segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Conversas entre egos e ténis

O Mak diz que por vezes mete conversa com os seus ténis; a mim, são sempre os meus ténis que metem conversa comigo. E a conversa é sempre a mesma. É coisa de meninos mimados e birrentos e com todos os estratagemas habituais de tais criançolas para alcançarem o que querem. Inútil, muito inútil. Porque perdem sempre.



Mas a conversa, de tão regular que se tornou previsível, é uma coisa notável. Envolve caretas internas, cartoons de diabos e anjos cada um a puxar para o seu lado, lágrimas e gritos arreliados de uma das partes. Porque os meus ténis não entenderam ainda que a minha alma viciou naquele sentimento incrível que é levá-los ao limite. Pronto, se calhar porque são eles que têm que fazer esse esforço, sem benefício nenhum, enquanto a alma arrecada a parte boa disto tudo sem mexer uma palha. Limita-se a pairar neste aglomerado de ossos e chicha a ver as vistas enquanto os ossos e a chicha trabalham como nunca. Se calhar é normal que haja tentativas de manifestação de vez em quando (sim, tentativas, isto aqui é uma ditadura e não há cá protestos para ninguém. Quem manda é o ego.)

Dizia eu que a conversa é sempre a mesma. E desenrola-se mais ou menos assim:

Véspera da corrida
Alma/Ego: "Oh joy! oh joy! oh joy! Amanhã é dia de corrida! Mal posso esperar! Tornozelos, tudo ok? Joelhos, não inventem, hã!... Anca, 'tás fina? Hahaha, brincadeirinha! A sério, pessoal, 'tá tudo em ordem?"
Ténis/Corpo: "'Bora!!!!" *grande sorriso*




No início da corrida:
Alma/Ego: "Oh, espetacular, este fresquinho na cara, os pés na estrada, só eu e os meus ténis, e estas pessoas todas no passeio a pastelar, EXCUSE MOI, MOVE!"
Ténis/Corpo: "Oh, espetacular, este fresquinho na cara, eu na estrada, só eu e a minha alma, e estas pessoas todas no passeio a pastelar, EXCUSE MOI, MOVE!"



2-3k:
Alma/Ego: "Oh, olha para mim, um pé à frente do outro, sempre a seguir, que sensação de outro mundo, 'tou quase a chegar ao arco lá do fundo. E a felicidade que me faz rimar!"



Ténis/Corpo: "Eer... Ok, isto 'tá a ficar desconfortável. Não 'tou a gostar disto. Pára lá, vá, vamos para casa."


5-6k:
Alma/Ego: "É daqui a meia-hora, daqui a meia-hora é que chega a descarga do sentimento de limite ultrapassado, aguenta!"
Ténis/Corpo: "O QUE É QUE ESTÁS A FAZER, CHEGA, CHEGA!!! EU NÃO AGUENTO MAIS!! PÁRA, PÁRA!!! CHEGA, NÃO GOSTO DISTO, 'BORA PARA O SOFÁ, 






*muda para voz lânguida e meiga* lembra-te da mantinha fofinha que lá temos, o puff, sim, isso, o puff, gostas tanto daquele puff!... Esticar as pernas... Lencinhos para te assoares, um banhinho quentinho..."



E é aqui, nestes dois quilómetros, que reside a ciência toda da matreirice do bicho porque é quando ele se faz mesmo de infeliz e de extremamente cansado e de ai-ai-ai-que-eu-não-aguento-mais. Mas aguenta, ai aguenta, aguenta! Se eu não soubesse melhor caía na esparrela. Porque a seguir vem a fase do esforço verdadeiro, mas do esforço dominável:

6k:
Alma/Ego: "*respira fundo (sim, a minha alma também respira fundo)* 'Bora lá. Já 'tá mais de metade. Não custou nada a primeira, e já vamos aqui, oh! *vai alencando as ruas paralelas à Avenida Louise:* "Rotunda grande, torre do coiso, Vleurgat, Bailli, o Workshop Café..."
Ténis/Corpo: "AAAAAARGGH!!!" *tenta arrancar os fones dos ouvidos porque já lhe irrita toda e qualquer música de motivação. Tenta cuspir para o chão só por despeito (e porque já não aguenta a gosma que se acumula com o esforço). Não chega a pisar esse risco vergonhoso.*


7-8k:
Alma/Ego: "Estás a ir lindamente, S., ainda corríamos mais 2 ou 3 depois dos 10, hã?"
Ténis/Corpo: *chora baixinho, vencido, e finalmente sem os dramas do esforço falso os 5-6k, mas admitir que se calhar, se calhar, até corria mais esses 2 ou 3.*


9-10k:
Alma/Ego: "Ui, afinal não, vamos até aos 10k e vai-se lá saber como!"
Ténis/Corpo: "Um, dois, um, dois, um, dois, um, dois, um, dois, um, dois, um, dois" *os ténis já não me falam. Irão provavelmente ignorar-me o resto do dia, e no dia a seguir também, até à sessão longa dos alongamentos, manifestando o seu desagrado com uma dor no joelho, um ardor na anca, ou uma valente picada no tornozelo. É quase sempre fita, também.*



10k:
Alma/Ego: "A PORTA DE CASA, JÁ VEJO A PORTA DE CASA!!!"
Ténis/Corpo: "A PORTA DE CASA, JÁ VEJO A PORTA DE CASA!!!" *lembram-se que não me falam, cruzam os braços, e empinam o nariz.*



E pronto, é com isto que tenho que lidar. Um senhor corpo que tem sempre a mania que a meio já não aguenta mais e grita e esperneia e quando não funciona finge-se de meigo para me tentar convencer que é verdade. Não sei se isto se passa com todos os corredores, se sim, desconfio que se torne numa conversa cíclica, estou-bem-isto-está-a-ficar-desconfortável-chega-CHEGA-estúpida-pronto-'tá-bem-bora-estamos-a-ir-bem-isto-está-a-ficar-desconfortável-chega-CHEGA-estúpida... ad nauseum. Prefiro acreditar que se torna numa conversa mais pacífica, mas tenho as minhas dúvidas.



S.    

4 comentários:

  1. Ah, ah, ah! Muito bom. Também tenho de escrever o meu monólogo enquanto corro.
    Quanto aos ténis, faço-lhes frequentemente festinhas antes de irmos correr e eles não se costumam queixar (já o corpo...)

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  2. Sim, força! Tenho muita curiosidade em saber o ciclo de esforço que outros corredores enfrentam.

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  3. Os teus ténis, dentro de uma certa mariquice, até são educados. Os meus oscilam entre o filosófico pensador e o carroceiro.

    Porventura, um bocadinho como o dono...

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  4. Os meus são só pica-miolos e barulhentos. Nunca inovam, nem para a filosofia nem para a brejeirice. É uma monotonia.

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