"E tu, S., de que te mascaraste ontem, domingo de Carnaval?"
Ora, eu vesti a minha máscara de corredora e lá fui eu por esses caminhos bruxelenses afora, armada em atleta.
Agora a sério. Se há coisa que eu agradeço por viver em Bruxelas é não ter que levar com o Carnaval aí pelas ruas, gente mascarada, apitos, música sambaesca e afins característicos da época. Nem preciso de saber que é Carnaval, posso deslizar por esta festividade numa inconsciência abençoada que muito agradeço.
Mas vesti-me de corredora, sim senhora. Foi o meu último record de distância antes da meia-maratona em Lisboa, a corrida da ponte, como a gosto de pensar, que é já daqui a duas semanas. Foram 17.85 km (eu ainda não me dignei a arranjar uma coisa para medir caminhos. Calculo-os antes de sair para correr e confirmo quando volto, no site muito catita do Mapmyride. Aqueles 150 m deixaram-me um bocadinho piursa na altura de confirmar o que tinha mesmo corrido).
Estes praticamente-18-km significam praticamente-2-horas a correr e eu ainda não sei o que sinto realmente em relação a isto.
A corrida entrou na minha vida como um vendaval e eu tenho com ela a relação mais estranha que já tive com qualquer outra coisa. E não faço ideia onde ela vai culminar. Já fiz as pazes com o facto de ter sido uma batata de sofá durante tanto tempo, de odiar as aulas de educação física, de odiar desporto, de ter tentado tantas vezes incorporar exercício na minha vida e continuar a odiá-lo, e de agora ter metido na cabeça que ia correr uma meia-maratona porque sim. Já não me interessa que não me conheça, e agora a surpresa deste compromisso virou confiança absoluta de que se eu consigo fazer uma coisa tão fora da minha (antiga) zona de conforto, então consigo fazer qualquer coisa que possa imaginar. Pior (ou melhor, vá): o meu corpo consegue fazer coisas incríveis. E eu não fazia ideia. E precisamente por causa disto ganhei-lhe um respeito imensurável, tenho por ele uma admiração e carinho tão grandes que só me apetece é continuar a correr mais longe, a correr mais rápido para continuar a puxar-lhe os limites, a fazê-lo feliz, a cumprir-lhe o destino biológico para o qual ele foi feito, animal que é.
Isto parece um bocadinho esquizofrénico, falar do meu corpo na terceira pessoa, até porque é mais como a
gralha disse há pouco tempo: a minha relação com o meu corpo mudou desde que eu percebi que o meu corpo sou eu, não é um trambolho que arrasto de má vontade, e que portanto fazê-lo feliz, metendo-o a mexer e recompensando-o, só me fará a mim feliz.
E eu digo que a corrida é a relação mais estranha que eu já tive com alguma coisa porque eu não sou só feliz a correr. Aliás, eu raramente sou feliz a correr. Geralmente sou derrotista, às vezes sou aborrecida, tantas vezes penso "o que é que estás a FAZER?! vai para casa, JÁ!", muitas vezes aperto as luvas que levo na mão com tanta força que quase sinto as unhas a cravarem-se na palma, já me deu vontade de chorar com o esforço. Mas há mesmo muito poucas coisas tão boas nesta vida como o primeiro passo que dou na rua antes de começar um treino quando me sinto leve, leve, leve, ou receber olhares esbugalhados de pessoas encasacadas por ver uma menina de sorriso maníaco a correr de t-shirt quando estão pouco mais de zero graus, ou a vista da minha porta, já mesmo ali, 17 km depois e quase a chorar de alegria. E acordar nervosa antes dos treinos de maior distância, ao fim-de-semana porque sei que vem aí luta física e, muito provavelmente, quase duas horas que custam a passar. Nervosa! Como se fosse algo que não dependesse de mim absolutamente só, algo que só a mim me dissesse respeito, para o qual não tenho absolutamente nenhuma amarra.
Já tive dias que não me apetecia ir, manhãs que prolonguei na cama até quase ao limite da tarde porque já sabia o que me esperava assim que me levantasse. Já lamuriei ser dia de ir correr e temi que o meu entusiasmo com a corrida estivesse a desvanecer-se, como é tão normal com estas paixões explosivas mas efémeras. Houve dias em que me respeitei a mim própria, quando a vontade era tão negativa, e não fui, ficou para o dia seguinte.
Porque isto foi o que eu descobri e que me surpreendeu ainda mais do que se a paixão se tivesse desvanecido: eu acabo sempre por ir. E eu não sei explicar porquê nem o que me impele. A saúde não é, a perda de peso muito menos, a competição ainda menos. Diz que é a adrenalina. Talvez. Confissão um bocado envergonhada: às vezes dou por mim a vir do trabalho a pé e apetecer-me desatar a correr pela rua, qual cavalo galopante, só porque sinto falta da corrida e porque aquelas ruas são-me familiares do treino. É uma vontade um bocado desconcertante, de tão animalesca.
Uma rapariga que eu mal conhecia mas com quem falei entusiasticamente durante meia hora sobre isto das corridas, e que já tinha corrido quatro maratonas só no ano passado (!!!) disse-me assim: se tu queres correr uma maratona, fá-lo. Mas fá-lo por ti própria, aliás, tens que querer fazê-lo apenas por ti própria porque mais ninguém vai querer saber. Ninguém vai querer saber da distância que tu correste, do tempo que demoraste, nem do que te custou. Por isso só podes fazê-lo por ti.
E eu acho que é exatamente por isto que eu acabo por ir. Porque ninguém me obriga, nem eu tenho um compromisso com ninguém. Tem que ver única e exclusivamente com o que eu sinto, e com o que sei que sentirei assim que terminar a prova/treino.
É também por estas palavras sábias da minha mal-conhecida das maratonas que eu termino o post. Já chega, e ninguém quer saber. ;)
S.