quarta-feira, 7 de março de 2012

Aqui não há más línguas

Uma das minhas paixões de sempre são as línguas. Língua, linguagem, linguística sempre foram para mim fontes de grande interesse. Amo dissecar gramáticas, perceber as regras que regem diferentes línguas, sou uma nazi da ortografia. Mas sobretudo, fascina-me o mistério que encerra uma linguagem que não se conhece e o processo de se passar a perceber, o desvendar desse mistério. É a sensação de se ter achado qualquer coisa.

A minha opinião sobre as línguas tem-se alterado com o tempo. Um dos meus objetivos de vida, desde muito cedo, era o de chegar ao nível do inglês dos nativos, uma obsessão que persegui com muito prazer. A minha língua materna foi durante muito tempo desprezada por mim, não com descuido porque sempre me fez espécie português assassinado ortografica e gramaticalmente, mas porque a considerava de segundo grau. Hoje atingi o nível de inglês que sempre quis mas entendo que não é o de nativo, é apenas o de equivalente-a-nativo, o que faz toda a diferença. Hoje entendo que a língua materna é única, e que a nossa ligação com ela não pode nunca ser destronada por nenhuma outra; é uma ligação demasiado entranhada na pele e na mente, visceral porque foi a partir dela que se expressaram pensamentos, emoções, a vida, no fundo.

Ainda assim, línguas no geral e línguas europeias em particular continuam a fascinar-me e um dos meus objetivos de vida é tornar-me fluente em mais duas ou três. Tornar-me uma verdadeira poliglota.

O multilinguismo no Parlamento Europeu atinge um nível inimaginável. Foi aqui que eu me deparei com o que é realmente ser poliglota. E serviu para me aperceber que estou muito longe disso. Muito mesmo. Para minha grande satisfação - e mortificação, ao mesmo tempo - o francês é a verdadeira língua de trabalho. O inglês tem o estatuto cliché que se sabe, língua internacional e não sei quê, e como não podia deixar de ser é muito utilizada. Toda a gente o fala. Até aqui nada de novo. Mas o francês compete fortemente com ele. As pessoas não se dirigem a nós em inglês, como seria de esperar; dirigem-se em francês. É muito frequente a conversa resvalar para inglês, mas ainda assim, o facto de a língua de primeira escolha ser o francês diz muito sobre a importância desta língua.

Ontem assisti a uma reunião do meu departamento que foi conduzida em francês. Segundo o chefe do departamento, era costume. Uma hora e meia de francês meio formal meio informal, dito por várias pessoas, em vários sotaques. Mas invariavelmente fluente. Foi um bom exercício para as minhas competências linguísticas de compreensão auditiva. De repente ouvia alemão entre um par de pessoas, ou esloveno entre outro par. Termos ingleses surgiam aqui e ali na conversa. A linguista que há em mim olhava e ouvia fascinada. Mas lá está, nativa só lá estava uma. Descobri-a facilmente, mesmo que só tenha entendido uns 40% de toda a conversa.

Hoje fui à minha primeira conferência cá, sobre igualdade de género, como não podia deixar de ser. Mais fascínio para cima. As salas de conferências/reuniões são dispostas em hemiciclos, e na parte de cima das salas, a toda a volta, estão 23 cabines. Cada uma para uma língua oficial da UE. Estão lá, os nomes da língua e um número à frente.

Ora e o que é que se passa normalmente. Cada orador fala na língua que bem lhe apetecer, frequentemente na sua língua materna. Em cada lugar existem uns auscultadores ligados a um transmissor, e é só escolher o canal referente à língua que se quer ouvir. Hoje foi maioritariamente sueco. Devo dizer que durante a apresentação em francês me aguentei estoicamente sem ir a correr buscar a interpretação inglesa (a cabine portuguesa não estava ativa para esta conferência), mas quando começou o sueco fui a correr enfiar os auscultadores nos ouvidos e mudar para o canal "English".

Nunca tinha assistido a interpretação simultânea. Que mind-fuck. Como a cabine do inglês estava mesmo à minha frente, eu não sabia para quem olhar, se para a senhora sueca que estava a falar, se para a senhora inglesa que gesticulava dentro da cabine e cuja voz se sobrepunha ao sueco ininteligível da outra senhora. Depois foram perguntas em inglês e respostas em sueco; tira auscultador, põe auscultador. Houve ainda uma apresentação que foi recitada metade em húngaro, metade em inglês.

Claro que não resisti a fazer zapping pelos outros canais linguísticos. Os oradores estavam a ser interpretados para alemão, inglês, francês, italiano, espanhol, húngaro, e mais outra que não me lembro. A cabine do português estava vazia, mesmo atrás de mim.

Eu sabia que isto era assim, juro que sabia. Sabia da tradução de pelo menos toda a legislação europeia para as 23 línguas oficiais, e que havia interpretação simultânea também. Mas ver - ouvir! - no terreno é completamente diferente. A UE faz tudo o que está ao seu alcance para mitigar a barreira que é talvez a mais penosa entre os povos europeus: a língua, tratando todas as línguas como iguais. O facto de uma pessoa que vai falar poder expressar-se na sua própria língua e ser traduzida para todas as outras 22 - virtualmente, nem sempre estão disponíveis as interpretações simultâneas de todas para todas - é simplesmente fascinante. E muito cosmopolita.

Custa dinheiro? Custa. E dá muito trabalho. Mas há coisas que não têm valor. E o respeito pela característica mais fundamental da nossa identidade - a língua - é um deles.



Esta foi a imagem que encontrei onde se veem melhor as cabines de interpretação. Sim, porque passadas duas semanas eu continuo a ter uma única foto de Bruxelas. Já começa a roçar o ridículo.



S.

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