terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

A maternidade como (não) projeto


Nunca ninguém me deu uma razão convincente sobre o porque é que se tem filhos. Para todas as explicações sobejamente conhecidas, ou prós, consigo arranjar outras tantas que as anulam, os contras. A do amor (já tenho pessoas na minha vida para amar, para quê acrescentar mais), a da construção da família (dois não são uma família?), a da descendência (o mundo já está sobrepopulado, para quê botar mais gente), a do continuar a nossa obra (gerar e criar um ser humano para massajar o ego sempre me pareceu duvidoso), a do "porque é mesmo assim a vida" (quem disse?), etc. Eu tenho uma teoria muito própria sobre o porquê que as pessoas têm filhos, mas como é muito parcial, muito fruto da minha não-maternidade, extremamente politicamente incorreta, e não me apetece ser linchada em praça pública, guardo-a só para mim. Um bocadinho do género como quando a Fátima Lopes, farta de as entrevistas que lhe faziam rondarem sempre a pergunta do "Mas não quer ter filhos porquê?" respondeu que as mulheres que tinham filhos era porque não se conseguiam realizar de outra maneira. Assim, muito à bruta e sem rodeios.

Minto; uma vez uma amiga deu-me uma razão que me convenceu de certa maneira ou, pelo menos, deu-me que pensar. Disse ela que as pessoas têm filhos porque isso lhes permite ver tudo de olhos frescos. As pequeninas coisas do dia-a-dia, as coisas maiores como as festas e as férias, o mundo, passa a ser visto como que pela primeira vez. É como quando eu vou no autocarro a chegar a Mafra e esforço-me para olhar para o Convento como se fosse uma turista, ou quando releio um post após saber que determinada pessoa já o leu, tentando avaliá-lo pelos olhos de outrém. É o renovar do mundo, vá.

Mas depois penso em toda a chatice que toda a gente que já passou pela parentalidade está sempre a enumerar, desde as birras, os choros, o cocó, o parto, a adolescência e as respostas rosnadas, o deixar de sermos donos do nosso tempo, o custo financeiro, etc, e penso que quem se devia ter que justificar seriam os que queriam ser pais, não os que não querem. Porque os que não querem ser pais é só o continuar da situação em que já vivem, os outros é que estão ativamente a mudar a sua. E que o "porque sempre foi assim" nunca justificou nada.

É por isso que quando leio na Beauvoir aquela concisa frase do:


"Gerar, amamentar, não são atividades, são funções naturais; nenhum projeto é aqui empenhado; é por isso que a mulher nunca encontrou aí motivo de uma afirmação superior da sua existência; ela apenas se submete passivamente o seu destino biológico."

"Engendrer, allaiter ne sont pas des activités, ce sont des fonctions naturelles; aucun projet n'y est engagé; c'est pourquoi la femme n'y trouve pas le motif d'une affirmation hautaine de son existence; elle subit passivement son destin biologique."


eu penso: "Oh porra, acertou na muche".

A frase ressoou comigo por tudo o desabafado acima, mas não só. Ela vem no encadeamento da análise do que é ser humano. Que característica/transcendência/atividade nos eleva acima de meros animais, da "besta sadia / cadáver adiado que procria"? A Beauvoir explica que:


"É arriscando a vida que o homem se eleva acima do animal."

"Se en risquant sa vie que l'homme s'élève ao dessus de l'animal." 


E aqui homem entende-se como Homem, a humanidade. Ou seja, é desbravando o mundo que tanto homens como mulheres se realizam como seres humanos, é no trabalho produtivo, na contribuição para um mundo melhor, no desenvolvimento de projetos, na sua superação enquanto indivíduos e enquanto sociedade. Mas para Beauvoir, a maternidade não é nenhuma destas coisas, porque é tão-somente uma atividade biológica, tão corriqueiramente animal como comer, dormir, crescer, caçar, copular, defecar, urinar, envelhecer, morrer. E é precisamente por isto que a História dos dois géneros humanos não é uma História de divisão natural de esferas de atividade, nem tampouco de igual valor. Enquanto os homens - desta vez os seres humanos de género masculino - conquistavam e moldavam o mundo, descobriam os limites do pensamento, da natureza e da capacidade humana, as mulheres estavam confinadas ao seu destino biológico de procriar:


"Mas as vozes femininas calaram-se sempre onde começava a ação concreta: puderam suscitar guerras, nunca sugerir a tática de uma batalha; nunca orientaram a política exceto quando esta se reduzia a intriga; os verdadeiros comandos do mundo nunca estiveram nas mãos de mulheres; estas nunca agiram sobre as técnicas nem sobre a economia, nunca fizeram nem desfizeram Estados, elas não descobriram mundos. É por sua causa que certos eventos se desenrolaram, mas as mulheres sempre foram pretextos, muito mais do que agentes."


"Mais en fait, les voix féminines se taisent là où commence l'action concrète: elles ont pu susciter la guère, non suggérer la táctique d'une bataille; elles n'ont guère orienté la politique que dans la mesure où la politique se réduisait à l'intrigue; les vraies commandes du monde n'ont jamais été aux mains des femmes; elles n'ont pas agi sur les techniques ni sur l'économie, elles n'ont pas fait ni défait des États, elles n'ont pas découvert des mondes. C'est par elles que certaines événements ont été déclenchés; mais elles ont été prétextes beaucoup plus qu'agents." 


Isto está tudo muito bem e explica em poucas palavras a origem da inferioridade da condição da mulher ao longo dos tempos. Encaixa tão bem com as minhas dúvidas sobre a parentalidade e tudo, perfeito.

Mas não consegui evitar o cisma na frase "Gerar não é um projeto"...

Desde que a li que se tornou na frase que mais me deu que pensar em todo O Segundo Sexo. Não é um projeto porque é uma atividade biológica... Não é um projeto porque qualquer animal o faz... Ter filhos não é um projeto...

Mas que raio...?

Mas ter filhos atualmente equivale realmente a procriar como quando vivíamos nas cavernas? Não há nada na atividade de gerar pessoas de hoje em dia que lhe acrescente um valor que esta não tinha há milénios atrás? E todo o trabalho que envolve educar um pequeno ser humano para viver saudavelmente em sociedade, o que os ingleses chamam de "raise a child"? Não se diz "raise a dog"... E se o que uma mãe e um pai humanos fazem é intrinsecamente o mesmo que o que uma mãe gata faz, então onde ficam os professores e, especialmente, os educadores de infância? O que eles fazem não é o mesmo que um pai? Então se é, não conta como projeto, também? Se não é, onde está a diferença: no serem remunerados? No facto de os filhos não serem deles?

Ainda não consegui desembrulhar este novelo.

Está pois visto que nem a Beauvoir me consegue esclarecer nas questões da parentalidade e descendência. 

Não deixa de ser curioso que precisamente hoje tenha nascido um bebé muito aguardado na família, de duas pessoas quase da minha idade e da do D. e que esteja a rebentar de curiosidade sobre todos os detalhes, dos mais animalescos e infímos aos mais transcendentes e sentimentais. Acho que é um bocadinho parecido com o fascínio que eu tenho pelo mundo das maquilhagens: leio quem é apaixonado por tal, surpreendo-me com a dedicação, paixão e perseverança que é preciso para sermos bons naquilo, mas depois no meu dia-a-dia fujo a sete-pés. É um fascínio ao longe*, portanto.




S.


*Ouviram, mãe e pai? Ao longe. Este post não é nenhum reflexo de qualquer relógio biológico, podem respirar fundo . O único relógio que toca nesta casa é o alarme às 7h45.

4 comentários:

  1. A mim o que me move mais é a promessa, que até pode vir a revelar-se um logro, de ser invadida por um amor maior ou, pelo menos, muito diferente.

    Quando nasceu a primeira da minha segunda geração de irmãos (ou seja, aqueles de quem fui mais mãezinha), tinha eu catorze anos, deu-se uma coisa muito estranha: deixei de ter medo da minha morte e passei a sonhar que me morriam os irmãos mais novos, normalmente caindo numa barragem, e eu atirava-me atrás mas não os conseguia salvar. Pela primeira vez senti que dava de bom grado a vida por outra pessoa (e eu antes disso sentia-me muito mal por não ser como as princesas dos contos de fadas que morreriam pelos pais), foi como se a minha capacidade de amar tivesse esticado infinitamente. Acho que esse é o melhor resumo de porque quero ter filhos: amar bués e com esse amor, idealmente, contribuir para criar crianças e adultos seguros e felizes.

    (Claro que isto são tudo processos culturalmente induzidos, mas são-no quer sejam a afirmação do projecto maternidade/paternidade quer a sua negação, por isso pensar um espaço de liberdade para a definição de um projecto pessoal implica considerar criticamente tudo isto. Porque quero ser mãe, quero mesmo? há outras formas de conseguir esses objectivos, são melhores? Criar uma família porque acho que me faria feliz é um motivo suficientemente bom? E se não fizer, e a frustração passar aos desgraçados dos meus infantes?

    Mas também: a ideia de "carreira", quero mesmo uma carreira ou faço-o porque a realização pelo trabalho e a constante evolução são coisas que a sociedade espera de mim? Não por oposição a ficar em casa, mas não era mais feliz se tivesse apenas um emprego e pensasse a minha realização pessoal como externa à minha relação com o trabalho e com o dinheiro? Se a criação intelectual me faz feliz, não estou a condenar-me à frustração ao subordiná-la aos meus chefes?

    Já para não falar dos próprios conceitos de felicidade e realização pessoal)

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  2. Oops, isto ficou um bocadinho comprido...

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  3. Rita, obrigada pelo comentário que me veio dar mais material para pensar. O argumento de um amor incondicional e como nenhum outro tem muito peso mas é talvez o mais misterioso. Se o amor pelos filhos é um amor diferente de todos os outros, então só se o sente quando o filho existe, nunca antes. Ou seja, se eu nunca o senti também não sei o que estou a perder, logo, o que me leva a atirar de cabeça para a maternidade? É-me um bocado difícil atingir essa ideia, precisamente porque nunca senti esse amor maternal. Talvez seja por isso que eu, de longe, só consigo ver os pontos negativos da maternidade. Não sei se estou a fazer sentido...

    É curioso que ontem debati isto com o companheiro e ele disse-me muito curtamente "Há coisas que não se explicam, sentem-se." A minha personalidade racionalizadora rebelou-se contra tal afirmação mas acho que é capaz de ser isso, é.

    Tal como disse nas várias discussões que tive sobre o tema, eu quero ser mãe. Mas quero perceber por que é que quero ser mãe, exatamente como referiste no 3º parágrafo do comentário: há que pensar criticamente sobre a maternidade para se descobrir se se embarca nela por pressão social ou por verdadeira escolha (no máximo da liberdade que nos é possível, as nossas escolhas têm sempre um quê de peer pressure associada).

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  4. Eu também não tenho como avaliar se é verdade, essa história do amor maior, mas mesmo que "só" seja um pulo do tamanho de que falei ali em cima já é suficiente para ter de experimentar.

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