sábado, 19 de maio de 2012

Normandia, a sagrada

Os últimos dias têm sido de elevada dose de maravilhamento. Por isso mesmo, tem sido difícil pôr o que vai nesta cabeça em palavras coerentes. E, verdade seja dita, sou daquela espécie de gente que acha que muita coisa boa é mau sinal e que não se deve falar dela, pois está-se sempre à espera que a vida nos pregue uma grande partida e aconteça uma desgraça qualquer para equilibrar. "Ah-ha! Enganei-te!", é o que se desconfia que mais tarde ou mais cedo nos diga a vida.

Mas o maravilhamento mais recente pode ser falado porque já está feita a experiência e essa ninguém me tira. Maravilhamento esse que se chama Normandia e tem cheiro a 1944, mais precisamente o dia 6 de junho.

Esta era uma viagem que me estava a moer a parte de trás da cabeça (que é onde se guarda os desejos, acabei de inventar confirmar cientificamente): visitar a Normandia e as praias onde se deu o desembarque das tropas Aliadas no tão afamado Dia D. Não é uma viagem típica, exótica ou particularmente glamourosa. Mas faz parte do meu fascínio com os pontos de viragem que tornaram a Europa no que ela é hoje. E o que a Europa é hoje, a muito deve à Segunda Guerra Mundial.

Aquelas praias gritam "Liberdade" muito mais do que qualquer sítio que conheço. Conhecendo-se a História e tendo-se uma guia que aviva a memória, explica os pormenores intricados da estratégia e que conhece cada cratera de bala como as linhas da palma da sua mão, é só deixar a imaginação voar e quase conseguimos ver as silhuetas dos navios Aliados ao fundo, ouvir os gritos alemães em terra e os soldados americanos, britânicos e canadianos a pisar solo europeu pela primeira vez desde 1940 para libertar uma Europa temente sob o jugo alemão. Se esforçasse a vista como deve ser, estava certa que conseguiria ver a costa inglesa do outro lado do Canal... (não consegui, não é assim tão perto)

Fiquei a conhecer pormenores deste fatídico dia 6 de junho de 1944 que me fizeram compreender realmente o quanto na guerra é improviso, cabeça fria e boas decisões. Que apenas metade se deve a uma boa, planeada ao milímetro, estratégia, e que o resto está nas mãos do acaso.

Ondas de gratidão invadiam-me à medida que pisava estes lugares e que pormenores eram desvendados dos quais uma pessoa ou não faz ideia, ou não significam grande coisa revelados numa sala de aula. O mar de cruzes brancas que é o Cemitério Americano é um bom exemplo; vastidão de cruzes e cruzes, polvilhado de estrelas de David aqui e ali, nunca um local me conseguiu inspirar tanto respeito e horror como aquele.

Gratidão e maravihamento (não me ocorre melhor palavra em português para descrever isto) perante aqueles milhares de seres humanos que deram a vida por uma causa que não era a deles, que não tinha que lhes dizer respeito, que não lhes tocava pessoalmente. Dar a vida, literalmente, para que o resto do continente pudesse respirar livre. Só me apetecia ajoelhar, rastejar naquele solo tão fortemente carregado de simbolismo, e em toda a humildade agradecer a estes desconhecidos terem dado as suas vidas para que a Europa que conheço hoje possa existir. 

Há lugares sagrados, de facto. Um deles é a costa da Normandia. Não creio que os nossos outros companheiros de viagem, todos americanos e com mais de 50 anos, tenham compreendido por que estávamos naquela excursão. "São estudantes de História?" Não, senhora. "Então e que papel teve Portugal na Segunda Guerra Mundial?" Neutro. A razão do nosso interesse permaneceu um mistério para eles. 

Porque grande parte das pessoas que ingressam neste reconhecimento das praias da Normandia são americanas. A História do seu país liga-as àquele local, compatriotas seus morreram e mostraram bravura sublime ali, quem sabe alguns familiares seus também. Agora, nós, dois portugueses jovens, sem nenhum vínculo nacional ou familiar que nos ligasse ali, o que nos motivava? Além da curiosidade aguda de duas pessoas profundamente fascinadas pela Segunda Guerra Mundial, há uma outra razão: uma razão chamada Europa. Porque eu não sou só portuguesa, sou europeia. E a minha educação como europeia passa pelo reconhecimento dos locais que fazem a minha terra ser Europa, mesmo que tenham ocorrido a milhares de quilómetros do pedaço de terra retangular a que chamamos Portugal. Ali, a nossa europeanidade sobressai, explícita quando pensamos "Uau, a quantidade de americanos que morreram para nos libertar", ao invés de "Uau, a quantidade de americanos que morreram para libertar os franceses". 

A identidade é uma coisa engraçada.

A peregrinação acabou. Amanhã partiremos para algo mais descontraído mas que vai elevar o pico do maravilhamento a níveis impossíveis (assim o espero). O Mont Saint-Michel espera-nos. 




S.

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