sábado, 14 de fevereiro de 2015

Eu estou a fazer de mulher, e tu?

Numa altura em que debatiam as diferenças entre sexo e género e os arrumávamos em duas caixas distintas - o sexo na caixa das diferenças biológicas, o género na caixa das características do que é ser homem e mulher numa sociedade numa determinada altura - veio a Judith Butler e baralhou isto tudo.
 
Até aqui (leia-se: anos 90) entendia-se que o sexo era naturalmente dado, o género era socialmente construído e assimilado. E isto ainda é uma distinção útil quando se fala disto das desigualdades e dos feminismos. O que Butler veio dizer foi que se calhar isto era uma distinção um bocado simplista.

Pois que o género é socialmente construído e portanto diferente consoante a sociedade e o período de que falamos. Os sapatos de salto alto já foram coisa de homem, e o cor-de-rosa foi durante algum tempo associado à masculinidade. Ainda assim, o género não é uma construção abstrata, ele é influenciado pelos traços biológicos do animal humano a que se refere. Uma parte substancial das regras do que é ser mulher na nossa sociedade atual ainda está muito relacionada com a capacidade da fêmea humana dar à luz: o instinto maternal que é suposto todas as mulheres sentirem, a sua função como cuidadoras principais dos filhos, todas estas regras não-escritas vão buscar a sua justificação à biologia.
 
Mas e se, propôs Butler, o sexo for tão influenciado pelo género como o género é pelo sexo? E se a biologia for tão construída socialmente quanto as regras do ser mulher e ser homem? E aqui é que uma pessoa franze o sobrolho e começa a achar que o debate já está a resvalar para o absurdo: como assim, a biologia é construída socialmente? As diferenças sexuais são naturais, estão à vista de toda a gente! (salvo seja). Não há como as influenciar socialmente.
 
Ah, mas o valor que damos a essas diferenças é construído socialmente e a sua lógica não tem nada de natural. E é quando percebemos isto que o pensamento de Judith Butler começa a ser tão brilhante.
 
Vejamos: a inveja do pénis, o conceito inventado por Freud que basicamente se explica sozinho: a inveja que todas as raparigas têm dos rapazes por eles terem pilinha e elas não. E o Freud fundamentou esta inveja na biologia, nas supostas características físicas do instrumento em questão. Mas este conceito só faz sentido numa sociedade que valoriza e inventou essas mesmas características para o pénis. O que é que há de tão espetacular naquilo? É um pedacito de carne que anda pendurado a maior parte do tempo, e por ser exterior até torna o seu dono mais vulnerável. Não seria mais lógico haver uma inveja do útero, um complexo de inferioridade que todos os rapazes tivessem por não conseguirem criar vida? Isso sim, é uma coisa espetacular. Mas ao pénis, símbolo diferenciador do género das pessoas dominantes foram conferidas toda uma série de características que de biológicas têm pouco: a força, a dominação, a pujança. Ide ver o texto da Gloria Steinem 'If Men Could Menstruate' para um desenvolvimento deste raciocínio (é curtinho e muito divertido). Deixo aqui só um teaser:
 
'Whatever a "superior" group has will be used to justify its superiority, and whatever an "inferior" group has will be used to justify its plight. Black men were given poorly paid jobs because they were said to be "stronger" than white men, while all women were relegated to poorly paid jobs because they were said to be "weaker." As the little boy said when asked if he wanted to be a lawyer like his mother, "Oh no, that's women's work." Logic has nothing to do with oppression.'
 
Voltando à Judith Butler e como ela baralhou ainda mais o binómio tão certinho de sexo e género. Ela disse outra coisa profundamente inovadora: o género não existe predeterminado nem abstrato. Ele só existe quando e porque é representado. Uma pessoa não é mulher porque os outros estabelecem à priori que ela é mulher; ela é mulher quando e porque representa o papel de mulher uma e outra vez, todos os dias, durante toda a vida (um homem, idem). Visto-me com as roupas que são associadas às mulheres, tenho o cabelo comprido como é típico de uma mulher, uso maquilhagem, depilo-me, arranjo as unhas, comportamentos associados ao ser mulher, estou a representar o meu género (no sentido de 'performing gender', atuar, como num palco): sou uma mulher. E isto só acontece porque o faço uma e outra vez.
 
Ou seja, estamos todos a viver uma gigante peça de teatro, ou a brincar às casinhas, 'eu faço de homem, tu fazes de mulher', a representar um papel que nos coube e que às vezes nos faz menos sentido do que outras vezes.
 
E apesar de isto ser uma teoria um bocado difícil de compreender na totalidade (quer dizer que só existe género porque todos o representamos, as regras só existem porque as cumprimos uma e outra vez? Mas então o género desaparecia se parássemos de representar? Seríamos o quê então, só humanos?), no seu essencial ela faz-me um sentido do caraças. Performing gender... Quantas vezes dei por mim a olhar para uma professora ou uma amiga, e a pensar 'O que é que te fez decidir usar esse colar? O que é que ele acrescenta à roupa que vestiste para sair à rua que tem a função primária de te proteger do frio?'. Ou quando decidi - ainda que de forma inconsciente e gradual - deixar de usar brincos no dia-a-dia: 'Esta ação diária que eu faço tirar e pôr estes alfinetes nas orelhas, qual é o propósito? É para quem? Que papel estou eu a representar? As minhas orelhas nuas não são suficientes?'. É por isso que acho esta piada tão brilhante:



Não me interpretem mal: eu não sou contra nada dessas coisas, nem quem as usa, e eu própria uso-as de vez em quando. E talvez até não esteja a incluir aqui o fator da beleza, decoração, sentido estético, que os seres humanos têm e que lhes faz sentir prazer em olhar para coisas bonitas (se bem que também se pode argumentar que esse sentido estético será influenciado socialmente). A minha curiosidade é mesmo uma curiosidade infantil e sem maldade, de tentar perceber porque é que eu ou os outros escolhemos fazer isto em vez daquilo, nos incomodamos a escolher usar isto ou aquilo que não tem um propósito justificado por necessidades primárias. A ideia de que estamos todos a representar o papel de 'homens' ou 'mulheres' faz-me muito sentido.
 
Por isso vão lá festejar o Carnaval e mesmo que não sejam grandes adeptos de mascarar, lembrem-se: façam o que fizerem, não dá para lhe fugir, estão a usar a máscara que usam o ano inteiro.




S.


     

10 comentários:

  1. Nestas questões [género (social), sexo (biológico) - sem sequer chegar à Butler e às correntes posmodernistas], há cenários que me deixam baralhada. Por exemplo, quando há crianças de tenra idade que afirmam sentir-se de outro "género" - descritas como: p.e. meninas que recusam ‘coisas femininas’ e preferem brinquedos e roupa ‘masculinos’ (este caso é ilustrativo do que estou a falar: https://www.youtube.com/watch?v=yAHCqnux2fk «her brain identifies with that of a boy»?). Ora, se o género é socialmente construído como é que uma criança de tenra idade diz sentir-se melhor do «outro género»? Ou tem 'um cérebro masculino'? Confesso que isto me deixa confusa. Este vídeo apenas reforça a ideia do género ser 'biologicamente determinado' - aliás, as imagens com as atividades que a criança - agora que assume o seu género masculino - pratica (desportos de grupo) são reveladores do abismo que existe na cabeça das pessoas relativamente ao que os papéis de uns e de outras são.

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  2. Sim, acho que crianças transgénero são um fenómeno muito interessante, e pouco estudado, parece-me. Eu acho que, na teoria, se vivessemos numa sociedade sem géneros (sem coisas masculinas e femininas) não existiriam pessoas transgénero. Isto é o que muito simplisticamente suspeito.
    Mas não me parece que esses casos venham provar que o género é biologicamente determinado. É incrível a forma como as crianças absorvem estas regras (este brinquedo é de rapariga, aquela roupa é de rapaz, etc) desde tão cedo, especialmente se não houver tentativa de minimizar essa divisão. Uma colega conta frequentemente episódios com a filha de 3 anos e a rapariga já está completamente obcecada com as princesas, gostar de pintar as unhas, e afins. Acho que as pessoas não se dão conta de quanto estas regras e sinais são omnipresentes, muito porque estamos habituados a elas, já não as conseguimos ver.
    Acho mais confuso a questão das pessoas transsexuais. Já li coisas (mas muito de raspão) que indicavam que uma pessoa nascer sexualmente ambígua é mais frequente do que pensa, ou seja, ter alguns órgãos sexuais de um sexo e outros doutro, e a pressa numa sala de partos em se decidir se bebé é menino ou menina pode explicar alguns destes casos. Mas isto é uma pressa que vem da nossa necessidade de dividir tudo em 'menino-menina', 'homem-mulher', 'masculino-feminino', não haver cá espaço para seres humanos ambíguos. Pelos vistos isto não é tão natural como se possa pensar à partida. Mas gostava de ler mais sobre isto, de um ponto de vista da biologia.

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  3. Sim, claro que a imposição do género se faz desde muito pequenino/a - aliás, mesmo antes de se nascer. Com o advento das ecografias essa construção inicia-se muito antes do nascimento. E sim, é verdade que a incidência de bebés que nascem com genitália de ambos os sexos é muito mais alta do que o que se costuma achar comummente. Se é certo que pais e mães (e família alargada) contribuem desde cedo para a imposição do género - desde logo como pegam no e falam para o/a bebé que varia consoante o género do bebé e há várias experiências que comprovam como as pessoas se comportam de forma mais enérgica face a um menino do que perante uma bebé; dizia eu que se é certa esta diferença de tratamento, o caso desta família deixa-me perplexa porque não me parece que seja apenas uma questão de gostar de brinquedos desadequados (ler em itálico). Toda a gente conhece meninos que brincam com barbies e são bailarinos e meninas que adoram jogar futebol e o spider man (e o sucesso do Star Wars, p.e., não escolhe género entre as crianças, e convenhamos que não é nada "feminino" - estereotipadamente falando, é claro). Ou seja, a minha perplexidade surge precisamente por esta criança - tão cedo - ter interiorizado que ser menino ou ser menina era isto ou aquilo e rebelar-se contra o que a mãe natureza (salvo seja) lhe havia reservado.
    Também nas pessoas transgénero há/pode haver diferenças entre quem faz cirurgia de mudança de sexo. Por exemplo, no outro dia estava a ler um estudo em que se concluia que as mulheres transgénero que ainda não tinham mudado de sexo não sentiam o mesmo medo de agressões sexuais do que as transgénero que já se haviam submetido à operação. Nestas, o medo da vitimação era similar ao das mulheres não transgénero. Parece-me um fenómeno muito complexo.

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  4. Ding ding ding ding ding. Ainda gostava de ver o dia em que o género passe a irrelevante; estou convencida que é inevitável, por mais tempo que demore. Usar o sexo (intersexo, fêmea, macho) como atalho prático (apesar de simplista) para lidar com o que se relaciona com a fisiologia, e mai nada.

    Se o género não existisse, o transgénero também não existiria, simplesmente porque tudo isso deixaria de ser relevante. Espero ver cada vez mais dados sobre este tema nos próximos tempos. Do meu ponto de vista (longe de informadíssimo), uma criança que nasça com sistema reprodutor "fêmea" que seja obcecada com princesas e com cor de rosa interiorizou tanto a divisão entre os dois papeis de género como uma criança com sistema reprodutor "fêmea" que se identifique como "menino" e que brinque apenas com brinquedos de "menino" e que rejeite tudo o que é de "menina". Neste momento, não vejo diferença entre os dois casos, excepto a percepção que outros têm do indivíduo, e a dificuldade que a sociedade impõe a uma criança e não à outra.

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  5. "Se o género não existisse, o transgénero também não existiria". Plenamente de acordo e acho que a frase é muito feliz na expressão da ideia.

    O que foge à minha compreensão é (no cenário que colocas das duas crianças que interiorizaram os seus papéis de género) porque é que uma afirma "não se sentir bem" papel, portanto, rebelando-se, e outra não. Esta é a minha interrogação. Sendo certo que o que é "feminino/masculino" hoje e aqui não o é (ou pode não ser) amanhã ou mesmo agora noutro local, como é que uma criança conclui que, não gostar do que é "feminino aqui e agora" significa que é do outro género.... não sei se me fiz entender, mas espero que sim.

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  6. Porque é que algumas crianças aceitam a socialização que lhes é imposta e os papeis que lhes são atribuídos, e outras não? Boa pergunta, a resposta não sei, espero ver dados sobre o assunto.

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  7. Acho que deve ter que ver com a rigidez que a criança entenda ter essa divisão: se achar que os rapazes estão 'proibidos' de gostar de princesas e cor de rosa e vestidos, e ele for rapaz e gostar dessas coisas todas, vai pensar que há algo de muito errado consigo, e que gostava era de ser rapariga para poder gostar dessas coisas todas livremente. Se lhe acontecer o mesmo mas calhar a ter uma família/círculo social que é mais conpreensivo, talvez não haja essa rebelião. (Não sei se isto é mesmo assim, é só o que me parece lógico.)

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  8. Faz todo o sentido que se deva de novo àquilo a que a criança está exposta, se as expectativas são impostas com mais ou menos rigidez. A coisa fica mais complexa ao olhar para a orientação sexual e romântica; o género, como estou convencida que um dia daqui a muito tempo vai deixar de importar, imagino que seja ensinado, sem mais componentes para além da social.

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  9. Uma pequena nota: "If men could menstruate" é de Gloria Steinem (e não estou certa se Germaine Greer não ficaria ofendida por lhe atribuirem um texto de Steinem).

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  10. Oops, já está emendado, obrigada! (as minhas desculpas à Germaine Greer)

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