sábado, 14 de setembro de 2013

A Simone e as bicicletas

Há um ano, quando comecei a ir para o trabalho de bicicleta, foi todo um novo mundo que se me abriu. Estou a ser um bocadinho dramática, mudei só a minha perspetiva do commuting diário. Mas houve uma coisa inesperada que também tive que mudar: a minha roupa.

A primeira preocupação que tive - até porque a necessidade não demorou a manifestar-se e, vivendo onde vivo, soube logo que seria uma constante - foi descobrir a melhor maneira de contornar a chuva. Descobri aqueles ponchos muito largos e impermeáveis, analisei atenta mas disfarçadamente os companheiros ciclistas (especialmente nos semáforos vermelhos, ocasião preferida para olhar de soslaio o tipo de equipamento que o pessoal do ciclismo urbano utiliza) e cheguei à conclusão que não havia melhor que aquilo. Encomendei, usei, descobri que os pulsos e mãos ficavam molhados que era uma desgraça, e estava sempre um bocado com medo que um carro passasse mais rente a mim e prendesse sem querer o espelho do pendura ao meu poncho esvoaçante e lá fosse a S. de cabeça ao chão. Mas bom, era o que havia e fazia o seu trabalho razoavelmente bem. Até que num dia de chuva em que só tínhamos um chapéu, eu vesti aquilo quando fomos ao mercado de Natal e reparei (ele também não tentou disfarçar) que o D. estava um bocadinho, er... desconfortável. E aqui desconfortável é eufemismo para com vergonha de estar ao pé da minha pessoa. Os meus protestos de "Estás a exagerar um bocadinho, não? Esta capa não é assim tão esquisita..." foram abafados pela foto que ele tirou onde eu não pareço um dementor - como pensei e o que seria estranho mas respeitoso - mas sim um duende azul zangado num dia de chuva. A capa é mesmo muito grande para mim. De maneiras que agora ando à procura de um blusão impermeável ou assim, como as pessoas normais usam. 

Mas isto tudo para introduzir um problema que eu nunca tinha pensado seriamente até ali - nem sabia que era verdadeiramente um problema - até começar a andar de bicicleta no dia a dia: a roupa feminina. De repente, quase todas as minhas saias deixaram de servir, vestidos idem, e a algumas calças tive que dizer bye-bye. Entendam: o meu guarda-roupa não era nem especialmente fashion, porque nunca tive muita paciência, nem particularmente feminino-formalesco. Mas de repente cheguei à conclusão que, para além dos sapatos altos que são a cruz mas a alegria de tanta mulher, a roupa de mulher é extremamente restritiva a qualquer atividade física que esteja acima do caminhar curtas distâncias. Comecei a observar à socapa mas mais atentamente as outras ciclistas e de facto, se entre os homens via muita vezes fatos completos de trabalho, nas mulheres muito raramente descobria alguma saia travada, que faz parte de muito uniforme de trabalho de escritório.

Comecei a ter que ter cuidado especial na procura de roupa que me deixasse as pernas livres para pedalar e no comprimento das saias que me piscavam o olho nas lojas de roupa (elas têm uma mania irritante de subir perigosamente cada vez que se dá ao pedal. E irrita-me solenemente estar preocupada em a ir puxando quando tenho mais com me preocupar quando ando de bicicleta, como, sei lá, não ser abalroada por um carro). Concluindo: uma mulher, para fazer o seu commuting de bicicleta, ou abandona as saias e as calças justas no trabalho, ou passa a levar muda de roupa para trocar assim que chega. 

Já a Simone Beauvoir dizia, falando de roupas de uns e de outros:

"Uma mulher que não pretenda chocar, que não tencione desvalorizar-se socialmente, deve seguir a sua condição de mulher. (...) Mas se o conformismo é para o homem bastante natural - os costumes regeram-se pelas suas necessidades de indivíduo autónomo e ativo - é necessário que a mulher, que também é sujeito, atividade, se mova num mundo que a votou à passividade. É uma servidão tão mais pesada quanto as mulheres confinadas à esfera feminina lhe aumentaram a importância: a toilette, as lides domésticas, a mulher fez delas artes difíceis. O homem tem pouco com que se preocupar relativamente às suas roupas; são cómodas, adaptadas à sua vida ativa."

"Une femme qui ne désire pas choquer, qui n'entend pas socialement se dévaluer doit suivre en femme sa condition de femme (...) Mais tandis que le conformisme et pour l'homme tout naturel - la coutume s'étant réglée sur ses besoins d'individu autonome et actif - il faudra que la femme qui est elle aussi sujet, activité, se coule dans un monde qui l'a vouée à la passivité. C'est une servitude d'autant plus lourde que les femmes confinées dans la sphére féminine en ont hypertrophié l'importance: de la toilette, du ménage, elles ont fait des arts difficiles. L'homme n'a guère à se soucier de ses vêtements; ils sont commodes, adaptés à sa vie active."

E os meus cismas sobre indumentárias próprias para um dia-a-dia que inclui profissão e pedalanço passam a fazer sentido. A roupa de mulher, especialmente aquela roupa que vem à cabeça quando se pensa em mulheres que trabalham em escritórios, simplesmente não está pensada para a mobilidade, está pensada para a passividade e o objeto. É por isso que quando estas mulherzinhas do séc. XXI se metem com a mania de inventar novos meios de transporte que envolvem mais do que colocar um pé à frente do outro, alguma coisa tem que ceder. No meu caso, não há dúvida: entre o meu lado mais girly ou a facilidade e felicidade que é pedalar até ao trabalho, cai o primeiro. Mas com uma pontinha de pena.



Aparentemente, já houve quem pensasse nisto de forma mais prática do que eu.



S. 


 

9 comentários:

  1. Eu subia a saia travada e tinha as pernas invernais ocultadas pelo casaco comprido. Os saltos então encaixam lindamente no pedal, uma das grandes vantagens de andar de bicicleta para mim era usar mesmo os sapatos mais altos sem ter medo de acabar desconfortável. Para a chuva usava um chapéu de feltro impermeabilizado. Evitava era calças, que têm de se prender.

    (concordo com a tua análise, mas era incapaz de andar desportiva todos os dias, é um estilo que me cansa muito)

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  2. a minha irmã anda de bicicleta o tempo todo cá em lisboa: ela mora em paço de arcos e vai muitas vezes até telheiras (!) para ir à aula de dança indiana.
    Só para dizer que essa questão da roupa se tornou tão importante para ela, que se juntou com um colega (arquitecto, como ela, o que será útil neste caso, penso eu, por causa das estruturas) e estão a pensar criar desenhos de roupas que sejam bonitas mas que tenham tecidos e formas adequadas para os ciclistas da cidade. E depois tentarem fabricar (o colega é brasileiro e diz que tem uns connexions para isso). Se eles conseguirem, eu aviso :D

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  3. Rita, já tinha reparado isso dos saltos, realmente a bicicleta é o melhor meio de transporte para os utilizar. Quanto as saias, nunca tinha pensado que realmente por debaixo de um casaco comprido de inverno não importa se subam ou não, ninguém vê. Vou experimentar quando o frio começar a apertar (já não falta muito, as máximas já estão nos 15 graus).

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  4. a.i. acho que isso é uma bela ideia de negócio e se for para a frente, avisa! Uma amiga já me indicou uma dessas lojas online mas quantas mais houver melhor, mais escolha!

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  5. então podes-me dizer o link dessa loja para mostrar a minha irmã?

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  6. Aqui fica: http://www.cafeducycliste.com/en/shop

    Entretanto descobri uma com mais coisas: http://www.wiggle.co.uk/cycle/clothing/

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  7. Obrigada! já enviei à minha irmã :D

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  8. Eu na holanda deixei de ser feminina e andava desportiva todos os dias: jeans e botas e toca a andar.

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  9. Luna, neste momento é o que tenho feito também. Já são raras as vezes em que uso saias ou calças mais apertadas. Há agora uma diferença entre a minha escolha de roupa quando sei que vou andar de bicicleta e quando sei que não vou. Normalmente aproveito para dar asas à minha femininidade(?) no segundo caso. Se bem que agora quando compro roupa é sempre a pensar no primeiro.

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