terça-feira, 23 de abril de 2013

Essas cobras que só pensam é na carreira

Baseado neste artigo do The Guardian "Doubts over childcare 'expert' feted by Tories"

A lengalenga do costume de que as mães que trabalham nem são dignas desse nome. Mas desta vez com um twist muito giro: o tiro saiu-lhes pela culatra.

A sério, velhos preconceitos revisitados tiram-me do sério.

O governo britânico está com sérias e aplaudíveis intenções de reformar profundamente o sistema britânico de childcare. Considerando que li há pouco tempo - ainda que não me lembre onde - que Inglaterra, e mais propriamente Londres, era o sítio da Europa onde o peso financeiro de ter uma criança na creche era mais elevado, parece-me uma intenção de louvar. Ao que parece, querem reformular totalmente o sistema de licenças de maternidade/paternidade/parental e, inspirando-se no modelo nórdico, criar uma única licença, chamada parental, em que as primeiras semanas seriam para a mãe e o resto do tempo seria para ser dividido como os pais bem entenderem. Pessoalmente, e em nome de uma verdadeira reconciliação trabalho-família que inclua também os homens, fiquei muito satisfeita. Se bem que, se o passado ensinar alguma coisa, é que os meses de licença parental para serem divididos como os pais bem entenderem vai ser código para "mulheres tiram o resto dos meses e aquilo passa na prática a ser licença de maternidade na mesma". Mas isso é outra linha de discussão que não queria seguir hoje.

Hoje é sobre as creches, ATLs, atividades extra-curriculares, etc. O compreensivo e muito útil termo "childcare". Esta é também uma das áreas cruciais nisto da conciliação trabalho-família que o governo britânico almeja alterar. E os fazedores-de-políticas, quando querem mudar alguma coisa, encomendam estudos de impacto, estudos de benefício-prejuízo, ouvem especialistas, são pressionados por grupos de interesse disto e daquilo, decidem. Gosto mesmo muito deste processo, foi sobre ele que versou a minha tese-bebé e continua-me a intrigar e a fazer cócegas a inteligência. E foi precisamente a escolha terrivelmente má de um "especialista" que me deixou a espumar durante algum tempo após ler uma notícia.

Uma deputada Conservadora, sem dúvida lobbyada pelo grupo Mothers at Home Matter (os verdadeiros patrocinadores do evento) organizou uma espécie de conferência no Parlamento britânico sobre os males que as creches provocam nas crianças. Para tal convidou um "especialista" sobre o assunto, o senhor Jonas Himmelstrand, para botar faladura sobre como as creches estão a destruir a sanidade mental dos adolescentes suecos. Porque o senhor é sueco - vejam bem o brilhantismo da estratégia, levar ali um insider para dizer como afinal um dos países com o melhor sistema de childcare do mundo (entre tantos outros indicadores sociais) não passa afinal de um grande embuste - portanto sabe, claro. 

Claro que os jornais conservadores, como o Daily Mail e o Daliy Telegraph, bateram todos muitas palmas, louvando este senhor e os seus achados (que não são seus mas já lá vamos), apontando o dedo acusador a essas estúpidas mulheres modernas que querem ter tudo e fazê-las ver que, oh! estão a fazer mal aos vossos filhos, suas cabras insensíveis, e que os males todos da sociedade estão na sua ausência de instinto maternal e nos vossos corações de pedra, porque querem é laurear a pevide em vez de voltar a casa e à cozinha, como é vosso destino inevitável.

Só que entretanto, houve um ou outro jornalista que se deve ter lembrado de googlar o senhor especialista, e o "instituto" a que este pertencia. Se calhar até houve um jornalista mais maluco que se atreveu a ler o estudo original que o senhor "especialista" tão mal citou. E depressa descobriu que era só trafulhice atrás de trafulhice. O autor do estudo - o VERDADEIRO especialista e quem devia ter sido convidado em primeiro lugar, já agora - veio logo negar que houvesse alguma ligação entre creches e menor saúde mental na adolescência. Disse até que essa foi uma causalidade particularmente investigada no estudo em questão e que não tinham descoberto qualquer relação. E outro psicólogo, também mal citado pelo "especialista", quando contactado pela imprensa britânica, referiu que, aliás, tinham era comprovado - mais uma vez - que tempo passado em creches de qualidade é benéfico para o desenvolvimento cognitivo/comportamental/social da criança, mesmo de tenra idade. E que um "especialista" ir a público debitar dados ao calhas e tirá-los do contexto e do estudo era extremamente não-cientifico e irresponsável. Eu acrescentaria perigoso também, já que a deputada que o organizou é a conselheira sobre infância e parentalidade do David Cameron e o Ministro do Trabalho estava na audiência. 

Ao que parece o "especialista" diz que não tem curso superior nenhum, que foi "self-taught" (isto faz-me lembrar a piada do "aprendi com a Escola da Vida") mas que também nunca disse que tinha curso. Mas que se apresentou como pertencente ao Mireja Institute, que por acaso só tem um membro e que é ele próprio. 

A sério, isto consegue tornar-se mais ridículo?

Entretanto lá contactaram o Mothers at Home Matter para comentarem estes achados, já que o evento foi deles e o convidado também. Depois de uns protestos muito informados, que nã, nã, a investigação do "especialista" era "all based on proper scientific figures" lá acabaram por balbuciar um  "He travels the world speaking on these issues, so I guess there must be some credibility to these figures," que é o equivalente a "se ele diz é porque deve ser". Argumento à prova de bala, como se sabe.

Entretanto eu fui ao website do Mothers at Home Matter e aquilo parece tudo muito razoavelzinho. Insistem em que o ficar em casa devia ser considerado uma opção válida na sociedade de hoje, que queriam dar voz às mães que escolhem ficar em casa com os filhos, etc. Mas é a insistência na palavra "mãe" (em vez de parent. Se é de amor que elas falam que a criança precisa, porque é que tem que ser a mãe a ficar? O pai não tem o mesmo amor incondicional?), é o nome do grupo, é o demonizar das mães que têm emprego através destas conferências pseudo-cientfícas, é o trazer de volta o velho argumento de que as mulheres, simplesmente não podem ter tudo. Não podem. E quando tentam, dão-se mal. E estragam os filhos pelo caminho. Fazem isto tentando provar aos fazedores-de-políticas que as creches são más para as crianças, que ao invés de se encorajar as mulheres a manterem-se no mercado de trabalho deve-se é aconselhá-las a parar duas décadas e não pensar em mais nada que no bem-estar de outrém durante esse tempo porque, convenhamos, no fundo, no fundo, é esse o seu destino biológico.

Eu podia citar aqui um sem-fim de estudos que mostram que o investimento nas creches é fator decisivo na escolha que as mulheres fazem de continuar a carreira profissional ou ir para casa após o nascimento dos filhos. Porque, sejamos realistas, com creches a 1500 libras por mês por filho, como é que uma mãe escolher ficar em casa com os filhos é uma verdadeira escolha? É somente racionalidade financeira.

A flexibilização de horários também seria fundamental, e da mudança de mentalidades de uma vez por todas de que mais horas de presença física no escritório equivalem a mais trabalho feito. Mas isto, na minha opinião, só tem o efeito desejado se for flexibilização para todos os trabalhadores, quer sejam homens quer sejam mulheres. Senão as consequências negativas caem todas em cima das mulheres: são elas que são olhadas de lado por sairem mais cedo do escritório, por trabalharem menos horas (sem mencionar o facto de que trabalho part-time significa menos descontos sociais, logo menos benefícios de segurança social em caso de doença, desemprego e menos pensão a receber na velhice), por terem que tirar mais um dia para ir com a criança ao médico. E se continua a ser a mulher a alombar com o trabalhinho doméstico, em cima do horário de expediente que já leva profissionalmente, voltamos à conversa de que um dia ela mandar um berro e decidir ficar mas é em casa com os filhos se calhar não é verdadeiramente uma escolha livre.

O texto já vai longo e eu sinto que só toquei na pontinha do iceberg e havia tão mais para ter dito. A questão da conciliação trabalho-família apaixona-me e estou mesmo convencida que nas sociedades europeias, é um dos grandes problemas a acertar para corrigir isto da desigualdade entre géneros. É onde as mulheres ainda perdem por tanto e as impede de se realizarem em ambas as frentes. É onde tantas vezes maldizem o feminismo e as feministas da 2a vaga, por lhes terem feito acreditar que podiam ter tudo e ser tudo, e afinal é impossível. Para mim, as feministas deixaram a luta incompleta, ao terem levado a mulher para o mercado de trabalho mas esquecendo-se de trazer o homem para dentro de casa. E por terem lutado apenas para que a mulher singrasse na sociedade sem lhe mudar as regras. O mercado de trabalho, como está organizado, simplesmente não foi pensado para que os dois pais sejam ganha-pão. O seu modelo ideal é o ganha-pão + dona-de-casa, ou quando muito, ganha-pão + part-timer

Eu não tenho estas preocupações de conciliação portanto acredito que haja muita mãe que possa estar a pensar "quando fores mãe vais ver" ou "não cuspas para o ar que te acerta na testa" ou "eu também pensava assim mas quando o meu mai' novo nasceu mudei completamente de mentalidade". Pois, está bem. Logo veremos. O que não suporto é que se demonize uma política que funciona, e que ainda por cima parece que até tem é benefícios para a criançada, para validar um estilo de vida que escolhemos (escolheram mesmo, livremente?) e nos sentirmos superiores.

Sinceramente, desejo muita clarividência e boas escolhas aos fazedores-de-políticas Conservadores britânicos, que se deitaram ao caminho tortuoso de modificar tão complexa parte do welfare state. Eu cá acompanharei com atenção os desenvolvimentos. Quem sabe, podem-me dar ideias com cheiro académico...




S.

3 comentários:

  1. Olá.
    Grande post. Subscrevo inteiramente as considerações do mesmo. Gostava de acrescentar o seguinte:
    Sobre a flexibilização dos horários para todos os trabalhadores... os dados a nível europeu apontam para o facto de a constituição de uma família ter repercussões inversas numa entrevista de trabalho: para os homens, ter uma família é um factor positivo, na medida em que indicia capacidade para assumir responsabilidades. No caso das mulheres, inversamente, é factor negativo na medida em que significa que a sua disponibilidade será repartida com as responsabilidades familiares. Os/as empregadores/as assumem, à partida, que o universo familiar será assumido pelo elemento feminino e não o inverso.

    Relativamente à realidade portuguesa:
    Somos dos países em que a mulher começou a trabalhar fora de casa mais cedo - não por causa da bandeira da igualdade, mas porque simplesmente os salários baixos empurraram as mulheres para o universo laboral (menos qualificado, note-se).
    Nos tempos que correm, de crise, são cada vez mais as vozes que aqui e ali peroram sobre o facto de as creches serem demasiadamente caras e não compensar os dois elementos do casal trabalharem fora de casa. Seria tudo muito aceitável, não fosse o facto de o membro referenciado com aquele que deve recolher a casa ser o elemento feminino. Nada de novo; em tempo de escassez de emprego, a história ensina que as mulheres são as primeiras a marcharem. Perigosamente, temos cada vez mais esta realidade.

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  2. Benvinda!
    As estatísticas de emprego provam essa discriminação: com o nascimento do primeiro filho a percentagem de mulheres empregadas desce ao passo que a dos homens sobe.
    Em Portugal a questão das creches parece-me particularmente aflitiva já que o salário mínimo é já de si tão baixo. Deve haver mesmo muitos casos em que simplesmente não compensa financeiramente ter os dois membros do casal empregados e os filhos na creche. Aliás, quantas vezes eu ouvi pessoas a criticarem certas mulheres que preferiam estar a pagar creche e ter um emprego mesmo que isso ao fim do mês significasse pouco lucro. Curiosamente nunca ouvi semelhantes críticas a nenhum homem. É aquela ideia que a mulher está a ser egoísta por querer ter um emprego, uma carreira, ou invés de se concentrar nos filhos. Irritam-me profundamente esses comentários.

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  3. Nem mais. Como se a realização da mulher passsasse única e exclusivamente pela família e a sua atividade laboral ter apenas um cariz instrumental.

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