quarta-feira, 2 de março de 2016

Desigualdade vs hierarquia

Desde que tive conhecimento da existência deste tipo de campanhas que sempre fui uma grande apoiante do Princess Free Zone, Pinkstinks, e afins. Tão apoiante quanto uma pessoa sem filhos e sem ideias de os ter no curto-prazo possa ser, pelo menos.  Parece-me muito óbvio que a pressão cada vez mais intensa de empurrar raparigas para tules, princesas, purpurinas, maquilhagem, tiaras e cor-de-rosas não só é redutora de interesses como potencialmente nociva para a formação da pessoa que serão no futuro; o mundo é muito mais vasto e muito mais interessante do que as princesas da Disney o pintam. Ultimamente, e especialmente depois de ter lido o Raising My Rainbow, tenho tido algumas dúvidas. Acho que este tipo de campanhas dá o tiro ao lado. They miss the point, se quisermos.

O Raising My Rainbow - Adventures in Raising a Fabulous, Gender Creative Son conta a história e as reflexões de uma mãe que tem um filho gender creative, como ela o apelida. Logo aos dois anos a criança demonstrou um fascínio tão grande por Barbies, bonecas, purpurinas, princesas e afins que só se intensificou com o tempo, e que os pais acabaram por aceitar e aprender a lidar, não com a criança propriamente dita, mas com as reações de todas as outras pessoas. As festas de aniversário temáticas, sempre uma escolha entre fazer o filho feliz com o tema princesas mas arriscar o gozo ou mesmo insultos das outras crianças ou pais, ou fazer festa com tema neutro (leia-se: masculino) como il faut mas transmitir ao filho que os gostos dele são errados, máscaras de Halloween idem, brinquedos levados para a escola, roupa preferida da criança, etc. Uma necessidade constante de policiamento dos gostos de uma criança ou uma necessidade constante de aguentar a reprovação social de quem não obedece à norma.

Agora imaginem se tivesse sido o contrário: se lhe tivesse calhado uma filha gender creative. Mal daria uma história. Uma rapariga ter interesses 'masculinos' mal é digno de nota. Quanto muito, é motivo de orgulho. Uma rapariga gostar de futebol, de subir às árvores, de brincar com carrinhos, negar Barbies e princesas é uma rapariga empoderada, muito à frente, diferente das outras raparigas*. E a autora do livro está consciente deste facto durante todo o discurso, referindo-o explicitamente várias vezes: 

'If a little girl had been pretending to be a prince, people would have applauded her in their minds for being empowered. How come when girls play with gender it's a sign of strength and when boys play with gender it's a sign of weakness? I could slap whoever made our society that way.'  

Portanto, campanhas que pretendam incentivar raparigas a fugir às princesas parecem-me um bocado redundantes: a penalidade social por fazê-lo não é elevada. Uma rapariga gostar de brinquedos/atividades de rapaz é muito mais aceitável, até aplaudido, do que rapazes brincarem com coisas de rapariga.

A questão é porquê. Porquê? É porque há realmente uma diferença qualitativa nos dois tipos de brinquedos/brincadeiras (tipo, os brinquedos de menina são bastante menos interessantes, só que ver com tomar conta de bebés, que envolvem bonecas, roupas e maquilhagem, etc, enquanto os brinquedos de rapaz estimulam o intelecto, a criatividade, etc)? Isto para mim - e acho que para todos os que apoiam as campanhas que são especificamente dirigidas a raparigas como a Princess Free Zone e a Pinkstinks (diferentes da Let Toys Be Toys ou da 'polémica' - lol - do McDonald's) - estava dado como certo, certinho. As princesas da Disney dão um mau exemplo por serem tão passivas, e terem como único propósito na vida arranjar um príncipe rico e bonito, e ronhonhó, e jogar à bola é que é saudável e estimula a coordenação motora e o espírito de equipa, e os brinquedos mais científicos e os legos e assim são cada vez mais marketizados é para os rapazes e esses é que são brinquedos interessantes.

Entretanto existe outra perspetiva que me tem permeado o pensamento sobre os assuntos de género e de igualdade, do que é realmente o feminismo e o patriarcado, e que me fez ver isto de outra forma: e se é antes porque simplesmente valorizamos as atividades masculinas de forma muito mais elevada do que valorizamos as atividades femininas, e portanto qualquer coisa tradicionalmente associada aos homens é desejável, enquanto as atividades associadas às mulheres são ridicularizadas como superficiais? Quantas mulheres têm orgulho em afirmar 'eu não sou como as outras mulheres!', ou 'eu nem gosto de [inserir atividade/produto de gaja ou que grande parte das mulheres gosta], gosto é de [cerveja/futebol/piadas sexistas/qualquer outra coisa geralmente identificada como masculina]'? Essa é tipicamente considerada uma 'gaja fixe', especialmente nos filmes mais mauzinhos. Mas tenho reparado muito no reflexo inconsciente de tantas mulheres - eu incluída - de constantemente se distanciarem o mais possível dos gostos estereotipados de mulher para serem vistas numa melhor luz. Ora isto é nada mais nada menos que o reflexo muito humano de querer pertencer ao clube dos fixes, de almoçar com os importantes, de estar onde se é valorizado. O que me faz questionar seriamente se o ódio às princesas e ao cor-de-rosa não é mal direcionado.

Porque, vejamos, se é a primeira hipótese - se é realmente uma questão de os brinquedos/atividades femininas serem qualitativamente piores, então não é desejável que ninguém brinque com princesas/bonecas/cozinhas. Nesse caso essas campanhas estão a ir na direção certa e os pais que proíbem os seus filhos rapazes de brincar com brinquedos de gaja estiveram sempres corretos. Só precisamos agora é de elevar as raparigas ao pódio dos brinquedos masculinos e ignorar o cor-de-rosa e as purpurinas para todo o sempre. Mas se é a segunda hipótese - se o problema é o problema do patriarcado em poucas palavras: um problema de hierarquia de géneros, e não de desigualdade - então já temos um problema muito mais colossal. Neste caso, pode ser que campanhas como o Pinkstinks estejam a reforçar a vergonha nas atividades femininas, em vez de empoderar raparigas.

Pode ser uma mistura das duas coisas. Legos e brinquedos mais científicos são muitas vezes direcionados a rapazes, quando antes não era assim, e realmente a Disney com os seus filmes mais antigos de princesas era do mais clichezinho que havia; mas deixem que vos diga que quando eu brincava às Barbies com as minhas primas nós construíamos cidades inteiras com todos os serviços e profissões para manter uma cidade a correr, e representávamos verdadeiras histórias de vida completas ao longo de várias gerações que só podia contribuir para o estímulo da criatividade e do pensamento complexo! E não somos únicas nisto, garanto. 

E agora uma reflexão em jeito de provocação: mesmo que os brinquedos das raparigas conduzam a papéis de cuidados e os de rapazes a papéis científicos, so what? Eu sei qual é o problema: a nossa sociedade valoriza muito mais uma carreira científica do que as tarefas rotineiras de criar uma criança, portanto brinquedos que promovam estes papéis de forma estereotipada são indesejáveis. Mas porque é que continuamos a dar mais valor a uma carreira científica do que às tarefas de criação de um ser humano?**  




*Se há elogio mais pernicioso, que toda a feminista deveria desprezar, é precisamente quando lhe dizem 'tu não és como as outras raparigas'. Evitar afirmar 'eu não sou como as outras raparigas' com sentimento de superioridade pode ser difícil mas é essencial.

** Pista: será porque ciência e fazer coisas no mundo em geral seja tradicionalmente coisa de homens e criar pessoas seja coisa de mulher e portanto desinteressante/subvalorizado? Who Cooked Adam Smith's Dinner é um bom começo.




S.

10 comentários:

  1. Taaaanto gaiiiijo dorido na secção dos comentários do facebook da notícia sobre os brinquedos da Happy Meal! Que frágil, a masculinidade.

    Em relação às princesas da Disney, há alguma nuance, porque não são todas necessariamente passivas, nem isentas de qualidades, pelo contrário. Só que mesmo essas acabavam com o príncipe rico e bonito - como eu ficava confusa com o contracto que a Ariel fazia com a Ursula, que frustração ao chegar àquela parte do filme! Especialmente tendo em conta que eu queria ser cantora E sereia, e ela abdicava das 2 coisas que representavam a minha vida de sonho pra ir ter com um espécime que não conhecia e que até podia cheirar mal e tudo. Vá, tinha um cão.

    A mim parece-me claro que os brinquedos "de menina" são desvalorizados por estarem associados a funções consideradas femininas, e o feminino é desvalorizado no geral. Parece-me que quanto maior for a variedade de brinquedos acessível a uma criança, melhor, de maneira a estimular uma variedade de facetas. Imagino que seja prejudicial envergonhar qualquer criança por gostar seja do que for. Mas isto tendo em conta que nunca procurei informação em relação a qualquer coisa como o nível de estimulação cognitiva permitida por um nenuco ou uma Barbie vs um robocop ou Action Man. Imagino que seja semelhante, só que em vertentes diferentes? Os brinquedos antigamente tidos como neutros, que todas as crianças queriam e usavam, lego&co, pareciam ser os mais estimulantes; se agora são mais dirigidos a meninos, é triste andar pra trás. Tinha a percepção que o influenciar das escolhas das crianças estava a diminuir e não a aumentar.

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    1. Concordo em relação à Disney, não acho que seja linear o que fazem com as princesas e mesmo as mais antigas tinham certas coisas meio interessantes. Não vem mal ao mundo uma rapariga adorar princesas. Já quando a Disney as tenta sexualizar como fizeram à boneca da Brave, aí para tudo! Já não há por onde os desculpar.

      'A mim parece-me claro que os brinquedos "de menina" são desvalorizados por estarem associados a funções consideradas femininas, e o feminino é desvalorizado no geral. Parece-me que quanto maior for a variedade de brinquedos acessível a uma criança, melhor, de maneira a estimular uma variedade de facetas.'

      Yap, não conseguiria resumir a coisa melhor. É engraçado que às tantas no livro do Raising My Rainbow a autora faz referência ao facto de se esquecer por vezes de por um travão nos pedidos do filho a certas coisas que se calhar poria se ele fosse uma rapariga (por exemplo: ir vestido com uma saia de princesa para a escola) e portanto esforçar-se por lembrar que mesmo apoiando-o nos seus gostos, há limites. E isto lembrou-me que se calhar se a história fosse sobre uma rapariga que amava de paixão princesas, purpurinas e afins que muitas feministas (incluindo eu!) rebolariam os olhos, enquanto que neste caso estávamos a torcer para o menino poder brincar com isto mesmo. É estranho como o valor das coisas é tão relativo...

      Sobre isso do nível de estimulação cognitiva de brinquedos diferentes ou do facto dos brinquedos 'femininos' poderem ser nocivos: é referido no livro que havia uma mãe que também tinha um filho gender creative que o deixava brincar à vontade com Barbies, mas o mesmo não acontecia com a irmã dele. A mãe justificava com o facto de ele, por não ter um corpo feminino e por não ser uma mulher, nunca seria influenciado negativamente pelas dimensões irrealistas da Barbie, o que já não era verdade em relação à irmã, muito mais suscetível a comparações entre a boneca e ela mesma. Isto pareceu-me um bocado falacioso mas achei interessante que houvesse quem fizesse essa distinção.

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    2. Pois é, lembro-me de há uns anos terem feito umas imagens ou bonecas das várias princesas que tinham roupas mais brilhantes, por qualquer motivo, e no caso da Brave... Tento perceber o que vai na cabeça que quem está a fazer aquele trabalho "Ainda não está bem, precisa de mais qualquer coisa, mais mama, se calhar, sim, é isso mesmo, mais T&A." :/

      Entendo as intenções de mães que ponham esse tipo de travões nas meninas, mas não me parece msmo que seja benéfico. À partida parece-me que dessa maneira se reafirma a inferioridade do que é considerado feminino.

      Em relação à influência da Barbie na imagem corporal, a primeira coisa que me vem à ideia é: o menino, vindo a gostar de meninas, se calhar vai ser influenciado no que toca às espectativas que tem do corpo delas. Imagino que esta lógica falhe em outros aspectos para além deste. Mas é interessante, nunca me tinha ocorrido.

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    3. Os travões de que falavam eram os travões do senso comum, como hei de dizer, do que é apropriado, por exemplo: se uma menina quiser ir vestida de Branca de Neve para a escola, com sapatos de salto alto e maquilhada, pá, se calhar não convém muito, e a autora do livro teve que se relembrar disso porque na ânsia de apoiar o filho e o deixar exprimir-se, estava-se a esquecer dessas pequenas regras.

      Sim, de acordo quanto à imagem da Barbie! Se é nociva para as meninas é nociva para as expectativas que os meninos criam sobre o corpo das mulheres. Não me pareceu uma lógica muito boa.

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  2. Obrigada pelo primeiro asterisco! (e pelo resto do texto também)
    Chateia-me tanto a necessidade de algumas mulheres se quererem distanciar das outras mulheres... Exemplos: "eu cá só tenho amigos homens, as mulheres são isto e aquilo", "lá no escritório a maioria do staff são homens e as coisas correm bem, quando trabalhava com muitas mulheres era o fim do mundo", "não gosto de coisas de gaja". Mulheres machistas é coisa que me dá muitos nervos.

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    1. Exatamente. Mas é um reflexo que mais ou menos todas temos, acho eu. Pelo menos faço um mea culpa porque durante demasiado tempo usei quase como bandeira o facto de não gostar nem perceber de maquilhagens e ter pouco interesse por compras e roupas. Não tem mal nenhum se for o caso, como é óbvio, mas afirmar isso com orgulho de que se é diferente do resto implica que achemos implicitamente que somos melhores do que o resto, ou de que o resto é mau. A Simone de Beauvoir explicava isto muito bem, o facto de sabermos que pertencemos à metade inferior e portanto aspirarmos é a agradar/pertencer à metade superior, a que realmente interessa. Isto, diz ela, explica a mítica rivalidade feminina: não conseguimos ter respeito pelos outros membros da nossa metade precisamente porque pertencem à metade inferior, tal como nós. Ela não acha que isto seja inevitável, mas sê-lo-á enquanto a mulher não conquistar um estatuto de verdadeira igualdade de valor.

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  3. Sim, claro que as actividades associadas ao sexo masculino são socialmente mais valorizadas do que as do sexo feminino. Mas acho que não pesa só a qualidade, também pesa a quantidade. Há um leque muito mais reduzido de actividades "femininas", o que também pode explicar parte da vontade das mulheres de experimentarem outras coisas e o desprezo pelo cor-de-rosocentrismo. Agora podia ficar a meditar em que medida isso se relaciona (ou não) com a muito maior variedade de roupa e acessórios disponíveis para as raparigas em relação aos rapazes mas vou mas é retocar o verniz das unhas.

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    1. Há um leque mais alargado de atividades masculinas mas ao mesmo tempo há atividades que para um homem estão-lhe completamente vedadas, são quase tabu. Um homem maquilhar-se, por exemplo, valha-nos deus! Uma mulher pilotar um carro de Fórmula 1; esquisito e não duvido que leve com bastantes sobrancelhas levantadas, mas não é reprovado socialmente. Ou seja, mesmo que os homens tenham um leque mais alargado de atividades tradicionalmente associadas ao seu género do que as mulheres, teoricamente as mulheres têm o leque completo de atividades que existem por onde escolher. A questão da muito maior variedade de roupas prende-se com isso: a roupa feminina pode e vai muitas vezes buscar inspiração à roupa masculina, quando o contrário é impensável. E também tem que ver com o facto de ser muito banal que o corpo feminino seja mostrado e sexualizado, portanto roupa justa, mais ou menos curta, com maior ou menor decote é possível. Possivelmente um homem tem que ter muito mais cuidado no que veste para não parecer que usa roupa feminina, o que seria uma desgraça. Como diz a al31nad ali em cima, parece que a masculinidade é muito frágil. No dia que os homens puderem usar saias à vontade é o dia em que a igualdade estará atingida! :)

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    2. Neste assunto, parece-me que há mais restrições e mais fortes para os meninos, porque são eles que sofrem mais humilhação e forte ridicularização quando se desviam do que é esperado (as meninas sofrem-na mais tarde ao perceberem que fazem parte do grupo automaticamente considerado humilhante, e aí viram-se para a rejeição do tipicamente feminino e para o "não sou como as outras"). Deve ser uma sensação péssima, especialmente porque começa a acontecer enquanto são muito pequeninos. Imagino que venha daí a tendência para serem inseguros em relação à masculinidade, terem constantemente a preocupação de perceber se algo "é de gaja" antes de se permitirem a eles próprios perceberem se gostam ou não da coisa em questão. Vivem com este filtro, em relação à manutenção da masculinidade.

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    3. É isso mesmo, é terem de se policiar a si próprios para evitarem gostar de coisas de gaja. E isso deve ser muito limitador, um sentimento que, por muitos problemas que tenhamos enquanto mulheres, esse é nos desconhecido.

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