domingo, 26 de novembro de 2017

Black Friday que não foi

Estive mais tempo do que queria na Debenhams, saltitando entre pisos para levantar a encomenda, experimentar roupa, olhar os saldos, devolver o que não me servia. Tinha uma gata para visitar na área e então planeei a visita à Debenhams de Oxford Street para esse dia também. Mas tinha suspirado de frustração por só me ter apercebido de manhã que hoje era a Black Friday. Cerrei os dentes e que se lixasse, estou habituada a multidões e as de Londres costumam ser ordeiras.

Saí da Debenhams já era de noite - o que não é difícil nesta terra por volta do inverno - mas ainda assim fiquei ligeiramente aborrecida. As últimas semanas tinham sido loucas entre trabalho novo a todo o gás e vários gatos para visitar todos os dias, queria um bom dia de dolce far niente. Mas bom, ainda ia a tempo e este era o primeiro dia que tinha reservado para stress a meio gás.

Ponho o pé fora dos armazéns, ainda a pensar nisto tudo e a planear onde ir apanhar o autocarro, quando vejo uma multidão ao virar da esquina a correr na minha direção. Não me lembro quanto tempo demorei a racionalizar a coisa, acho que pareceu muito e nenhum ao mesmo tempo. Lembro-me deste sentimento:



A partir daí entrei em auto-piloto. O pânico foi real, mas não me toldou completamente a memória. Lembro-me de rodar nos calcanhares e começar a correr na direção em que as outras pessoas estavam a correr, lembro-me de passar pela porta da Debenhams onde tinha acabado de sair e ver mais uma onda de pessoas a correr pela porta fora e escadas abaixo, lembro-me de ver mais pessoas a correr à minha frente, lembro-me de pessoas a gritar, lembro-me de ficar frustrada por ter botas de tacão calçadas e ponderar parar para as descalçar mas decidir imediatamente contra isso, lembro-me de ver uma pessoa a cair estatelada no chão à minha frente, lembro-me do pensamento "isto está a acontecer, AGORA" dominar grande parte da minha mente, lembro-me de guinar para a direita assim que vi um edifício com uma porta giratória e um lobby enorme porque sair da rua me pareceu instintivamente uma melhor opção do que continuar a correr feita alvo ambulante sem rumo.

Mais pessoas tiveram a mesma ideia mas as portas giratórias teimavam em não andar quando as empurrávamos - e eu fui uma das primeiras, estava a sentir a pressão das outras pessoas a quererem empurrar a porta e a mim pelo caminho. A rececionista, sem saber o que se estava a passar, pediu calma já que as portas paravam de girar precisamente quando eram forçadas, e lá conseguimos entrar a conta-gotas para o lobby marmorizado e iluminado. Suspeito que as caras à minha volta eram o espelho da minha, confusão, agitação da adrenalina e respiração ofegante pela corrida inesperada. Ninguém sabia o que se estava a passar e mais pessoas continuavam a forçar a entrada. Alguém grita alguma coisa e corre para dentro, para longe da rua e vamos todos atrás porque de repente as portas vidradas que nos separam da rua deixam de parecer proteção suficiente contra o que quer que fosse que estava atrás de todos nós. E é óbvio que todos soubemos imediatamente o que se estava a passar: um ataque terrorista na popular rua de loja no centro de Londres, na hora de ponta na Black Friday. Corremos todos para dentro dos corredores do edifício, sem saber para onde, numa tentativa em pânico de nos esconder dos atiradores (a esta altura já circulavam meios-rumores de tiros em Oxford Street). A rececionista direcionou-nos para o segundo piso, um piso vazio, sem acesso exterior a não ser com cartão. Aquela ala ampla e vazia, de paredes brancas e chão espelhado, pareceu-me o céu no momento em que entrei. Suspiro de alívio, apesar de a adrenalina continuar a percorrer-me, a razão começando a encontrar espaço para poder começar a funcionar.

A razão não tinha muito por onde pegar. Outro tipo de instinto fez-me a mim e a outras pessoas sacar do telemóvel para procurar notícias sobre o que se estava a passar, mas nem o Twitter nem os media tinham ainda pegado na situação. Lá fora continuávamos a ver pela janela pessoas a correr lá em baixo com alguns gritos de pânico. A alguém ocorreu de repente que devíamo-nos afastar das janelas, que éramos presa fácil ali à espreita, e devíamos apagar as luzes, "APAGUEM AS LUZES!". O pânico vem em ondas e propaga-se como fogo. "Ssssshhhh", gritei eu e mais umas pessoas: estávamos tão seguros quanto possível, e apagar as luzes não só não era possível como poderia parecer mais suspeito do que mantê-las acesas numa rua onde todos os outros edifícios estavam iluminados.

E depois começou a procura de informação, tentando cruzar relatos de uns grupos e de outros. Uma mulher, não esqueço porque mesmo no estado inicial de medo e ignorância completa me irritou com a segurança com que propagou informação alarmista: tinha saído a correr da Debenhams porque viu e ouviu homens armados a disparar contra os compradores, e eram do ISIS, eram do ISIS, eles tinham avisado que iam fazer alguma coisa na Black Friday, e agora cá estavam eles.

As pessoas ligavam a familiares e amigos, alguns que tinham sido separados a dizer onde estavam, o que se estava a passar. Eu continuava uma busca frenética pela Internet para compreender o que se estava a passar. Twitter da Metropolitan Police de Londres foi para onde me virei, a única fonte de informação fidedigna e segura, experiência de ataques passados onde havia sido espectadora ausente e que agora se tornava o guia de ação para uma experiência bastante mais ativa. Finalmente começavam a aparecer movimentações da polícia na rede social. A vaga e frustrante informação típica do início de ataques: a polícia está a responder a um incidente na estação de Oxford Circus, evitem a área.

Começou a espera. Não sabia quanto tempo teríamos de ficar ali; lembro-me de pensar que não tinha comida na mala e preocupar-me. Um trabalhador daqueles escritórios trouxe um jarro de água e copo. As casas de banho eram ali, se alguém precisasse. A rececionista de vez em quando voltava ao nosso piso para nos informar que havia mais pessoas no lobby, que não havia nenhuma informação, mas que estávamos seguros ali. Uma serenidade louvável. Para além de trocar mensagens com o D., nunca me passou pela cabeça informar alguém dos meus do que se estava a passar. O que é que ia dizer? Tenho uma maneira de encarar as adversidades que é a seguinte: engolir. Dentes cerrados e vamos racionalizar: qual é o plano? Não me estou a gabar: quando foi para fugir em pânico, sem nenhuma ameaça visível que não o pânico da multidão, também fugi. E isto nada tem que ver com coragem nem tampouco liderança. Até porque isto é uma estratégia que utilizo porque me serve a mim. Lembro-me de pensar com alívio que ainda bem que estava sozinha e só tinha de pensar em mim. Mas isto para dizer que a última coisa que queria era ligar a alguém que estivesse longe, para dar conta de uma situação que não fazia a mínima ideia de qual era, verbalizando o meu pânico. Entretanto a Met Police tinha informado para quem estivesse nas redondezas se abrigar em edifícios até informação em contrário. Tínhamos tomado a decisão correta, respirei fundo. E sentei-me no chão, preparando-me para esperar.

Notei o saco de compras que trazia e decidi enfiá-lo a custo na mochila, para que fosse mais fácil fugir da próxima vez. Voltei a ponderar descalçar a merda das botas de tacão (não descalcei).

Levantei-me para ir às janelas espreitar o que se estava a passar, na ânsia de sorver informação que teimava em não chegar pelo imediato Twitter. As pessoas já não corriam, pareciam andar normalmente pela rua. Algumas pessoas continuavam dentro do edifício oposto.

A mulher dos rumores voltou à carga, desta vez com a informação sensacional de que o marido estava a ver a BBC e que tinham informado que eram três grupos armados: um na estação de Oxford Circus, um na Debenhams, e outro na rua. Online, a BBC mantinha-se vaga nas informações, respeitando o bom jornalismo e seguindo a linha oficial da polícia, que continuava as investigações e sem divulgar nada. Apeteceu-me mandá-la calar, um Daily Mail ambulante que tira regozijo macabro de espalhar informação sensacionalista e completamente infundada.

Continuava a não haver relatos de nenhuns atiradores, esfaqueadores, camiões ou bombas. Começava a tornar-se exasperante. Mas quanto raio de tempo precisa a polícia para dizer o que se está a passar?!

Cerca de uma hora depois de entrarmos no edifício, a rececionista regressa para dizer que tinha falado com a polícia lá em baixo e estavam a recomendar às pessoas começarem a ir embora dali, não havia perigo. Tive as minhas dúvidas - não tinha havido informação oficial pelo Twitter para desandarmos - mas as pessoas lá fora caminhavam normalmente. E eu tinha as chaves do cat-sitting recente, uma casa ao fundo da rua onde me encontrava neste momento. Alguma coisa era só correr em frente.

Saímos. O som que me atingiu imediatamente foi o tectectectectec dos helicópteros por cima das nossas cabeças, as sirenes da polícia, as luzes azuis intermitentes dos carros de emergência: apesar de tudo, era uma zona ainda em estado de sítio. Caminhei até ao Hyde Park, até Marble Arch onde sabia que passavam autocarros para casa. Não valia a pena esperá-los na Oxford Street, de certeza. Centenas de pessoas na rua, mas isso não é nada de estranho naquela zona a uma sexta-feira à noite. Ainda me sentia meio fora do meu corpo, pela surrealidade do que tinha acabado de viver. A praça de Marble Arch estava cheia de pessoas, pareceu-me que um ponto de encontro de vários escritórios que devem ter políticas de evacuação planeadas para casos destes, com várias pessoas de colete refletor e megafone. De resto, a cidade completamente normal: carros a passar, a parar nos semáforos, autocarros a funcionar normalmente. Olhando em volta, as pessoas pareciam-me em estado normal. (Vi muita gente ainda abrigada em lobbies de escritórios enquanto caminhava até Marble Arch.)

Mas que raio se tinha passado?

Fui esperar o 10 à paragem. E lembro-me de pensar que ainda não estava normal por ter achado ridículo fazer um gesto tão banal como sacar do cartão para passar no autocarro. E havia qualquer coisa de estranho porque parecia-me que as pessoas à minha volta não estavam na mesma dimensão que eu, que havia qualquer coisa que não sentia certo. Lembro-me de recear ficar com algum resquício de ansiedade duradouro porque apesar de não ter estado sob perigo, experienciei tudo como tal e pensei estar a correr pela vida durante alguns fatídicos minutos.

Claro que isto agora me parece ridículo. Só quando cheguei a casa é que começaram a surgir as notícias de que a polícia não tinha encontrado vestígios de tiros ou de bombas ou de altercações ou de... nada. Até me sinto levemente zangada por esta experiência, impaciente pelo pânico que senti. Já reconstituí o que fiz e sei que tomei as decisões certas com a informação que (não) tinha: confiar que uma multidão a virar uma esquina em pânico sabe coisas que eu não, não esperar para confirmar o perigo, sair da rua o mais rápido possível, manter-me sossegada e esperar direções da polícia. O que não me impede de temer que o ridículo desta situação possa ser como a história do Pedro e do lobo da próxima vez...

Óbvio que não fiquei com resquícios de nada. Já voltei a Oxford Street ontem e hoje para continuar a cuidar da gata. Passei duas vezes pelo edifício onde entrei em pânico e vi que, caramba, é muito mais perto da Debenhams do que me tinha parecido na altura. Continuam-me a ser indiferentes as multidões, nas ruas e nas lojas, para além da leve irritação de quando queremos passar e não se mexem.

Mas continua-me ligeiramente preocupante a rapidez com que cheguei à conclusão de que aquilo era um ataque terrorista, toca a fugir. É um lembrete de que, apesar de não pensar nisso no meu dia-a-dia, a plausibilidade de uma situação dessas é forte no meu inconsciente e, a avaliar pelo pânico coletivo, no dos habitantes e turistas que visitam esta cidade.



S. 



4 comentários:

  1. Sara :(

    Pergunta que pode parecer parva: vês muita polícia aí? Eu acho que aqui é todos os dias que ou vejo, do nada, vários tipos do exército, ou vejo um cordão humano policial a barrar zonas da plataforma do comboio, ou a levar calmamente alguém para um cantinho, ou simplesmente paro a falar ao telemóvel com a minha mãe perto do Petit Palais e de repente a rua está "forrada" de carrinhas da polícia e senhores saindo com armas pesadas e coletes à prova de bala. E sabes o que é mais estranho? É que nunca me apercebi de nada, raramente percebi o que se passava (e o que percebi é que havia alguns polícias a rodear uma pessoa num canto), é tudo CALMO. Por mais armas automáticas que tenha visto desde que cá cheguei, e por mais situações destas, eu sinto que está tudo calmo - que está tudo seguro. E é tão estranho :/ parece que na minha cabeça os seis senhores do exército, três descendo de cada lado por escadas rolantes diferentes, ao fim do dia, são um cenário normal.

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    1. Não. Muito raramente e muito menos o exército. Aí em Paris é normal que seja habitual vê-los porque até ao início deste mês a França estava em estado de emergência desde 2015, e entre outras medidas o exército é chamado a patrulhar as cidades/pontos sensíveis. Tive a mesma experiência quando visitei Bruxelas das últimas vezes, imensos soldados nas ruas, nas estações de metro, à porta de centros sociais judeus, etc. Cheguei a ver carrinhas do exército com militares armados lá dentro, a deslocarem-se pela cidade. Não gostei nada disso e sinceramente tive mais medo do que tenho aqui. Não me agrada mesmo nada deparar-me com homens fortemente armados no meu dia-a-dia. Tenho a impressão que a estratégia passa mais pela dissuasão do que outra coisa, já que se um homem se decidir explodir no metro, o que é que eles podem fazer? Matá-lo? Mas entretanto já ele se fez explodir... Isto foi muito claro quando houve uma tentativa de explosão na Gare Centrale há uns meses, em que um homem queria rebentar a mala mas ela só pegou fogo. Foi logo morto a seguir mas não foram os soldados que evitaram o pior, foi a incompetência do terrorista.

      Aqui é completamente o oposto. É raro ver polícia nas ruas e nunca, nunca, com armas militares. Aliás, a polícia aqui não anda armada com armas de fogo, o que sempre achei extraordinário (no bom sentido). No entanto as unidades especiais contra-terrorismo são ativadas com uma rapidez enorme como pude testemunhar já duas vezes (também no verão houve um ataque abortado em frente ao Palácio de Buckingham precisamente no momento em que passava por lá para ir para casa - que sortuda que estou! Em menos de 5-10 minutos chegou uma dúzia de carros da polícia armada e detiveram o homem que tinha feito uma manobra qualquer suspeita com o carro lá perto do palácio e tinha uma espada no carro.) Esses sim, têm armas militares mas no dia-a-dia não os vejo (há dois à entrada do parlamento, vá).

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    2. LOL acreditas que não fazia ideia que França ainda estava em estado de emergência quando para aqui vim? :x pensei que se tinha ficado por Abril... a maioria disto que te relatei foi nas últimas semanas, até. Nem creio que todos os pontos em que se passou fossem sensíveis, às vezes é em ruas que de turístico não parecem ter nada, residenciais mesmo... nas grandes gares de comboio até percebo, sim. Aqui para entrar num centro comercial pedem para ver a tua mala. Já aceitei como normal, para o bom e para o mau, tal como aceitei a polícia toda que vejo - por menos eficaz que possa ser, sim, a verdade é que não sinto qualquer ameaça, e claro que a ameaça pode vir do nada, como isso por que passaste :/ nunca fui a Bruxelas, só fui a Londres há dois anos e a Manchester antes do sucedido por lá, mas a verdade é que, por cá, não sinto medo. Não sei que cenas testemunhei, e não sei a gravidade das mesmas porque lá está, todas as semanas vejo uma coisa "suspeita" nova (cordões policiais em torno de pessoas). Nesse aspecto, se calhar a polícia aparecer "subitamente" pode ser mais alarmista do que simplesmente estar em todo o lado e agir silenciosamente? :/

      (uma espada, uau, bué medieval e cenas)

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    3. Penso que nos estados de emergência a polícia ganha mais poderes para interrogar/interpelar pessoas mais facilmente, daí talvez as cenas que viste. E de certeza que esses poderes levam a que seja muito fácil se cair em profiling. É claro que nos habituamos, mas continuo a não achar saudável numa democracia ter exército ou polícia fortemente armada a patrulhar cidades.

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