segunda-feira, 3 de março de 2014

A máscara de atleta

"E tu, S., de que te mascaraste ontem, domingo de Carnaval?"

Ora, eu vesti a minha máscara de corredora e lá fui eu por esses caminhos bruxelenses afora, armada em atleta.

Agora a sério. Se há coisa que eu agradeço por viver em Bruxelas é não ter que levar com o Carnaval aí pelas ruas, gente mascarada, apitos, música sambaesca e afins característicos da época. Nem preciso de saber que é Carnaval, posso deslizar por esta festividade numa inconsciência abençoada que muito agradeço.

Mas vesti-me de corredora, sim senhora. Foi o meu último record de distância antes da meia-maratona em Lisboa, a corrida da ponte, como a gosto de pensar, que é já daqui a duas semanas. Foram 17.85 km (eu ainda não me dignei a arranjar uma coisa para medir caminhos. Calculo-os antes de sair para correr e confirmo quando volto, no site muito catita do Mapmyride. Aqueles 150 m deixaram-me um bocadinho piursa na altura de confirmar o que tinha mesmo corrido).

Estes praticamente-18-km significam praticamente-2-horas a correr e eu ainda não sei o que sinto realmente em relação a isto.

A corrida entrou na minha vida como um vendaval e eu tenho com ela a relação mais estranha que já tive com qualquer outra coisa. E não faço ideia onde ela vai culminar. Já fiz as pazes com o facto de ter sido uma batata de sofá durante tanto tempo, de odiar as aulas de educação física, de odiar desporto, de ter tentado tantas vezes incorporar exercício na minha vida e continuar a odiá-lo, e de agora ter metido na cabeça que ia correr uma meia-maratona porque sim. Já não me interessa que não me conheça, e agora a surpresa deste compromisso virou confiança absoluta de que se eu consigo fazer uma coisa tão fora da minha (antiga) zona de conforto, então consigo fazer qualquer coisa que possa imaginar. Pior (ou melhor, vá): o meu corpo consegue fazer coisas incríveis. E eu não fazia ideia. E precisamente por causa disto ganhei-lhe um respeito imensurável, tenho por ele uma admiração e carinho tão grandes que só me apetece é continuar a correr mais longe, a correr mais rápido para continuar a puxar-lhe os limites, a fazê-lo feliz, a cumprir-lhe o destino biológico para o qual ele foi feito, animal que é.

Isto parece um bocadinho esquizofrénico, falar do meu corpo na terceira pessoa, até porque é mais como a gralha disse há pouco tempo: a minha relação com o meu corpo mudou desde que eu percebi que o meu corpo sou eu, não é um trambolho que arrasto de má vontade, e que portanto fazê-lo feliz, metendo-o a mexer e recompensando-o, só me fará a mim feliz.

E eu digo que a corrida é a relação mais estranha que eu já tive com alguma coisa porque eu não sou só feliz a correr. Aliás, eu raramente sou feliz a correr. Geralmente sou derrotista, às vezes sou aborrecida, tantas vezes penso "o que é que estás a FAZER?! vai para casa, JÁ!", muitas vezes aperto as luvas que levo na mão com tanta força que quase sinto as unhas a cravarem-se na palma, já me deu vontade de chorar com o esforço. Mas há mesmo muito poucas coisas tão boas nesta vida como o primeiro passo que dou na rua antes de começar um treino quando me sinto leve, leve, leve, ou receber olhares esbugalhados de pessoas encasacadas por ver uma menina de sorriso maníaco a correr de t-shirt quando estão pouco mais de zero graus, ou a vista da minha porta, já mesmo ali, 17 km depois e quase a chorar de alegria. E acordar nervosa antes dos treinos de maior distância, ao fim-de-semana porque sei que vem aí luta física e, muito provavelmente, quase duas horas que custam a passar. Nervosa! Como se fosse algo que não dependesse de mim absolutamente só, algo que só a mim me dissesse respeito, para o qual não tenho absolutamente nenhuma amarra.

Já tive dias que não me apetecia ir, manhãs que prolonguei na cama até quase ao limite da tarde porque já sabia o que me esperava assim que me levantasse. Já lamuriei ser dia de ir correr e temi que o meu entusiasmo com a corrida estivesse a desvanecer-se, como é tão normal com estas paixões explosivas mas efémeras. Houve dias em que me respeitei a mim própria, quando a vontade era tão negativa, e não fui, ficou para o dia seguinte.

Porque isto foi o que eu descobri e que me surpreendeu ainda mais do que se a paixão se tivesse desvanecido: eu acabo sempre por ir. E eu não sei explicar porquê nem o que me impele. A saúde não é, a perda de peso muito menos, a competição ainda menos. Diz que é a adrenalina. Talvez. Confissão um bocado envergonhada: às vezes dou por mim a vir do trabalho a pé e apetecer-me desatar a correr pela rua, qual cavalo galopante, só porque sinto falta da corrida e porque aquelas ruas são-me familiares do treino. É uma vontade um bocado desconcertante, de tão animalesca.

Uma rapariga que eu mal conhecia mas com quem falei entusiasticamente durante meia hora sobre isto das corridas, e que já tinha corrido quatro maratonas só no ano passado (!!!) disse-me assim: se tu queres correr uma maratona, fá-lo. Mas fá-lo por ti própria, aliás, tens que querer fazê-lo apenas por ti própria porque mais ninguém vai querer saber. Ninguém vai querer saber da distância que tu correste, do tempo que demoraste, nem do que te custou. Por isso só podes fazê-lo por ti.

E eu acho que é exatamente por isto que eu acabo por ir. Porque ninguém me obriga, nem eu tenho um compromisso com ninguém. Tem que ver única e exclusivamente com o que eu sinto, e com o que sei que sentirei assim que terminar a prova/treino.

É também por estas palavras sábias da minha mal-conhecida das maratonas que eu termino o post. Já chega, e ninguém quer saber. ;)




S.

12 comentários:

  1. E quem disse que ninguém quer saber, eu quero!

    ResponderEliminar
  2. Oh, oh mãe mas a ti está subentendido! Está no contrato que assinaste quando eu nasci :D

    ResponderEliminar
  3. Oh, eu também vinha dizer que também gosto de ouvir estes relatos, mas agora sinto-me a intrometer-me :)

    mas aqui vai: gosto destes relatos porque são tão diferentes dos relatos de corrida (esses sim, chatos até à última esticada linha) que se vêem por aí.

    ResponderEliminar
  4. * claro que não é "ouvir", é "ler", mas talvez seja um deslize freudiano, são relatos tão vividos que quase parece que os estou a ouvir.

    ResponderEliminar
  5. Ena, obrigada! Mas até eu que ando apaixonada pela corrida tenho noção que há um número limitado de maneiras diferentes para se dizer "eu gosto de correr" até se tornar um vira-o-disco-e-toca-o-mesmo :)

    ResponderEliminar
  6. mas olha que, ao contrário dos que pretendem activamente evangelizar outros para a causa da corrida, os teus relatos, sem querer, dão cá um formigueiro para também começar a correr pelas ruas da cidade que nem imaginas. Pelo menos a mim dão-me, é melhor ter cuidado e abster-me de os ler, credo, não quero ser também uma "pessoa que corre" argh :P

    (estou a brincar, claro, por acaso também já tive alturas em que corria na expo e também sentia essa libertação)

    ResponderEliminar
  7. Ah, então é por isso que sabes do que estou a falar :)

    Longe de mim querer evangelizar alguém, credo. Geralmente sou eu que embirro com as modas ou com o que "toda a gente faz" por isso percebo perfeitamente que a corrida irrite muita gente por parecer que está na moda. Para mim, como é uma coisa tão solitária não me faz confusão nenhuma saber que anda tanta gente a fazer o mesmo. Ainda que perceba que, visto de fora, o hype da corrida possa irritar terceiros. Não sei se estou a fazer sentido.

    ResponderEliminar
  8. Estás a fazer perfeito sentido. Fica mesmo descansada, no teu caso, nunca correrias o risco de ser chata ou irritante :)
    )

    ResponderEliminar
  9. (e com isto apercebo-me que pareço uma fã maluca, mas não me importo -prometo que não sou maluca, apenas gosto realmente do que escreves)

    ResponderEliminar
  10. ora essa, obrigada! a sanidade mental está sobrevalorizada de qualquer das formas :D

    ResponderEliminar
  11. :D
    concordo, mas nisto dos blogues às vezes torna-se um pouco estranho os comentadores recorrentes que não conhecemos.

    ResponderEliminar