terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Relatório maioritário

A blogosfera anda mortiça e este blog não é exceção. Aborrece-me cada vez mais a monotonia das opiniões expressadas, o elevar de pequenas embirrações de dia-a-dia a problemas de primeiro mundo, irrita-me a impaciência dos blogueiros para com as idiossincrasias dos outros, os posts pespinetas, os posts pseudo-humorísticos, a banalidade destas partilhas. E este blog não é exceção.

Tenho cada vez menos paciência para escrever sobre feminismo, e suspeito que isto tenha pouco a ver com o facto de estar a fazer uma investigação sobre ele. Sinto que estou sempre a bater na mesma tecla, que o que tenho para dizer é óbvio, básico, que já toda a gente sabe isto, para quê repeti-lo. Que as mulheres ainda são discriminadas por serem mulheres deveria ser óbvio, a parcialidade do status quo deveria ser mais que evidente a qualquer pessoa minimamente inteligente, a objetificação e hipersexualização das mulheres deveria ser um fenómeno que é mais que óbvio (e consequências nefastas também, já agora), a necessidade de uma lei que criminalize a importunação sexual uma coisa que já cá devia estar há mais que tempo, a justeza de sistemas de quotas uma evidência, que existe violência contra mulheres por estas serem mulheres (ou seja, que deriva dos papéis atribuídos a elas e respetiva 'correção' quando estes não são respeitados) idem. Mas depois leio coisas, oiço coisas e vejo discussões que ainda estão presas ao significado de palavras, que o feminismo não se devia chamar feminismo, que igualdade é que é, que humanismo é que é, e que há homens que também são, e chego à conclusão que o que parece óbvio não é óbvio, não senhora, e o senso comum não é tão comum quanto isso. O problema é que adotei uma posição de aprendizagem exclusiva, que é como quem diz: eu educo-me, os outros que se lixem. Prefiro perder tempo a ler coisas do que a debatê-las, que não devo explicações a ninguém e quem se quiser educar há muito material à solta, é só pesquisar. E isto é um bocado triste.

O que também é um bocado triste é eu ter passado de correr 60-70 km semanais a 5-7 (com sorte). Toda eu apanhei um trauma tão grande à intensidade e sacrifício das últimas semanas de treinos para a maratona que o meu corpo agora é fisicamente avesso à ideia de programar uma corridinha que seja. A mente, essa, esgotou-se-lhe toda a força de vontade no ato de calçar os ténis nessas últimas semanas. Para a última coisa que está virada é para instigar o corpo num 'vá, vamos lá correr 10k!' Não há objetivos à vista, e assim será até voltar a ficar entusiasmada com alguma prova e ansiar preparar-me para ela. É só um bocado triste e não inteiramente porque não fazem ideia do bom que é saber que não tenho que acordar às 6h da manhã de domingo para ir rolar 3h no asfalto (se calhar até fazem, eu agora é que passei para o lado dos normais outra vez). Ou acordar e pensar 'argh, logo à noite tenho que ir correr antes de poder vestir o pijama e refastelar no sofá'. A única maneira de sair para uma corrida é agora: a) com companhia, ou b) acabar o trabalho do dia e pensar para mim mesma, como quem não quer a coisa: 'e se fosse agora correr um bocadinho?' e ir, logo, logo. A palavra tabu é PLANEAMENTO. O equilíbrio - que demorou umas boas semanas - já está restabelecido mas o bichinho não voltou a picar. E por enquanto estamos muito bem assim.

Entretanto já escrevi (leia-se: rascunhei) cerca de um terço da minha tese e ainda não perdi a vontade de viver. Pensava que era isso que os doutoramentos faziam. Gosto muito do meu projeto, mas às vezes gostava de ter escolhido alguma coisa que fosse mudar o mundo. Mas também tudo o que está abaixo de curar o cancro parecer-me-ia sempre poucochinho, por isso sei melhor do que ir por aí. Penso tantas vezes 'mas que merda fui fazer?!' quando me ocorre que me despedi para voltar a estudar, e tornei-me mais perita em evitar pensar na minha vida para lá de setembro de 2017 do que em evitar a praga. Estou mais relaxada no que toca a planear coisas a curto-prazo. A palavra tabu é PLANEAMENTO.

Num gesto de altruísmo auto-servidor, participo desde o início como cobaia numa investigação sobre o percurso de mulheres doutorandas em universidades de Sheffield e as entrevistas anuais com a investigadora são uma catarse tão poderosíssima que acho que eu lhe devia pagar. Melhor que terapia.

Foi tão difícil acostumar-me a ter uma vida diferente das pessoas normais, que trabalham em empregos normais das 9 às 17, que saem de casa para ir para o escritório e voltam para casa à noite, que estive à beira de arrancar cabelos. Nunca pensei que a normalidade fosse tão importante para mim, ou que estivesse tão enraizada cá dentro que quando não a executo se alojasse um sentimento de culpa e de inadequação que não é abalado por mais que o tente demover racionalmente: 'Estás no bom caminho, vê só a lista dos artigos todos que já reviste, vê só o que já escreveste! Se não estás convencida por ti mesma, ouve a validação externa, a publicação em vista, as call for papers garantidas com sucesso. O teu supervisor diz que está tudo a andar sobre rodas, que está contente com o teu progresso! O calendário de tarefas está a ser cumprido. Que mais precisas para te assegurares de que estás a trabalhar, que o teu esforço diário é válido?' Hardwired. Eu estou hardwired para equacionar emprego com sucesso pessoal, e isto é tão neo-liberal, tão capitalista e tão poucochinho que se me revolvem as entranhas. Mas está ao nível do subconsciente, que posso fazer.

(Re)comecei a gostar de roupas bonitas. E gosto tanto de batons. Eu nunca tive paciência/jeito/vontade para maquilhagem, mas agora gosto tanto de batons. Não sei o que me deu, mas vou com a corrente. Isto vai e vem, sei melhor do que dramatizar estas obsessões repentinas. Os seres humanos são criaturas de contradições maravilhosas.

No outro dia o meu dentista de há 15 anos - que não via há uns 5 - nas perguntas de circunstância perguntou se havia namorado. 'Sim, é o mesmo.', 'O mesmo? Que tédio.' Oh meu bom homem, com tanta mudança de vida, de casa, de país, de rede social, de a-fazeres, de hobbies, que felicidade, que alívio, que segurança, que sanidade mental, que constância é ter o mesmo homem - o meu melhor amigo - sempre ao meu lado. 



S.

     


12 comentários:

  1. "eu educo-me, os outros que se lixem", céus, como resumes bem o meu estado de espírito nestes últimos tempos. Uma pessoa cansa-se, cansa-se de lutar contra tantos moinhos de vento. E de estar constantemente a levar com pedras: feminazi!; há outras prioridades!; de tanto insistir perdes a razão!; isso é válido para outras realidades, mas aqui a igualdade vai por bom caminho, é preciso paciência, as mentalidades têm de mudar! Cansaço. Muito cansaço.

    De resto, força no teu trabalho. Está a correr bem, dá-te prazer e realização! Isso é o importante, quais das nove-às-cinco. Faz o teu caminho.
    (o último parágrafo: <3)

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  2. Melhor post de 2016 de toda a blogosfera.
    Um dia destes falamos de calendários de provas, para voltares a tomar o gosto à passada.

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  3. I feel you. Cada vez me cansa mais, mas ainda sou parva o suficiente para me meter em discussões inuteis.

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  4. Izzie: é verdade, é cansativo, mas se ninguém o fizer ficam só as outras vozes, as do 'está tudo bem'. É por isso que sinto um bocado de culpa neste estado de espírito. Obrigada! Já consigo conviver melhor com a escolha que fiz, no início foi difícil calar o mantra interior do 'se não tens um emprego não estás a fazer nenhum'.

    Gralha: E isso só prova o quão mortiça anda a blogosfera :) O meu objetivo é voltar a correr por prazer, e sei que aos pouquinhos volto a chegar a isso.

    SJ: :)

    Luna: Não acredito que sejam inúteis, mesmo que por vezes no imediato pareçam. Em relação ao 'piropo', por exemplo, fiquei mesmo contente de ler e ouvir as reações em relação à lei, que foram, pelo menos na blogosfera, positivas em geral. Acho mesmo que houve mudança de atitudes desde o debate da coisa há uns meses. As pessoas refletiram, já não houve aquela reação instintiva de sarcasmo que aconteceu quando o assunto veio inicialmente à baila. E isso aconteceu muito graças a pessoas como tu. Como disse à Izzie, por isso sinto um bocado de culpa em relação a este estado de espírito de não querer falar do assunto.

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  5. Também fiquei com essa sensação: que, desta vez, a reação foi muito menos hostil do que há dois (três) anos, quando o BE levantou a questão. O que, caso se confirme, é um ótimo sinal!

    Apesar de, para mim, assédio de rua, vulgo piropos, não serem "propostas de teor sexual" como alguém, com o poder de legislar, se lembrou de lhes chamar. A ver vamos como os tribunais irão interpretar isto e, a ver vamos se alguém se irá queixar. Não estou [nada] otimista.

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  6. Hey, obrigada por estares de volta! eu tenho a mandar os seguintes bitaites.
    1) na blogoesfera temos sempre bom remédio quando nos começa a cheirar mal ir visitar certas paragens: deixamos de ir e pronto! não custa tanto como deixar de fumar (se bem que, no meu caso sou suspeita, que deixei de um momento para o outro, e nunca senti saudades atrozes). E na blogo é como o tabaco, ainda me chegam cheiros e rumores de que existe, mas não estou minimamente interessada do que por lá se faz ou diz (até colegas de empresa de namorado acabo por saber que lêem os mesmos blogues que eu deixei de ler e que ainda sentem o mal-estar que eu sentia).
    2) namorado=melhor amigo :D

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  7. Pensava eu que a parte menos má de ir ao dentista era que, por estarmos de boca aberta, não se proporcionarem conversas de circunstância e tu agora dizes que o teu te disse isso... Queres o nº de telefone do meu? Ele tem as sobrancelhas sempre arranjadas e mais maquilhagem que eu e tu juntas, mas tirando isso é um amor! :)

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  8. Ceridwen: penso que conceptualizar o assédio de rua como importunação sexual foi o melhor que se conseguiu fazer em termos legislativos. Provavelmente todas as importunações que não tenham um teor sexual podem ser incorporadas em crimes que já eram previstos? (injúria ou calúnia, não sei). Eu também estava bastante contente com esta lei e com a reação menos crispada que há uns tempos (já foram 2-3 anos?! bolas, como o tempo voa) até que alguém próximo me veio perguntar o que fazer em caso de ser alvo duma tal 'importunação sexual' destas e como provar que se foi realmente alvo duma. Sinceramente não sei, penso que será como no caso de outros crimes em que é a palavra de um contra a de outro (se me injuriarem, por exemplo), mas a outra parte não ficou inteiramente segura. Talvez esta lei tenha mais função dissuadora do que punitiva, mas acho que tinha utilidade educar as pessoas sobre como esta lei as pode proteger de forma prática, os passos a tomar caso a importunação sexual aconteça, como fazer queixa, os passos seguintes, etc. Só o facto de isto ser crime é um avanço civilizacional - mostra que o meu país protege a minha liberdade sexual e liberdade de simplesmente estar num espaço público sem ser importunada e que condena de forma bem explícita quem viole essa liberdade - mas seria útil conhecer na prática o que muda.

    a.i.: sempre segui essa máxima, até porque não tenho laivos nenhuns de masoquismo na minha personalidade. O que me referia no primeiro parágrafo era um aborrecimento com o tipo de partilha de assuntos que é típico da blogosfera, mesmo por vezes em blogs que gosto de ler. E sem dúvida no meu. Daí me ter fartado um bocadinho disto.

    Por contingências da vida: personalidade introvertida, dificuldade em deixar pessoas entrar na minha vida, várias mudanças de país e portanto de rede social, muito tempo em que só nos tínhamos um ao outro, genuíno gosto em fazer coisas juntos (aquele mês de bicicleta em que estivemos 24h juntos foi um exemplo que podia ter dado para o torto se assim não fosse) - e porque estamos juntos há mais de dez anos e portanto desde bastante novinhos (e já éramos amigos antes disso) - o meu namorado é também a pessoa que melhor me conhece e a pessoa que sabe mais sobre mim. Não dá para não o considerar o meu melhor amigo. :)

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  9. What Elsa: Hahahaha, aquilo foi assim que cheguei, enquanto me instalava na cadeira, e ele me fazia duas ou três perguntas do género: 'Então, e o estudo? Então, e o namorado?', e pronto. Já no cabeleireiro não tenho tanta sorte, mas geralmente sou muito boa ouvinte, e como as pessoas adoram falar de si próprias, guio a conversa para o outro lado e safo-me ;)

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  10. O teu namorado esteve contigo também nas mudanças de país? Isso é tão bom :)

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  11. Anónimo: sim, tivemos sorte e sem dúvida que fez toda a diferença na adaptação.

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