Durante grande parte da minha adolescência padeci de uma condição muito grave chamada "obsessão pela América".
Era muito semelhante a uma doença, juro, eu vivia para o dia em que atingi-se a maioridade e pudesse mudar-me para lá, pesquisei universidades para estudar, investiguei tudo o que havia para investigar sobre vistos, greencards e imigração, e a emoção toldou-me os olhos e as palavras quando pus pé em solo americano pela primeira vez, aos 15 anos. Cheguei a trazer comigo uma revista de imobiliário, que apanhei no metro por acaso, e sobre a qual passei horas e horas debruçada, de olhos sonhadores, a imaginar o dia em que teria a minha própria casa de madeira branca, com relvado à frente e sem gradeamentos à volta. A paixão pelo inglês esteve durante muito tempo entrelaçada com esta paixão pela América e as duas alimentavam-se mutuamente. O 11 de setembro é um dia que nunca vou esquecer, não pelo cliché (ainda que verdadeiro) de que mudou o mundo mas porque lembro-me perfeitamente que mudou o meu mundo, o mundo a preto e branco, muito simples, de uma rapariga de 13 anos que tinha já uma obsessiva admiração por esse país do outro lado do Atlântico e que não conseguia, de maneira nenhuma, entender como é que alguém podia querer magoar a América! Esse dia em 2001 só tornou a minha obsessão mais profunda.
Até que... cresci. Aprendi e aprofundei o conhecimento da História do séc. XX e comecei a desconfiar que afinal as coisas não eram bem como eu idealizava. Aquilo não era o paraíso que os filmes e as séries de Hollywood me impingiam e que eu, maravilhada, assimilava. O sotaque americano começou a aborrecer-me. E um dia dei por mim a torcer o nariz à perspetiva de ir viver para os EUA. O que toda a gente me dizia que iria acabar por acontecer - e contra o qual eu batia o pé determinada, exclamando "Vocês nunca vão perceber!", cheia de raiva adolescente e pena de mim mesma - aconteceu. A obsessão acabou.
Questiono-me muitas vezes se a minha paixão pela UE não surgiu para preencher o vazio deixado pela América. É algo novo para idolatrar. Tal como os EUA, tem um sonho nobre na sua incepção - a paz - mas ao contrário dos EUA não tem exército para invadir países nem se dá a manifestações de poderio militar. (Entretanto, há uns aninhos, apaixonei-me pela Britain, um bocado inconveniente face à simultânea paixão pela UE mas se formos a ver fica a meio caminho EUA-UE, e olha que giro, nunca tinha pensado nisto; não sei se hei-de ficar contente ou temente...) Mas quero acreditar que a UE é uma paixão muito mais comedida, um pouco mais crítica e provavelmente mais saudável do que a anterior. E confio que só pelo facto de eu ter consciência que tem o seu quê de idolatria, impede que esta seja cega. A Europa tornou-se o meu sonho, o meu compasso, a minha ambição, a minha casa.
Mas ultimamente, e muito por insistência sugestiva do D., a América voltou a apresentar-se como um destino possível na minha (nossa) vida. E apesar das minhas recusas galhofeiras e da consciência da dificuldade acrescida que é emigrar para fora da UE, é certo que a América voltou a passear livremente pela minha mente. E eu dei por mim a pôr os EUA como hipótese mais vezes do que pensei voltar a ser possível. "E se... Não, não, não, está quieta, já sabes do que é que aquela casa gasta. Mas e se... Mau, voltamos ao mesmo? Era só uma ideia. Afinal, a América continua a ser tão interessante..."
Assim sendo, os nossos destinos de futuro estão sempre em aberto. Sabia que o futuro passaria por Bruxelas necessariamente - e está a passar - mas não sei por quanto tempo. Pode voltar a passar por Londres, hipótese provável. Ou por Lisboa - idem, mas hipótese muito deprimente para mim. Também pode passar por Paris, Berlim, Florença, Frankfurt. Ou Estados Unidos. Quem sabe.
Foi com esta mentalidade de futuro em aberto que hoje me dirigi, após muita luta interna ("mas o que é que vou lá fazer, aquilo nem é bem uma conferência, ainda por cima vão servir sandes, e se eu não gosto, faço figura de parva, metem sempre alface e tomate, bandidos... vou ter que sair do edifício do Parlamento, o que só por si é atividade extenuante, depois ainda andar até lá...") à Missão dos Estados Unidos junto da União Europeia. AKA, Embaixada dos EUA na UE. Ía ser um almoço de apresentação da Missão, organizado pelos estagiários nessa instituição destinado a estagiários do Parlamento. E como eu estava com uma grande curiosidade sobre o que iria ver e ouvir, e porque tenho compreendido o poder do networking para descolar carreiras, e porque queria ouvir americanos envolvidos em assuntos da UE a falar, lá fui eu.
O edifício em si não foi difícil de descortinar. Mesmo se não fossem as bandeiras americanas a ondular no jardim, as barreiras para impedir carros de estacionar e os vários guardas à porta teriam facilmente denunciado que ali estava um pedaço de solo americano. Aliás, eu ainda nem tinha chegado à porta da Missão, estava apenas a andar pelo passeio, quando sou barrada por um dos guardas com um "May I help you, Madam?". Eeeerr... "Juro que não sou terrorista!" É o que apetece dizer, enquanto se mete as mãos no ar.
Depois de explicar o que ali vinha fazer lá me deixou continuar a andar, na rua, até à porta da Missão. Lá dentro, segurança digna de aeroporto. Aliás, pior, porque no avião ainda nos deixam levar a mala connosco - ali a mala, o casaco e o B.I. ficaram reféns à entrada até à minha saída do edifício, e o telemóvel teve de ficar desligado. Jesus, paranóia, much?
Conduzida pelos corredores levava os olhinhos esbugalhados para absorverem todos os pormenores do interior: os brasões dos departamentos de Estado dos EUA, os quadros com as fotografias do Obama e antigos presidentes, a bandeira americana muito digna na sala onde entrámos, as paredes e teto trabalhados dando a entender que aquele edifício foi em tempos um palacete aristocrata qualquer.
Não vou entrar em pormenores sobre a apresentação propriamente dita, referir apenas que a atitude muito típica americana, um misto de arrogância honesta com ingenuidade e franco otimismo, esteve lá. Não me surpreendeu, também não levei a mal, mas descobri que estou mais cínica do que antes. Ainda assim, sinto que fiz as pazes com a América; a minha relação tempestiva de amor-ódio acalmou e hoje consigo olhar de frente para ela, encolher os ombros e pensar "A América não é boa, não é má, é assim como é".
No entanto, tenho de confessar que quando vi os guardanapos de papel engravados com o selo americano, aquela águia com as palavras United States of America engravadas a toda a volta em círculo, me deu um impulso de roubar um. E podia ter levado o meu, porque não. Mas o pensamento de ser apanhada a guardar na mala um guardanapo usado e o ridículo da situação deixou-me estar quieta.
cortesia Google Street View; puxar de máquinas fotográficas ao pé de security-freaks nunca foi boa ideia e eu ainda assim dou valor à vida e à minha liberdade
S.