domingo, 20 de abril de 2014

Igualdade sem idolatrias

O John Stuart Mill é um filósofo fantástico. Como são fantásticas as pessoas que defendem causas das quais não podem tirar proveito próprio.
 
Defendia a liberdade, como vários pensadores seus contemporâneos, mas ao contrário de quase todos estes, ao Stuart Mill não lhe escapou que metade da população vivia num estado de escravidão legal. O seu ensaio "The Subjection of Women" é incrível pela lucidez, racionalidade e serenidade com que defende a liberdade das mulheres e a igualdade entre os sexos.
 
Eu ainda não o acabei, mas já sei que a parte mais extraordinária já a li.
 
Sabem aquelas odes que de vez em quando surgem a exaltar as qualidades "intrínsecas" das mulheres? Ai que as mulheres têm uma força qualquer especial, ai que as mulheres são como um anjo e iluminam tudo o que tocam, ai que as mulheres são fadas, ai que as mulheres são amor, ai que as mulheres são deusas, ai que as mulheres são a perfeição em pessoa. Normalmente nestas odes o sujeito até surge como "a mulher", assim no singular para enfatizar ainda mais a essência de que todos os seres humanos do sexo feminino partilham. Estas exaltações da suposta essência superior feminina irritam-me quase tanto como sexismo descarado. E nem é pouco frequente que andem de mãos dadas. Quando uma mulher não se comporta como esta fada angelical cheia de amor auto-sacrificador da ode é fácil ser vilipendiada por estes pseudo-adoradores da essência feminina. Já dizia a outra (a Gloria Steinem), um pedestal é tanto uma prisão como qualquer espaço pequeno e fechado.
 
Ora, o Stuart Mill está no lado oposto disto. Ele fala desses exaltadores da mulher e de como a sua retórica está oposta ao seu tratamento delas:
 
"(...) é-nos dito perpetuamente que as mulheres são melhores do que os homens, por aqueles totalmente opostos a tratarem-nas como se elas fossem assim tão boas; e por isso esse dito tornou-se numa hipocrisia aborrecida, com a intenção de colocar uma face elogiosa sobre um insulto (...)"
 
"(...) we are perpetually told that women are better than men, by those who are totally opposed to treating them as if they were as good; so that saying has passed into a piece of tiresome cant, intended to put a complimentary face upon an injury (...)"
 
E ele continua:
 
"Se as mulheres são melhores do que os homens em alguma coisa, é seguramente no sacrifício individual por aqueles que pertencem à sua família. Mas eu ponho pouco ênfase nisto, enquanto elas forem ensinadas universalmente que nascem e são criadas para o auto-sacrifício. Acredito que a igualdade de direitos esbateria esta abnegação exagerada que é o presente ideal artificial do caráter feminino, e que uma boa mulher não seria mais auto-sacrificadora do que o melhor dos homens: -"
 
"If women are better than men in anything, it surely is in individual self-sacrifice for those of their own family. But I lay little stress on this, so long as they are universally taught that they are born and created for self-sacrifice. I believe that equality of rights would abate the exaggerated self-abnegation which is the present artificial ideal of feminine character, and that a good woman would not be more self-sacrificing than the best man: -"
 
E até vê nisto um potencial melhoramento dos homens:
 
"- mas por outro lado, os homens seriam muito menos egoístas e mais auto-sacrificadores do que atualmente, uma vez que não seriam mais ensinados a idolatrar a sua própria vontade como uma tão coisa grandiosa que seja realmente a lei para outro ser racional [aqui ele refere-se aos poderes de chefe que a lei do séc. XIX conferia ao homem casado sobre a sua mulher]."
 
"- but on the other hand, men would be much more unselfish and self-sacrificing than at present, because they would no longer be taught to worship their own will as such a grand thing that it is actually the law for another rational being."
 
Não há um pingo de idolatria por uma suposta essência feminina. Ele não o diz com todas as letras, nem tinha que o dizer porque não faz parte do tema da obra, mas acho que ele não acreditava que houvesse sequer uma essência feminina, visto que as características das mulheres do seu tempo se deviam à sua condição de escravas, e não a características intrínsecas do sexo feminino. A inabalável convição e defesa da igualdade das capacidades racionais das mulheres é até francamente surpreendente num filósofo que viveu em meados do séc. XIX.




S.

3 comentários:

  1. Adorei esse ensaio, mas adorei também saber que o JSM foi muito influenciado por uma mulher fantástica, uma feminista antes delas assim serem nomeadas, que foi o amor da sua vida: http://en.wikipedia.org/wiki/Harriet_Taylor_Mill

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  2. Confesso que o meu (último?) resquício de sexismo está em acreditar que há mesmo qualquer coisa de biológico na capacidade de entrega aos filhos da mãe, em relação ao pai. É possível que esteja enganada, mas não é a meia dúzia de excepções a esta regra que me consegue convencer do contrário.

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  3. Izzie, ele menciona-a assim ao de leve na obra! Fiquei muito curiosa para saber mais sobre ela. Devia ser uma mulher incrível.

    gralha, a maternidade é um assunto completamente fascinante. Como em todas as funções que desempenhamos, há (pelo menos) uma parte que é socialmente construída. Não sei quanto do amor maternal e do sacrifício materno será biológico e quanto será construído. E mais: será que é igual em todas as mães? Não poderá haver pais que o têm em maior medida que algumas mães? Seja lá como for que o amor se mede... E os pais adotivos, onde ficam? O Stuart Mill no livro diz uma coisa muito interessante sobre não ser possível descobrir quanto de uma característica é verdadeiramente intrínseca e quanto é construída porque não há seres humanos a viver num estado verdadeiramente natural nem se consegue isolar numa pessoa o que é inerente a ela e o que foi construído socialmente. Se calhar nunca vamos ter resposta definitiva sobre isso do amor maternal também.

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