sexta-feira, 17 de novembro de 2017

O fim do mundo não é em Chelsea, é em Westminster

A verdade é que estou aqui, tive que optar entre UK e UE, contacto com ele profissionalmente e mantenho-me a par por motivos também pessoais. Mas na maior parte do tempo é muito fácil esquecer que o Brexit vai acontecer. Voltei a viver na cidade com que estou apaixonada, comecei o meu trabalho de sonho, e por isso o meu estado de alma neste momento, assim no seu geral, é do mais abençoadamente satisfeito que me lembro de sentir.

Mas depois há umas alturas em que o Brexit berra-me aos ouvidos de tal forma que eu não consigo ignorar a evidência de estar a viver um dos períodos mais deprimentes da história recente deste país e a presenciar o governo mais incompetente de que há memória.

Não é apenas a decisão tão desnecessária, ignorante e auto-mutiladora que foi tomada. Nem a absoluta incompetência com que está a ser gerida.

O pior é mesmo esta realização de que a secção Brexiter da sociedade - público e elites media e governo - estão cegos. É uma ânsia enorme de se libertarem da Europa, de serem novamente únicos, orgulhosamente sós, qual cá mais um entre pares. Os detalhes dessa libertação? Não interessam, interessa é a visão brilhante, cor-de-rosa, maravilhosa, de um mundo onde são só eles a decidir o seu futuro, onde têm completa e absoluta soberania, como antes da guerra - quando eram especiais, sabem? Quem se atreve a questionar o processo, a levantar dúvidas pertinentes sobre a viabilidade da posição do governo nas negociações, a sugerir um processo de transição de alguns anos para que a saída não implique cortes abruptos em nenhum setor ou dimensão da sociedade, é rotulado imediatamente de traidor, Remoaner, inimigo do povo, ou, como ontem, mutineer.


Isto foi a capa de ontem do The Daily Telegraph. Não é nenhum tablóide; é um jornal conservador, de direita, sim senhora, mas nenhum Daily Mail. E no entanto a estratégia utilizada é a mesma: bullying.

Neste momento está a ser discutida no parlamento a European Union (Withdrawal) Bill, a lei que tornará toda a legislação europeia que o UK neste momento segue em legislação interna britânica. Isto para que não haja nenhum limbo legal no momento em que o Reino Unido sair formalmente da UE.

Dois problemas de peso:

- o atual governo meteu uma cláusula que antecipa que qualquer parte desta legislação europeia transposta possa a qualquer momento ser alterada por decreto ministerial sem precisar de qualquer aval do parlamento. Portanto, num sistema político onde o parlamento detém a soberania, e depois de tanta choradeira sobre sair da UE para recuperar o controlo das mãos de tecnocratas não eleitos para o povo, o governo britânico passa a ter total liberdade para emendar como quiser coisas chatas e burocráticas tais como máximo de horas laborais semanais, licenças de maternidade, obrigatoriedade de rotulagem de produtos alimentares, medidas de proteção ambientais, e afins. Tudo em nome da "competitividade económica", está bem de ver, tornar o UK um íman de investimento internacional, uma espécie de Singapura da Europa.

- a May teve a brilhante ideia de definir a data - e hora! - em que o Reino Unido passará a não pertencer à União Europeia, e quer essa precisão inscrita na lei, numa de diminuir o poder negocial do UK, provavelmente. Portanto, esqueçam os períodos de transição, esqueçam pensar em gerir um processo dantesco de separação de duas entidades emaranhadas por décadas de milhares de diretivas, regulações, decisões judiciais, padrões, programas e projetos financiados em comum de uma forma racional e o menos disruptiva possível: vamos antes sossegar os Brexiters radicais atando as mãos do governo na mesa de negociação a uma data que ou sim ou sopas. Data essa que é já daqui a ano e meio.

Ora, nem todos os líderes políticos foram consumidos pela histeria Brexit coletiva. Houve uns poucos deputados conservadores que se rebelaram contra estas cláusulas, especialmente a da data de saída, e estão contra essa proposta do seu próprio partido. E é aqui que entra a primeira página do Daily Telegraph. No dia seguinte ao primeiro dia de negociações desta lei, pimba, caras e nomes num dos principais jornais diários britânicos, com o rótulo de amotinados, para que o ultraje dos nacionalistas seja convenientemente espicaçado e direcionado.

Tenho a impressão que já vi esta tática nalgum lado...


Familiar?

Isto foi há cerca de um ano, quando os juízes do Supremo Tribunal decretaram por maioria que era inconstitucional o governo decidir começar a negociar o Brexit sem consultar o parlamento primeiro. Tomem lá a vossa cara na imprensa popular sobre o rótulo de "Inimigos do Povo" que é para verem o que é bom para a tosse.

Bullying. É a palavra que me ocorre e mesmo assim acho-a fraca para este explícito incitar de ódio a elementos de uma democracia que estão a fazer os checks and balances normais num sistema político democrático representativo onde impera a lei.

Para muita gente, o resultado do malfadado referendo, que nem sequer era vinculativo, tem agora um caráter absoluto e permanente, os 51,9% que representam a vontade indiscutível e imutável de um povo, sem margem para qualquer compromisso ou discussão.

Há quem desconfie que há uma vontade neste governo conservador - e sem dúvida numa parte significativa da população - de que a saída seja um crash completo, um final sem se chegar a acordo nenhum, para que haja uma espécie de reset do país. Sei que essa é a vontade de muita gente que viu nisto um voto de protesto pelos anos de políticas de austeridade, desemprego em zonas que dependiam de indústrias que já não existem, pela mudança da cor das pessoas que veem na rua e pelo declínio das condições de vida que tinham. O mundo dos 60s era um lugar mais previsível, mais estável, mais familiar. Querem isso de volta. Quanto a uma parte sinistra de conservadores eurocéticos radicais e neoliberais: que ideia tentadora, essa de não ter que chegar a qualquer compromisso com a outra parte, poder deitar todas as regulações europeias para o lixo e tornar o UK num offshore internacional, um recanto capitalista-em-esteróides europeu sem direitos e proteções ambientais e a consumidores para chatear. Era só inscrever o 29 de março de 2019 na lei e continuar a arrastar os pés nas negociações através de ambiguidade e incompetência.

Estou triste. Não me interpretem mal - estou felicíssima por estar de volta e em paz com a minha vida nesta cidade que amo e onde só me tiram daqui deportada (literalmente). Mas estou triste. Sei que este país é tão melhor do que isto. Mas na mó de cima está agora um cocktail de ignorância, nacionalismo, radicalismo e ingenuidade que só vai trazer infelicidade e dificuldade desnecessárias, e que está a pintar esta coletividade que admiro de tons muito sombrios.



S.

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