Já dizia a Simone de Beauvoir que uma das coisas que mais contribui para a aparência e sentimento de inferioridade e fragilidade das mulheres é o facto de não lhes ser estimulado o lado físico durante a infância e adolescência. Coisas como subir a árvores, jogar futebol nos intervalos e afins são experiências ainda de rapaz. Tenho a impressão que as coisas estão a mudar devagarinho mas o cunho de "maria-rapaz" ainda é demasiado usado para rotular crianças que gostam destas coisas e que por acaso não são rapazes. A rapariga quer-se sossegada, bem-comportada, enfeitada, não de calças rotas e pés sujos.
"Cette impuissance physique se traduit pour une timidité plus générale: elle ne croit pas avoir une force qu'elle n'a pas experimenté dans son corps; elle n'ose pas entreprender, se révolter, inventer: vouée à la docilité, à la résignation, elle ne peut qu'accepter dans la société une place toute faite."
"Esta incapacidade física traduz-se numa timidez mais geral: ela não crê ter uma força que nunca experimentou através do corpo; ela não se atreve a empreender, a se revoltar, a inventar: votada à docilidade, à resignação, ela não pode aceitar na sociedade mais do que um lugar pré-determinado."
O corpo feminino é sobretudo feito para ser visto e admirado como um objeto, não para ser sujeito e ativo. A atividade, em havendo, é para servir o propósito de o melhorar para admiração, seja perdendo peso, seja tonificando-o, seja combatendo a odiada celulite, nunca sendo um fim em si mesma. Por isso mesmo durante tanto tempo o desporto feminino foi quase um oxímoro, algo indesejado porque masculinizava as mulheres, associando-lhes características tão horríveis e tão não-femininas como competição, força, determinação, liberdade.
Pois, a liberdade. Descubro agora que é exatamente isso que me move a mim - e, suspeito, muitos outros corredores amadores - a voltar uma e outra vez à estrada mesmo quando no dia anterior os pulmões quase explodiam, o coração quase saltava da caixa toráxica e o estômago quase se revoltava com o esforço desconhecido. Não é masoquismo, é amor animal à liberdade que pôr um pé à frente do outro e repetir o mais rápido possível nos dá. É saber que só com os meus pés consigo fazer um caminho que durante toda a minha vida fiz de carro, milhares de vezes. Saber que hoje sou capaz de correr daqui à Ericeira. E para a semana sou capaz de ir e voltar. E que daqui a um ano conseguirei correr até Lisboa, se quiser. Só com o meu esforço, com o meu corpo, mais nada. Há lá ideia mais libertadora do que esta?
Não admira que até há menos de 40 anos não houvesse maratonistas. Até aos anos 60 não havia nenhuma prova olímpica feminina de corrida com mais de 200m. Havia a ideia de que não era apropriado as mulheres correrem longas distâncias. Apesar de uma mulher, Stamatis Rovithi, ter corrido uma maratona pela primeira vez em 1896 e de nesse mesmo ano Melpomene ter corrido a maratona olímpica estando registada mas sendo-lhe negada a entrada no estádio para a meta, estávamos em 1972 e a mundialmente famosa Maratona de Boston proibia formalmente mulheres de correrem a distância mítica dos 42195 metros. Proibir, vejam bem. Não bastava desencorajar (pensar em 42 km já é desencorajador o suficiente, ainda mais para uma mulher de meados do séc. XX, bem consciente da sua inferioridade física e das características que uma mulher de bem deve possuir, sendo que a destreza e resistência físicas não eram duas delas). Uma das mulheres que desafiou essa proibição só foi descoberta uns quilómetros depois de começar e escapou à perseguição dos organizadores com a ajuda dos colegas de equipa que lhes bloquearam o caminho. Outra escondeu-se atrás de um arbusto perto da linha de partida e zás, largou a correr quando a prova começou, outra foi puxada mesmo antes de meta e impedida de acabar. Em 1972 lá os organizadores da Maratona de Boston permitiram que mulheres também corressem na prova, após estas persistentes corredoras e a proibição da sua ambição terem ido parar à primeira página dos jornais americanos.
Mesmo assim foi só em 1984 que a maratona feminina se estreou como prova olímpica. 30 anos. 30 ANOS. Há pouco mais de 30 anos ainda andavam os paspalhos do comité olímpico a arranjar desculpas como "não é aconselhável as mulheres correrem tanto, faz-lhes mal" (mesmo depois de vários médicos terem emitido comunicados a dizer que não havia nenhum entrave físico a que mulheres pudessem correr maratonas) para não deixarem atletas correrem uma maratona olímpica. A condescendência sempre foi um aliado da resistência à emancipação feminina. No desporto não seria diferente.
Posto isto, não é surpreendente que uma feminista e apaixonada recente disto do meter um pé à frente do outro e repetir rápido tenha decidido que o seu próximo objetivo é correr uma maratona. Quero engordar as fileiras femininas das maratonas, quero ser mais uma a desafiar o que é suposto uma mulher fazer ou não fazer, conseguir ou não conseguir, gostar ou não gostar. Porque a verdade é que eu falo de liberdade animal, da ânsia de comer estrada com os pés e de saber que consigo ir até ali, mas a corrida deu-me outra liberdade, inesperada: a liberdade de desafiar as amarras do meu género. O meu corpo é o meu maior aliado, sou eu, não é nenhuma máscara inerte e exterior a mim, fonte de ansiedade por não corresponder a padrões impossíveis. A minha perspetiva sobre o que posso fazer com ele mudou irremediavelmente, e com ela a minha perspetiva sobre o que me faz feliz. Deixei de ter paciência para enfeites, adornos, roupa restritiva, calçado que me impeça de saltitar se me apetecer (ainda não apeteceu, mas gosto muito de caminhar durante horas, o que em termos de calçado vai dar ao mesmo). Não desdenho nenhuma destas coisas, simplesmente agora aceito de uma vez por todas que não as quero, elas não me servem. Isto sempre foi verdade, a diferença que a corrida trouxe foi levar-me a admitir isto de uma vez por todas. Por outro lado, agora amo vestidos, calções e saias rodadas como nunca. A minha dicotomia não é feminino-masculino, é restritivo-confortável. Só acontece que as duas coincidem demasiadas vezes e não por acaso:
"Les coutures, les modes sont souvent apliquées à couper les corps féminin de sa transcendence: la Chinoise aux pieds bandés peut à peine marcher, les griffes vernies de la star d'Hollywood la privent de ses mains, les hauts talons, les corsets, les paniers, les vertugadins, les crinolines étaient destinés moins à accentuer la combrure du corps féminin qu'à en augmenter l'impotence."
"As costuras, os padrões são frequentemente aplicados para privar o corpo feminino da sua transcendência: a chinesa com os pés enfaixados mal podia andar, as unhas envernizadas da estrela de Hollywood privam-na das suas mãos, os saltos altos, os espartilhos, as cestas, a armação dos vestidos, as crinolinas foram destinados menos a acentuar o corpo feminino do que a aumentar a sua impotência."
Já aqui tinha falado disto mas näo resisto porque afinal quase tudo nisto da desigualdade dos sexos vai parar ao mesmo: a visão do corpo feminino como objeto, para ser olhado, admirado, possuído, e nunca como um sujeito.
Assim, e para terminar, fico contente que duas paixões que me surgiram paralelas se complementem tão bem e agora até se alimentem uma à outra. Correr uma maratona não é a coisa mais feminista que se pode fazer (até porque há as ultras, haha) mas será sem dúvida a coisa mais feminista que eu já fiz. Desafiarei os meus limites, desafiarei as amarras do meu género e manter-me-á na linha da pessoa que eu quero ser. E eu quero ser a pessoa que chora ao ver Lisboa a aproximar-se, só que desta vez pelo chão. Maratona EDP de Lisboa de 2015, me espera.
S.