segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Media, é assim mesmo #8

Ia inaugurar nova rubrica, que seria exatamente o contrário desta, mas tenho medo. Programas muito errados a vários níveis, incluindo o nível sexista, é o que não falta por aí e as razões de muitos deles serem sexistas são demasiado óbvias para tornar a tal rubrica sobre o que os media andam a fazer de errado interessante. Por isso vou tentar fazer a proeza de advogar a favor do diabo para ver se no final, este programa que tem tudo para se tornar numa guerra dos sexos do mais baixo que há, consegue afinal dar a volta e sair exemplo. Um bocado aquilo do ser tão mau que se torna bom, de tão mau que é.

Eu ultimamente tenho andado complacente que mete nojo. Mete-me nojo a mim, porque dou comigo a olhar para coisas evidentemente erradas feministicamente e a tentar justificá-las cheia de benevolência: "deixa lá, se calhar o rapaz não disse aquilo por mal, ele até é boa pessoa"; "este texto não é assim tãão mau, já li coisas piores"; "é claro que esta besta iria dizer isto, qual é o escândalo". Estou numa demasiado zen, de tentar desesperadamente justificar a justiça das coisas como elas são, de compreender a posição da pessoa que está do outro lado que temo estar a tornar-me numa daquelas pessoas amorfas, em que nada acredita, nada lhe causa ultraje ou incómodo moral, porque se posiciona sempre no meio confortável das polémicas, aquele meio onde se aceita os argumentos dos dois lados como válidos, mesmo quando são contraditórios, só para dar a ideia que somos muito balanceados nas nossas posições, quando na verdade não temos é nenhuma. Tão mais confortável viver assim.

Foi neste marasmo complacente que eu comecei a ver um programa chamado "Don't Tell the Bride" na BBC3 e só este meu marasmo pode explicar a sua inclusão nesta rubrica. Mas nem tudo está perdido e eu vou tentar justificar-me ser recorrer à tal técnica do meio confortável. Vamos também esquecer por uns momentos o que eu havia dito há uns meses sobre como instalar TV por cabo seria uma ideia tão brilhante por me ir ajudar a sintonizar o ouvido na língua francesa, já que passamos é os nossos serões com Family Guys, Don't Tell the Brides, telejornais BBCianos e Russell Howard's Good News. As culturas linguísticas são como as economias de escala, difícil de entrarmos nelas mas quando chegamos a um certo nível é só lucro, não conseguimos nos fartar.

Mas sobre o programa.

Don't Tell the Bride tem o cunho dos programas da TLC, como aquele dos concursos de beleza para meninas bebés, ou aqueles muito manhosos da MTV, sobre a vida cheia de drama das adolescentes com bebés nos braços. São temas que são genuinamente dramáticos mas que são apresentados de uma maneira puramente sensacionalista, numa exploração gratuita de problemas pessoais ou escolhas problemáticas para o puro entretenimento da batata de sofá, sempre a pedir que exclamemos um "eeeeh, que horror, há pessoas com vidas tão piores que a minha e tão mais más pessoas do que eu!". O Don't Tell the Bride não é tão mau porque não se trata realmente de um problema, mas a intenção é a mesma: suscitar sentimento de superioridade e uma espécie de "mas o que é que estavam à espera?!" também muito característica deste lixo televisivo.

Imaginem um homem e uma mulher que vão casar. Estão a ver um programa que segue todo o processo de planeamento do casamento? Pouco interessante, né? Então imaginem que é o noivo sozinho que terá que escolher, planear, organizar e gerir tudo, desde o tema ao local da boda, incluindo o fato da noiva, a decoração e os convites. E agora imaginem que eles escolhem os casais em que as mulheres são para cima de picuinhas e drama queens, só para elevar o potencial de drama ao infinito. Já parece ultra-divertido, não?



É incrivelmente fascinante. Primeiro porque eu não sabia que a boa organização de um casamento era suposto advir de um gene que na lotaria genética infelizmente só calhou nas fêmeas humanas. Deve ser como o gene das limpezas, ou do bem passar camisas a ferro. Segundo porque eu não sabia que a escolha errada de um vestido de casamento era razão para finalizar uma relação de vários anos. Terceiro porque há pessoas que ficam genuinamente afetadas por causa de um convite de casamento ter a cor errada. Quarto porque eu não sabia que casar na altura do Natal era inadmissível.

É a premissa do programa o que mais me irrita. A ideia de que é tão inconcebível que um homem possa ter jeito para organizar uma festa, ainda por cima A festa por excelência de qualquer vida de qualquer mulher, a ideia de que o casamento quer dizer coisas tão diferentes seja a pessoa homem ou mulher, que o bom gosto seja uma prerrogativa feminina, que meter um homem a planear o PRÓPRIO casamento seja digno de ideia original para um programa de televisão. No fundo continuamos a manter pressupostos extremamente vincados sobre no que é que homens e mulheres são bons e no que não são. Admito que uma visão do mundo regida por estes pressupostos é uma visão muito arrumadinha, linear e confortável. Terá a sua utilidade, porque as pessoas desse grupo terão tendência a comportar-se assim. Mas é simplisticamente redutora, extremamente injusta para com o indivíduo e, pior que tudo, é auto-realizável. Eu posso não ter a mínima paciência para escolher entre uma rosa ou uma margarida num bouquet, ou se o coral conjugará melhor com a decoração do que o rosa pastel, mas é bom que aprenda a tê-la, se afinal sou mulher, dir-me-á a sociedade sob várias formas, às vezes tão explicitamente quanto este programa. Não será o meu futuro marido que terá essa paciência, de certo, continua ela, cheia de desprezo. 


Mas o mundo não é assim tão linear e eu cada vez que vejo aquele programa penso no próprio homem que está ao meu lado, tão fascinado quanto eu a ver aquele programa (porque isto é mesmo como os acidentes de carro, não dá para parar de olhar), nos homens das minhas amigas, nos meus amigos, em conhecidos magistralmente criativos e dou-me conta que tenho inúmeros exemplos de que o mundo não é mesmo nada como nos tentam vender, arrumadinho em "coisas de gajo" e "coisas de gaja". Pode sê-lo, segundo os gostos oficiais e no que as pessoas terão tendência para fazer (não consigo imaginar nenhum amigo a tratar sozinho do seu futuro casamento. Nem nenhuma amiga a deixá-lo.) Mas poria as mãos no fogo por muitos deles em como, se por alguma razão tivessem que organizar o casamento sozinhos, fá-lo-íam de maneira tão ou mais criativa que as suas caras-metade. Porque sabem qual é a verdadeira ironia deste programa, não sei se propositada ou inconsciente e motivada apenas pelo desejo do final feliz típico? É que os casamentos ali acabam sempre por ser festas originais e com coisas extremamente criativas. Não se nota que não houve ali "mão feminina". Se calhar porque isso da "mão feminina" é uma grande treta. 


Houve um, por exemplo, que quis casar em Nova York (aquilo é tudo pessoal do UK e o orçamento que eles têm para gerir é apertado). No meio de alguns (grandes) fails, como o noivo ter que skypar familiares a pedir dinheiro porque o orçamento não ia chegar e o vestido de noiva ser incrivelmente, hmm, revelador à frente, a ideia original acabou por ser brilhante: casaram no Central Park, perto da estátua da Alice no País das Maravilhas porque esse era o nome da noiva e o seu livro preferido.

No que toca a tarefas quintessencialmente femininas, os homens safam-se mesmo muito bem. A sério, mulheres. Comecem a dar-lhes mais crédito do que pensar que têm ao vosso lado uma pessoa que tem tão bom gosto quanto um ganso daltónico, ou um ser incapaz que não consegue meter umas peúgas na máquina de lavar (ouvirei sempre com eterna estupefação aquela espécie de orgulho mascarado de impaciência condescendente com que muitas mulheres proferem a frase: "O meu marido não tem jeito nenhum para [inserir tarefa secularmente atribuída às mulheres mas incrivelmente monótona como lavar roupa, escolher roupa, passar roupa a ferro, comprar roupa, limpar/lavar a casa no geral]. É mesmo homem." Ai sim? E vós, tendes jeito, é isso? Ou tivestes que o ganhar, assim como também ele o pode?). Dai mais crédito às capacidades uns dos outros, vá lá.

Resumindo: este programa é lixo televisivo porque a sua intenção é colocar os espectadores num falso nível moral superior e fazê-los validar uma imagem do mundo simplista, mostrando uma coisa de forma acrítica mas enviesada de forma a que possam ser os espectadores a criticar de forma óbvia. Aqui, é contra as mulheres: "Ahahahahaha, estava-se mesmo a ver, foste deixá-lo planear as coisas querias o quê, agora chora!" e contra os homens: "Ahahahahaha, olha para aquele parvo, a escolher o fato mais terrível que ali está, os homens realmente não têm bom gosto!", perpetuando a tal visão do mundo muito estereotipadamente arrumadinha, que afinal já tinham e que este programa só vem confirmar. O truque de inconsciente brilhantismo são os casamentos acabarem por ser festas com elementos bastante originais, com coisas que talvez nem passassem pelas cabeças das noivas como opções, mas que funcionam. E, espero eu, saem dali de relação reforçada, a noiva com renovada admiração pela pessoa que tem a seu lado como capaz de uma tarefa que achou impossível. Tudo isto um resultado inconsciente, claro. Nem eu no meu marasmo complacente admito que os fazedores do programa são feministas camuflados.    



  S.                

4 comentários:

  1. high five para a estupidez de se achar que o casamento é o supremo highlight da vida de uma mulher, como se as mulheres vivessem para isso. Aí há tempos andei a ver uns episódios de uma novela brasileira da sic e há lá uma personagem que é uma jovem com cancro mas que quer casar antes de morrer. Então no dia do casamento, ela no altar com o noivo e ouvem-se os comentários dos convidados: "realmente não se sabe qual o futuro desta rapariga, mas ao menos morre feliz, realizada".

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    1. Ui, sim. Isso parece aquele livro virado filme do Nicholas Sparks, da rapariga k tb se casa mesmo antes de morrer. Toda a gente acha aquilo o supra sumo do romantismo. Eu sempre achei aquilo meio mórbido.
      Lembro-me de quando era mais novinha me fazer confusão dizerem que o casamento era o dia de maior nervosismo na vida de uma mulher e eu questionar muito se o dia de apresentar uma tese perante um painel de avaliadores numa prova pública, ou o dia de uma operação qualquer ou até mesmo o dia do exame de condução! se não teriam um nível potencial de nervosismo bem maior..
      Eu não tenho nada contra casamentos, penso até fazê-lo um dia, mas daí a ser o pínaclo da minha felicidade e ambição vai uma distância muito grande.

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  2. Do que tu foste falar... Até no lixo televisivo já se activam os radares do feminismo, onde é que vamos buscar os nossos guilty pleasures?? Estou a ler um livro maravilhoso mas que me está a dar uma estereótipococeira desgraçada, já não sei para onde me virar que não me sinta incomodada na minha condição de mulher.

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    1. Isto é um dos meus mais recentes guilty pleasures, divirto-me muito a ver. Se calhar por isso é que tentei justificar isto de forma a tornar-se aceitável feministicamente! Infelizmente os meus radares feministas ativam-se sozinhos, é uma maçada, e raramente consigo calar a vozinha da consciência feminista. Resta ignorá-la de vez em quando

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