Ando há uns dias com este post às voltas sem saber por onde o começar. Uma viagem que andava há anos a sonhar fazer e que finalmente foi feita. Foram precisos uns dias para apurar o que realmente penso dela, daí o post em rodopio mental.
Gosto muito de fronteiras. Mesmo muito. Tanto as geográficas, como as políticas, como as culturais ou de mentalidade. Sem esquecer as nacionais, que nem sempre correspondem às outras três.
O Canal da Mancha é um daqueles sítios que reúne os quatro tipos num só.
E abro aqui um parênteses para falar do nome. Canal da Mancha para os portugueses, Canal de la Manche para os franceses, English Channel para os ingleses. Ai, apropriações. É tão English quanto français, ora. Como a companhia aérea espanhola se chamar Iberia. Da Ibéria somos nós também, oh espanhóis. Diz a Wikipédia que a palavra "Mancha" em português nem sequer é tradução da "Manche" francesa, já que "manche" é "manga" e "mancha" é, bom, nódoa. Enfim, falsos amigos nas traduções. Fechar parênteses.
O meu fascínio pelo Canal da Mancha está por isso ligado ao meu fascínio por fronteiras. E ele é-o em muitos sentidos da palavra. Fascínio redobrado quando descobri que do lado inglês, perto de Dover e portanto na parte mais estreita do Canal, há uma maravilha natural apelidada de "the white cliffs of Dover" e que impressiona bastante quem chega a Inglaterra pelo mar.
Não desapontaram, ainda que só as tenhamos visto quando abandonávamos a ilha, ao invés de quando chegássemos, como esperava, e apesar do tempo feio e terrível. Tempo que serviu para não nos esquecermos do significado de "norte" em Mar do Norte, de que pelos vistos Bruxelas anda esquecida, mas Dover e Calais não.
Viajámos de Bruxelas até Calais, o nosso ponto de travessia em França, e no qual começam a manifestar-se os tiques de fronteira.
Eu pensava que não havia controlo tão apertado como numa travessia de fronteira pelo ar e afinal enganei-me.
Começou logo no Eurostar. Comboio que leva gente de Bruxelas para Londres, mas que também leva gente de Bruxelas para Lille e Calais, significa levar pessoas que vão atravessar uma fronteira e pessoas que não vão atravessar uma fronteira. Para as primeiras, há check-in especial com controlo de passaporte antes de embarcar. Para as segundas, não há controlo e o check-in para o comboio até é noutro sítio. Ora o que é que acontece: para estas segundas, as que não mostraram passaporte, há uma carruagem reservada e não se pode sair de lá. Literalmente. Tínhamos dois seguranças na carruagem para impedir que circulássemos pelo comboio. Fomos comprar uma sandes ao bar do comboio escoltadas por um guarda fronteiriço, para nos impedir de misturar com o pessoal que sairia no UK. À saída em Calais, os guardas impediram que circulassemos na plataforma até que o Eurostar fechasse as portas e se pusesse a andar em direção a Londres. Foi uma das experiência mais bizarras que já tive.
Depois é o porto de Calais. Um complexo enorme, cheio de sinalização complicada de para onde vai o quê e extremamente bem guardado de forma a ninguém poder escapar por entre a teia sem ser identificado. As zonas de embarque de carros e camiões, com portagens para controlo de todo o passageiro e de tudo o que (e se alguém) vai nos veículos. A casinha de embarque para os passageiros a pé, como nós. Os autocarros para nos levarem até à entrada do ferry. O mostra BI, arruma BI, mostra mala, tira casaco, tira cinto, apita, apalpadela, culpado até provar inocente costumeiro dos aeroportos. Posso-me queixar rezingona da chatice disto tudo e do leve aborrecimento que nos traz, sim senhora. Mas não nos escapou do campo de visão o acampamento desumano, mesmo às portas do porto, de imigrantes sem documentos que tentam dar o salto para o UK e não conseguem. De repente o pedaço de plástico azul que tenho na carteira afigura-se-me valoizíssimo, e ganha-se a sensação perturbante de nada ter feito para o merecer, apenas ter tido a sorte incrivelmente aleatória de nascer no sítio certo do mundo. Recalibrar perspetivas torna os aborrecimentos comezinhos em birras ridículas.
E de repente estamos no barco que não parece um barco mas sim um aeroporto flutuante (aquilo tem lojas duty free. Desculpem se nunca fiz um cruzeiro mas eu não estou habituada a que os meus transportes marítimos tenham lojas duty free. E vários restaurantes). Eu, que esperava um ferry como o de Tróia, ou os do Algarve para se ir até à Armona e similares, ou os que fazem a travessia do Tejo, tive um brilhante choque ao embarcar naquele monstro. Nada de deck ao ar livre, nada de olhos presos no horizonte tentando descortinar a costa inglesa e as falésias brancas assim que aparecessem (com o nevoeiro que estava, se as víssemos ao atracar no porto de Dover já seria com muita sorte. Que foi o que acabou por acontecer).
Chegámos a Inglaterra, quando duas horas antes estávamos em França, quando três horas antes estávamos na Bélgica. Agradeci muito sentidamente e mais uma vez à minha cidade de acolhimento que tão mal trato a sua centralidade geográfica e por me permitir concretizar sonhos sem ter que me enfiar num avião, essa espécie de máquina teletransportadora que tira a piada toda à viagem, ao movimento de atravessar qualquer coisa, e que o ferry do Canal da Mancha protagoniza tão bem.
Inglaterra anda-se a tornar mais familiar do que inspiradora de fascínio pelo que muito pouco tenho a dizer sobre Dover em si. Só louvar o castelo, enorme, e com visitas guiadas pelos túneis utilizados durante a Segunda Guerra Mundial para defender a Inglaterra no seu ponto mais próximo do Continente e, portanto, mais vulnerável. A maneira como os ingleses tornam inesquecível e multi-sensorial qualquer visita aos seus monumentos históricos, essa, ainda não cessou de me fascinar.
Não me escapou também o uso indiscriminado e simultâneo de libras e euros nos ferries, mais um sinal prático e simbólico da sua especial função de atravessar fronteiras.
S.