quarta-feira, 13 de maio de 2015

Entretanto, há 70 anos numa Berlim 'libertada'


in A Woman in Berlin, anonymous


Estou a ler o diário que uma mulher alemã manteve durante dois meses aquando da chegada do Exército Vermelho a Berlim, da luta pela cidade e da capitulação alemã.

Para além de ser uma perspetiva incrível sobre o dia-a-dia das pessoas durante o crepúsculo de uma guerra - desde os abrigos coletivos nas caves dos prédios sempre que chegavam as bombas, até à ida diária à bomba para ir busca água, as rações a que tinham direito, a espera e incerteza sobre quando chegariam os russos e a incerteza geral pelo futuro - é um retrato profundamente realista (porque, enfim, escrito na primeira pessoa e à medida que as coisas iam acontecendo) sobre a natureza humana, as relações entre conquistador e conquistado, e a capacidade do ser humano de se adaptar a condições que no conforto da nossa paz achamos inconcebíveis.

É incrível a forma lúcida e objetiva com que ela analisa o que vai acontecendo, coisas por que passa - incluíndo múltiplas violações - e o detalhe que fornece. 

Talvez o mais precioso de tudo sejam as reflexões desapaixonadas que faz de assuntos gerais através das experiências que vai vivendo. Há uma altura em que reflete se a sua relação com um major do exército russo se baseava em violação ou se não estaria ela a trocar favores sexuais por comida, e se sim, o que achava ela do facto de se estar a prostituir (ela não julga a situação moralmente e diz muito simplesmente que nunca se achou acima das mulheres que se prostituem para ganhar a vida). Ou de quando conclui que o facto de falar um pouco russo é ao mesmo tempo uma benção e uma maldição, já que por conseguir entender os soldados consegue identificar-se humanamente com eles, consegue vê-los como indivíduos, como humanos, e portanto não consegue odiá-los no geral como bestas pelo que estão a fazer, como outras mulheres alemãs conseguem. Ou quando, já na inevitabilidade de Berlim ser vencida, repetir sarcasticamente o dito de que os berlinenses otimistas estão a aprender inglês, os pessimistas a aprender russo. Quando reflete no odioso culto à masculinidade feito durante o regime Nazi, mas masculinidade essa que agora se refletia na decadência dos berlinenses que restavam, que não levantavam a voz a nenhum dos conquistadores, nem punham qualquer entrave ao tratamento vil destes às suas mulheres, que por isso iria ser preciso encontrar um novo conceito de masculinidade após a guerra. O relato das conversas sobre política que teve com alguns membros do exército russo, do medo que os russos em geral tinham de subir escadas por estarem habituados a casas rurais de único piso, de como eles só conseguiam violar mulheres quando estavam podres de bêbados, de como aproveitaram as bandeiras nazis para recortar bandeiras vermelhas e hasteá-las no topo de edifícios, de como relógios de pulso fascinavam os soldados russos, alguns usando-os 5 e 6 em cada braço, porque na URSS não havia cá desses luxos.

O diário foi publicado em 1954, em inglês, salvo erro, e não na Alemanha, porque houve uma controvérsia enorme sobre o conteúdo do diário. Ninguém queria falar das violações em massa, ainda hoje um assunto tabu, nem da geral conivência dos homens alemães com aquilo que os russos fizeram às suas mulheres (a autora não os recrimina, observando que é uma técnica de sobrevivência como outra qualquer, mas relata surpreendida a retirada que dois ou três russos fizeram quando um marido lhes gritou que deixassem a sua mulher em paz - não estavam à espera daquela reação e não queriam confusão). A autora manteve o anonimato, e só autorizou a re-publicação do livro após a sua morte, para evitar mais uma onda de polémica.

É um relato fascinante, bem mais incrível do que literatura histórica da época. Parece que a realidade supera sempre a ficção, não é verdade, tanto no mais terrível como no mais belo.




S.

2 comentários:

  1. Realmente só conhecia esta história da ficção.
    E parece que duas das características que tomamos às colheradas desde pequenas (para além das muito batidas "desvantagens" do género feminino) são essa lucidez e sentido prático para lidar com os problemas. Sonho com um mundo em que todas as mulheres possam viver alegremente em negação sem que fiquem bocas por alimentar ;)

    ResponderEliminar
  2. Sim, ela refere várias vezes isso, que as mulheres conseguem lidar muito melhor com o que está a acontecer do que os homens. No caso das violações, ela diz mesmo que como foi uma experiência coletiva, a terapia também foi coletiva, as mulheres falavam entre si sobre o que lhes tinha acontecido, muitas de forma aparentemente leve, mas os homens nem sequer conseguiam ouvir falar daquilo, fugiam da sala. Claro que isto não quer dizer que não houve mulheres profundamente traumatizadas, mas a maneira de lidar com o trauma foi no geral diferente entre umas e outros.

    ResponderEliminar