quarta-feira, 13 de abril de 2016

O inimigo dentro de portas

Deparei-me com isto a propósito de outra coisa, e a minha reação foi concluir que a ignorância realmente às vezes é uma benção.

Todos os anos a Comissão Europeia produz um relatório sobre o progresso (ou regressão) em questões de igualdade de género, na Europa em geral e em cada país em particular. É uma coisa um pouco mais legalista e curto-prazo que os índices do EIGE, mas igualmente informativo. Tem até alguns exemplos de medidas que foram tomadas em países particulares e que podem constituir boas práticas. Por exemplo, neste último ano, é referido que a licença de paternidade aumentou de 10 para 15 dias úteis em Portugal, e que na Áustria criaram um novo crime - "violação da auto-determinação sexual" - que inclui atos sexuais praticados contra a vontade de uma pessoa, mesmo que não tenha sido usada violência, mas sempre que as reações da vítima demonstrem falta de consentimento, ou cujo consentimento foi obtido através de intimidação ou chantagem. Aquilo está dividido por cinco áreas, que correspondem mais ou menos às áreas da igualdade de género que a UE dá prioridade (portanto muito à volta do Mercado Único e do emprego):

- independência económica;
- igualdade salarial;
- igualdade em posições de decisão;
- violência de género;
- igualdade de género em países terceiros.

Foi um gráfico - aliás primeiro uma afirmação, depois o gráfico - na parte da violência de género que me prendeu a atenção: mais de metade dos assassinatos de mulheres ocorrem às mãos de parceiros ou família. 

Vou deixar assentar.

Mais de metade das mulheres que são assassinadas são-no às mãos de pessoas muito próximas.

MAS QUE RAIO.


Portanto, a mancha vermelha e azul são os homicídios perpetrados por parceiros íntimos e e familiares, tanto no gráfico das vítimas femininas como na das masculinas. O que salta à vista muito de repente é que sem dúvida que há muito mais homens vítimas de homicídios do que mulheres, pelo menos nos países europeus representados. Suspeito que isto seja uma tendência global, já que os homens estão com mais frequência envolvidos em atividades violentas, crime, gangs, etc, do que as mulheres e também sobre isto haverá muito a dizer (masculinidades tóxicas e por aí fora). O patriarcado não tem consequências nefastas só para as mulheres, e neste caso isso é bem visível. Se bem que, lá está, não é o caso de dominância do outro género - os homens são mortos na vasta maioria por outros homens, basta olhar a percentagem de presos, condenados, etc. É antes uma consequência nefasta das expectativas que lhes são impostas como género dominante, uma masculinidade gone wrong, se quisermos, ao invés de caso de opressão.

Mas regressando ao gráfico. Portanto, há muito mais vítimas de homicídio que são homens do que mulheres, mas reparem na diferença de proporções do perpetrador. Os homens são, na vasta maioria, mortos por "outros", ou seja, nem familiares nem parceiros íntimos, presumivelmente desconhecidos ou, não sei até que ponto os homicídios em contexto de gangs pesam nas estatísticas europeias, mas talvez também por "colegas" ou inimigos de gang (não necessariamente próximos mas também não inteiramente desconhecidos).

Isto não se verifica de todo no caso das mulheres que são mortas por outrém. Vejam-me a manchazorra vermelha dos "parceiros íntimos", que na Inglaterra e País de Gales atinge quase metade do total de homicídios. Isto para não falar da também bastante elevada barra azul, que representa o número de homicídios perpetrados por familiares da vítima. What the fuck! Isto vai contra o senso comum, a perspetiva geral que as pessoas têm do perigo e do risco, para não falar de quão errado moralmente é isto: as pessoas que nos são mais próximas deviam ser as que nos são mais seguras, as que nos querem bem. Andam-nos toda a vida a incutir o medo/cuidado para com os estranhos, não andes na rua sozinha, não saias à noite por aquela zona que é perigoso, e depois em termos de risco a nossa casa é um dos lugares mais perigosos onde se estar? What. the. fuck.

Eu já tinha visto estimativas que indicavam que a vasta maioria das violações ocorrem entre pessoas que se conhecem - o que, mais uma vez, custa a acreditar à primeira vista porque quando se fala em violadores o que salta à imaginação é um homem assustador, creepy, rua, becos escuros, um monstro, portanto. No caso das crianças, exatamente igual. Raptos, violência, abuso sexual, é quase sinónimo do homem na carrinha branca, o desconhecido que ludibria com doces, etc, quando na realidade a vasta maioria da violência e abuso sexual contra crianças acontece em casa ou em sítios familiares, através de pessoas bem conhecidas da vítima. Parece que, tal como para as mulheres, a casa é dos sítios mais perigosos para as crianças. E isto é aterrador.

De ressalvar que estas proporções também não são iguais em todos os países europeus representados no gráfico: na Lituânia e Letónia a maior parte dos homicídios de mulheres são realizados por "outros". E Malta não teve nenhum homicídio em 2013, de homens ou mulheres! Seria interessante investigar as razões para estas diferenças, ou esmiuçar melhor os números (quais são as categorias dentro de "outros"? Os amigos, estão incluídos nos "outros"?) e ver como eles mudam controlando variáveis como a origem étnica, religião (será que há mais incidência de homicídios por familiares em comunidades muçulmanas, com os crimes de honra, por exemplo?), etc.

Há uns tempos o Louis CK tinha feito umas piadas sobre o risco que os homens representam estatisticamente para as mulheres em contextos de intimidade. E é engraçado porque vê-se que ele está a contar estas coisas num show de stand up comedy mas ele está meio sério e a tentar convencer a plateia de que não está a brincar, que é mesmo verdade, que uma mulher entrar numa relação é um risco para a sua integridade física, de uma maneira que não o é para um homem. E a plateia vai gargalhando, como se ele estivesse a dizer que isto dos namoricos é um risco para as mulheres porque os homens são totós e nunca se sabe o que nos calha na rifa, e ele continua a enfatizar, 'mas não, é mesmo um risco para as mulheres sair com um homem!'. 




Diverti-me quando vi isto agora novamente, com as estatísticas do Eurostat sobre as proporções de perpetradores de homicídios em mente, ao ver a distância da realidade estatística do risco a que estamos todos. 

(clicai para aumentar a banda)





S.

1 comentário:

  1. mal comecei a ler, fui buscar precisamente esse vídeo do louie… triste realidade

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