Este post vem uns dias atrasados porque andei propositadamente a adiar escrevê-lo. Não apetece, e tal, seria um bocado extenso e algo emotivo, escrevo amanhã. Mas após muitos amanhãs e post nem vê-lo chegou a altura de vencer a preguiça e deitar mãos à obra. Isto porque daqui a mais uma semana é que ele deixa mesmo de ser pertinente e há coisas que merecem ser registadas.
Ora bem, cemitérios.
Tinha um professor na licenciatura que uma vez disse que uma das melhores formas de se conhecer realmente um povo e a sua cultura é indo a um dos seus cemitérios observar a forma como honram os seus mortos. A frase ficou-me pregada à memória e penso nela sempre que passo por um ou os vejo assinalados num mapa. E estou cada vez mais convencida que o tal professor tem toda a razão.
Em Londres, um dos sítios mais marcantes que visitei foi o Highgate Cemetery, um cemitério nos arredores da cidade que revolucionou o meu próprio conceito de cemitério.
A partir daí, ganhei fascínio por estas diferentes cidades dos mortos, que espelham realmente bem a forma como uma sociedade encara o seu passado.
Na Normandia, o caso não foi diferente. Tomou talvez outras proporções por serem mortos especiais para a consciência coletiva de vários países, e para a Europa no seu todo. Refiro-me, claro, aos cemitérios de guerra.
As excursões às praias do Desembarque na Normandia todas incluem visitas a cemitérios de guerra. O problema que pode surgir é escolher: há o americano, o britânico e o canadiano. Geralmente as excursões são divididas em temáticas nacionais: os americanos têm como opção visitas guiadas aos setores das praias onde desembarcaram as tropas americanas mais o cemitério americano, e assim sucessivamente para britânicos e canadianos.
A nossa visita incluíu Omaha Beach (americano), Gold Beach (britânico), porto de Arromanches (britânico) e o tão famoso Cemitério de Guerra Americano da Normandia. Estava especialmente curiosa para visitar este último uma vez que os cemitérios americanos são sempre aqueles campos verdejantes e apaziguantes, de cruzes brancas, que se conhece dos filmes.
A verdade é que aquele lugar tem uma atmosfera de surrealidade impossível de descrever fielmente (eu vou tentar na mesma).
O dia, cinzento, chuvoso e frio, com algum vento à mistura, parecia ter sido escolhido de propósito para instalar o humor certo.
Números lidos num livro de História ou apontados a giz num quadro preto de uma sala de aula não conseguem de forma alguma imprimir na nossa compreensão a quantidade de gente que constitui o número dez mil. Mas um campo com cruzes brancas espetadas consegue.
Foi-nos dada cerca de meia-hora para cirandar pelo espaço, olhar as cruzes, ir até à capela multi-confessional no centro do cemitério e procurar a cruz do filho do Presidente Roosevelt, que participou no Desembarque.
Pelo caminho, encontrámos pormenores dignos de nota: as cruzes que não são cruzes, mas sim estrelas de David, assinalando que ali também combateram soldados judeus.
Cruzes engravadas com a frase "Here Rests In Honored Glory A Comrade In Arms Known But To God", assinalando soldados que nunca foram identificados.
Foi-nos dito que ali estavam apenas 40% dos soldados americanos que haviam tombado na Batalha pela Normandia, que durou cerca de 2-3 meses. Dez mil naquele cemitério, volto a frisar. Um campo imenso de linhas e linhas de cruzes brancas, mas afinal apenas uma gotinha no mar imenso das vidas humanas perdidas durante a Segunda Guerra Mundial.
Foi-nos dito também que aquele pedaço de terra onde está o Cemitério Americano foi concedido pela França ao Estado norte-americano, sendo que é completamente gerido pelo outro lado do Atlântico. Um batalhão de jardineiros cuida diária e zelosamente pelo espaço.
Algo que nos espantou foi a quantidade de cruzes que tinham uma rosa na sua base. Flores frescas, note-se. Sabendo que aquele é local de peregrinação de cidadãos americanos, suspeitámos que familiares dos soldados mortos ali fossem deixar as rosas em homenagem. Mas algo não batia certo; tantos e tão regularmente? A guia desfez o mistério. Ao que parece, existem no cemitério pessoas responsáveis por deixar flores nas campas, intervaladamente e de forma a que nenhuma campa esteja mais de duas semanas sem uma flor.
Ainda há fé na Humanidade.
Dois dias depois, e após muita alteração de planos para melhor acomodar visitas imprevistas a cidades da Normandia, demos um pulinho a Bayeux.
Bayeux é cidade medieval, de ruas estreitas de calçada, casas de ripas de madeira e catedral imponente. É a cidade da famosa Tapeçaria homónima, considerada a primeira banda-desenhada da História, e que retrata a vitória de Guilherme o Conquistador na Batalha de Hastings, a última vez que os britânicos foram invadidos (1066!).
Mas Bayeux é também cidade de Segunda Guerra Mundial. Foi a primeira localidade francesa a ser libertada pelos Aliados. Por ser de ruas tão estreitas, foi a primeira cidade francesa a ganhar uma estrada circunvante, construída pelos britânicos para poderem facilmente deslocar soldados, munições, mantimentos, por esse ponto estratégico da Normandia. Foi, também, a única localidade a ser poupada à destruidora Batalha pela Normandia, graças a um soldado que, apercebendo-se da inexistência de tropas alemãs e conhecendo a importância centenária desta cidade, acorreu esbaforido e aos gritos para que os Aliados a poupassem a um bombardeamento (continua a haver fé na Humanidade).
É, ainda, a cidade do Cemitério de Guerra Britânico.
Este não tem cruzes. Lápides de pedra transmitem o mesmo sentimento de incredulidade perante os advérbios muitos e demasiados.
Aqui, para além do nome e da data da morte, as lápides têm a idade e uma mensagem personalizada, enviada pela família. A sensação de muitos transforma-se em indivíduos. Ali está bem presente que cada uma daquelas pessoas tinha uma mãe, uma mulher, um filho, uma filha que não voltaram a ver o seu ente querido.
As placas inevitáveis ao soldado desconhecido estão presentes, desta vez com a inscrição "A Soldier Of The Second World War Known Unto God".
No monumento principal, uma horda de papoilas de papel, exatamente iguais às que os britânicos usam à lapela por volta do Remembrance Day, em novembro.
Finalmente, o símbolo que melhor representa estas peculiares cidades dos mortos: a cruz-espada.
As duas nações anglófonas têm particularidades na sua relação com os seus mortos. Mas uma coisa é nítida em ambos os cemitérios: gratidão.
S.