sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Um-dó-li-tá feminista

"I think about the implications of the twerking class A LOT – some might say too much. I wish I could say that I decided twerking is actually a feminist thing to do because it’s my choice and because it’s fun. That would be neat, but I don’t buy it. I don’t think every choice is a feminist choice, otherwise feminism would just be ‘women doing stuff’ – there’s got to be more to it than that." Daqui.

As escolhas que fazemos e o feminismo: se há coisa que me dá mais voltas à cabeça é o tema da escolha, do livre arbítrio, e da liberdade nisto da igualdade de género. No artigo do excerto acima, a questão está explicada de forma tão clara que me apeteceu enviar um abraço bem apertado à autora.

Um dos objetivos máximos do feminismo, como eu o entendo, é que tanto homens como mulheres sejam livres para serem o que quiserem sem estarem constrangidos por regras socialmente construídas sobre o que é suposto um homem ou uma mulher serem. No fundo, que as categorias "coisas de gajo" e "coisas de gaja" desapareçam (e não me façam falar das categorias muito cristalizadas do "presentes para ele" e "presentes para ela" que pulala por todo o lado nesta altura do ano, que ganho azia e tenho uma tarte de maçãs para ir acabar de devorar). 

Dito isto, aparentemente qualquer escolha que uma mulher faça, o feminismo aquiesce. Pois se foi uma mulher que a fez! E se as mulheres na nossa sociedade europeia são livres! Seja o que for, é uma escolha feminista, e só nos resta bater palmas. Eu, tal como a autora do texto, tenho uma grande dificuldade em acreditar que isto seja assim tão simples. Se o feminismo é sobre tudo o que desejamos que ele seja, então passa a ser sobre nada. Se tudo o que qualquer mulher faça é "feminista", então o feminismo passa a ser "coisas que as mulheres fazem" e limita-se a aprovar o status quo, em vez de o desafiar. 

Conheço as lutas internas e externas lançadas contra o feminismo por esta questão da livre escolha. Particularmente na 2ª vaga, lá pelos anos 60-70 do século XX e quando as feministas começaram literalmente a queimar sutiãs em reivindicação pela liberdade de fazerem o que quisessem com os seus corpos, incluindo quando, como e se dariam à luz, mas também pela entrada plena e em iguais condições no mercado de trabalho, as críticas foram acérrimas. O ideal de dona-de-casa, a própria maternidade, começou a ser violentamente contestado pelas feministas. A mulher independente financeiramente, formada, com carreira de sucesso era a aspiração. A vida doméstica era entendida por várias feministas como algo redutor, e críticas lançadas às mulheres que escolhiam ser donas-de-casa como abandonando a luta feminista, como sendo escravas da família, etc, etc. E estar agora a ler isto parece que estou a falar do presente, onde tantas vezes se continua esta discussão sobre donas-de-casa e feminismo e a compatibilidade ou incompatibilidade dos dois. Mas agora a novidade é que a mulher é suposto ser tudo, não só profissional de carreira brilhante, mas culta, muito lida, muito viajada, boa na cama, belíssima a cozinhar, belíssima num vestido 34, mãe perfeita, sorriso brilhante, sempre pronta a ajudar as amigas, sempre pronta a ajudar os pobres, sempre pronta. As críticas, hoje, são lançadas sempre que uma mulher desiste de qualquer uma para se concentrar só numa outra. Por isso eu sei que o feminismo, ou alguns movimentos do feminismo, tiveram a sua dose de culpa na complexa e por vezes difícil convivência da escolha e do ser feminista. 

Mas para que se mantenham as coisas em perspetiva, quero deixar claro que o feminismo não foi, e continua a não ser, um movimento de maiorias. As mulheres dos anos 60-70 não eram todas feministas, nem sequer a maioria o era, e uma pequenina minoria apenas conseguiu ser ouvida porque era mesmo muito barulhenta e fazia coisas espetacularmente escandalosas como queimar sutiãs e cortar o cabelo curto e assim. Portanto as críticas contra as donas-de-casa nunca foram as de uma nova maioria opressora, onde o novo status quo era a da mulher de sucesso profissional, contra uma minoria doméstica. Foi simplesmente um novo paradigma de vida que começou a aparecer numa classe média-alta, formada e com mais oportunidades que o resto da população, e visto como o novo ideal nessa minoria da população.

Ainda hoje, mesmo com a questão da mulher perfeita e multifacetada, surgem por vezes artigos a questionar se é possível uma feminista deixar tudo para se tornar mãe a tempo-inteiro, ou algumas vozes que se levantam por vezes a lamentar o quanto uma mulher formada que abandona a carreira promissora para se dedicar aos filhos é um insulto às feministas que tanto lutaram para abrir o caminho da independência financeira e profissional às mulheres. Eu, que tenho as minhas sérias dúvidas em relação ao ideal de maternidade e que olho para a coisa com muitas suspeitas, e um par de óculos com lentes nada cor-de-rosa, sei ainda assim melhor do que dar razão a estas vozes e juntar-me ao coro das anti-mães-a-tempo-inteiro. E não é pela razão que toda a gente invoca sobre "cada um faz o que quiser e ninguém tem nada que ver com isso". Odeio profundamente este argumento. Não é porque seja contra ele, é pelo seu relativismo que não contribui para nada. Eu sei que cada um faz o quer, vivemos numa democracia onde a liberdade é um valor máximo, porra. Mas se não se puder discutir as escolhas de cada um, os caminhos diferentes que existem, e indagar por que fizeram aquela escolha em vez de outra, então para que serve essa liberdade também? Atenção que isto é diferente da fofoca maldosa: questionar por que certas escolhas são feitas em vez de outras pode ser um exercício bastante elucidativo e construtivo se não se for pelo ataque pessoal e pelo julgamento moral. (Tentei fazer isto aqui, sobre a questão das mulheres e da maquilhagem durante provas de esforço. A discussão que se seguiu nos comentários foi bastante proveitosa).  

Acho sempre que o busílis da questão das escolhas é a liberdade. E nisto eu sou muito cética: não acredito que a maioria das mulheres, em vários domínios, tenha a liberdade suficiente para poder escolher de forma verdadeiramente livre (passo a redundância) entre diversas opções. Não estou a falar de liberdade formal, como é óbvio. Mas a liberdade verdadeira não passa só pela lei, passa sobretudo pela verdadeira igualdade de oportunidades. E é por isto que o feminismo ainda é preciso. Se uma mulher trabalha a tempo-inteiro, se não existem creches na sua zona de residência ou se as que existem são caras e de horários de funcionamento reduzidos, se o seu empregador não tem uma política flexível de trabalho, e se não conseguir conciliar os horários com os do seu parceiro, então é muito normal que a mulher quando tiver um filho opte por se dedicar a ele a tempo-inteiro. Foi uma escolha? Foi, ninguém a mandou embora do emprego, ninguém lhe encostou uma pistola à cabeça e disse "tens de ser mãe a tempo-inteiro", ninguém a obrigou a engravidar. Foi uma escolha verdadeiramente livre? Não, foi condicionada pelas circunstâncias. Mas não são todas as escolhas condicionadas pelas circunstâncias? Pronto, está bem. Mas esta é condicionada fortemente pelo facto de ela ser mulher, pelo que a sociedade espera dela enquanto mãe, e pela forma como o mercado de trabalho está mal adaptado à vida familiar (tanto das mães como dos pais. De certo que se o pai quisesse flexibilidade no trabalho para poder cuidar do filho seria tão ou mais difícil de obter. Mas é a mulher que é suposto cuidar dos filhos, é a sua carreira a primeira sacrificada nestes cálculos).

E quem diz reconciliação carreira-família diz outra coisa qualquer. Muita tinta correu sobre o vídeo da Miley Cyrus nos MTV VMAs. Antes de se atacar a rapariga (ou mesmo em vez de) deve-se questionar o que a levou a escolher aquela via. Será que é uma estratégia de marketing dos seus agentes porque a polémica e a hipersexualização feminina vendem? Será que genuinamente se quer expressar através da sexualidade? Apenas no caso da última seria uma escolha verdadeiramente livre.

Por falar na Miley, no artigo acima toda a introspeção da autora é à volta da aula de twerking que ela experimentou e gostou, e a conciliação de isso com o seu feminismo. Ela diz que tem fortes dúvidas de que a sua escolha de frequentar aquelas aulas seja uma escolha "feminista", e questiona-se profundamente sobre o que a levou a escolher algo tão sexualizado e veículo de hipersexualização e objetificação da mulher nos videoclips e afins. O que ela acaba por dizer é uma coisa que fez um clique na minha cabeça e juntou as peças deste aparente paradoxo do feminismo numa coisa mais clara:

"People get very angry about feminism ‘stopping women doing things’ but surely achieving any kind of change is going to require some sacrifice? (...) Maybe it’s just that the feminism appears to ask of us (although, contrary to the stereotype, I have never actually heard a feminist say ‘all women must do this’ about anything) are all connected to the meat-and-blood of our lives: relationships, marriage, bodies, things that cut to the very core of us. To take a feminist stance on everything would be exhausting, and probably untenable."

Basicamente, nem todas as escolhas que fazemos são escolhas feministas, mas isso não faz mal. Mesmo que nos consideremos feministas. Fazê-lo seria extenuante e provavelmente por vezes incompatível com outros valores que tenhamos. E porque uma escolha feminista não tem que ser o grau absoluto da moralidade; às vezes posso apenas querer divertir-me numa aula de twerking. Mas não tenho que querer que o feminismo aplauda e ache muito bem, porque, lá está, se o feminismo é sobre toda e qualquer escolha que uma mulher faça, então é sobre nada.

Ela dá o exemplo dos ambientalistas, e questiona-se se terão eles o mesmo nível de introspeção que as feministas parecem ter:

"I wonder if other movements suffer this level of introspection: whether climate change activists write long blog-posts about whether or not they should fly to America."

É uma comparação legítima. Será que um ambientalista, antes de entrar num avião, se questiona sobre se não estará a dar um pontapé no que defende por contribuir para um dos meios de transporte mais poluentes? No final, a decisão de voar poderá ter que ser feita por questões práticas e porque se calhar, simplesmente não há alternativa para ir daqui à América sem ser voando. Não foi uma escolha verdadeira, portanto, foi condicionada por falta de alternativa. Nunca dirá, no entanto, que a sua escolha foi uma escolha amiga do ambiente.

Talvez a questão maior aqui seja então: o que é uma escolha feminista? E provavelmente não há questão mais difícil de responder neste tema todo porque, quem é que decide o que é feminista e o que não é? Se nem o feminismo é um movimento unitário ou consensual (não tem que ser, aliás)...

Eu acho que se as nossas escolhas forem conscientes, questionadas antes de serem tomadas sobre o verdadeiro porquê de as estarmos a tomar (pura diversão como no caso da autora do artigo, questão prática, ou porque estamos a ceder a uma pressão social) e se não prejudicarem outros, então acho que se não for uma escolha feminista, é pelo menos uma escolha de consciência feminista tranquila. Por exemplo, eu ontem escolhi ver A Bela Adormecida e não foi uma escolha feminista de todo, foi uma escolha de saudosismo agudo de infância. E, oh, às conclusões que eu cheguei. (Fica para o próximo.)






S.

3 comentários:

  1. O teu último parágrafo remata perfeitamente a discussão. Ninguém pode viver em constante consciência das suas escolhas e da liberdade (ou falta de) que as sustenta. Se houver consciência de que estamos sempre condicionados de certa forma, já é um avanço.
    (e nem vamos trazer para a discussão o facto de haver muitas mulheres que preferem que haja quem escolha por elas, porque isso de assumirmos as nossas escolhas também pode dar cá uma trabalheira...)

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  2. And by the way:

    http://www.glamour.com/entertainment/2013/12/rashida-jones-major-dont-the-pornification-of-everything

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  3. gralha: concordo, é difícil e mesmo muito cansativo questionar incessantemente porque escolhemos o que escolhemos. Mas o oposto, deixarem que escolham por nós ou irmos com a corrente é assustador, é viver a vida dormente e de olhos fechados.

    Luna: concordo com o argumento do artigo sobre a hipersexualização de tudo e a indústria mainstream da música está uma desgraça. Mas achei o texto um bocado contraditório e judgemental. #stopactinglikesluts, a sério? Eu sei que o Twitter não é propriamente o sítio para grandes nuances mas esta tirada pareceu-me muito desnecessária. Slut-shaming não pode ser o caminho.

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