    O que acho que falta na discussão, tal como na Bélgica, é uma análise cuidada do que seria estar for a da UE. É que embora a maior parte das pessoas não se dé conta, afecta o seu dia a dia.

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  5. Sem dúvida que a permanência na UE ou a nova candidatura à entrada seria um dos trabalhos mais difíceis para o governo escocês. Precisamente porque depende da boa-vontade de muitos governos nacionais, muitos deles sem qualquer interesse em ter uma ex-região-virada-país-independente a ter a vida facilitada na UE. O que Salmond pretende é em vez de candidatura simplificar o processo através de uma emenda aos tratados para incluir que a Escócia continuar com direito de permanência na UE. Mas mesmo que a emenda fosse na prática mais rápida que uma nova candidatura qualquer uma das vias precisa da unanimidade dos estados-membros. Muito trabalho diplomático espera o governo escocês...

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  6. Olá,

    Desculpa a intromissão, mas tinha de vir dizer isto, mesmo que de fugida ( ter não tinha, mas é um assunto que me enerva um bocado, vá).
    Eu, que sou bastante mais cínica do que tu e depois de ter vivido em Inglaterra, tenho a impressão ( convicção cof cof mas convém manter a porta aberta para o diálogo), de que esta "abertura" da Inglaterra ao referendo Escocês é puramente estratégica e manipulativa, de forma tão típica (e histórica) que os ingleses têm de conduzir a sua política. Do meu ponto de vista, para os ingleses esta será a altura ideal para fingir tolerância e respeito pela total liberdade de escolha dos escoceses, porque o referendo tem tudo para falhar. A conjunctura económica e política da Europa, as adversidades que os escoceses terào de enfrentar "sozinhos" numa Europa com pavor de abrir a caixa de Pandora de que falaram acima, devem parecer a cartada ideal para arrumar com esta questão da independência por largos anos. E no futuro podem, hipocritamente, vir dizer "bem, mas nós demo-vos todas as oportunidades, a escolha foi vossa".
    Enfim, a minha opinião sobre a política à inglesa envolve muitos adjectivos, mas "louvável" e "extraordinário" não estão entre eles... :)
    Para finalizar, desejo muito que os escoceses sejam fortes e votem pela independência. Mas, mais que isso, que sejam verdadeiramente livres de escolher, mesmo que implique "ficar".

    Cumprimentos pelo blog!

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  7. Anónima,
    Não tens que pedir desculpa, todo o comentário a acrescentar ideias é benvindo.

    Isso faz muito sentido, faz... Eu confesso que ainda não pensei a sério no assunto do porquê o Cameron deixar a Escócia fazer o referendo e porquê agora. Sempre me pareceu muito suspeita esta liberdade que lhes estão a dar, sem dúvida. Acho que é precisamente por isso: o Cameron e os Conservadores estão convencidos (ou estavam, na altura em que propuseram a hipótese do referendo) que o "Não" iria ganhar. Mas de notar que na altura os Conservadores queriam muito que a pergunta tivesse 3 opções: a independência, o status quo, ou um "não" mas com negociação de mais poderes para a Escócia. Claro que os indecisos votariam todos na 3a e mais manhosa mas que é também a mais segura, e apenas os mais nacionalistas na independência. Toda a gente sabe que a forma como a pergunta é feita influencia e de que maneira o resultado dos referendos... Agora é que está mesmo decidido que a pergunta é "Deve a Escócia ser um país independente? Sim. Não." que é do mais claro e simples que pode haver.

    Eu acho que a questão sobre a Escócia ser mais socialista do que o resto do UK também pesou na decisão dos Conservadores. Talvez calculem que sem a Escócia terão maoria quase garantida em todas as futuras eleições legislativas... Não consigo imaginar um governo Trabalhista a propor este referendo, seria um suicídio para o partido em termos eleitorais.

    Mas bom, os próximos meses vão ser decisivos para medir o nível de hipocrisia dos ingleses e eu quero ver como se vai desenrolar a campanha do "Não", especialmente a sul da muralha de Adriano. E como irá o Primeiro-Ministro britânico se comportar na arena internacional relativamente à Escócia, especialmente na UE.

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