Com muita pena minha e após muita pesquisa, descobri que a obra-prima da Simone de Beauvoir não existe em livro eletrónico - nem para fazer download nem para comprar. Teria sempre que comprá-lo em papel, portanto. Primeiro decidi que o iria requisitar numa biblioteca aqui da cidade; estou num país francófono, ora que bolas! (bom, parcialmente, pelo menos). Mas depois cheguei à conclusão que teria mesmo que o comprar já que este é um livro que tenho que ter, para ler, voltar a reler, folhear, ir clarificar qualquer coisa.
Por altura do Natal, deparei-me com isto, que me alertou para uma livraria de livros em segunda mão, a caminho do meu trabalho:
Ali estava uma boa oportunidade para obter o livro de forma baratinha.
A livraria era enorme - o que não deixou antever antes de entrar - e tinha filas e filas de prateleiras cheias até ao teto. Pus logo de parte a ideia de procurar o livro sozinha e assim que perguntei ao livreiro se tinha obras da Beauvoir, ele encaminhou-me para uma estante tão insuspeita quanto as outras todas (maravilha-me o facto de os livreiros saberem sempre exatamente onde estão os livros, qualquer um que se peça, mesmo quando o sistema de organização das obras não é nada explícito).
Eram dois volumes e estavam agarrados por um elástico. E custaram 5 euros, os dois. Que achado!
Devo confessar que a minha excitação por ir começar a ler esta obra-prima do feminismo era de equivalente proporção ao meu medo que isto fosse um livro ideológico, dogmático, um manifesto. Eu gosto mesmo muito do feminismo, mas não gosto de bíblias. Aceito as premissas do feminismo, essa da igualdade entre géneros, mas gosto de saber porquê, que me expliquem as coisas, que me as argumentem logica e racionalmente, sem dogmas e sem credos. Por isso mesmo parti um bocadinho de pé atrás para esta leitura que esperava muito que fosse elucidatória.
Digo agora de consciência muito tranquila e até aliviada que os meus receios eram completamente infundados. Beauvoir antes de ser feminista é filósofa e portanto todo O Segundo Sexo é um discorrer lógico de pensamento. Não há uma pontinha de dogma na obra que muitos apelidam de a Bíblia do Feminismo.
O ponto central da obra é descobrir porque é que a mulher, em toda a História e em todas as sociedades humanas, foi invariavelmente subjugada pelo homem, relegada para um papel secundário, inferior, como segundo sexo, arredada da construção do mundo. A autora explora várias teorias que se debruçaram sobre este fenómeno, como a psicanálise e a inveja do pénis, o materialismo histórico e a importância da produção no valor do homem, etc. Nenhuma delas, no entanto, consegue explicar na totalidade a subjugação da mulher. Todas parecem incompletas. Até a História, por não conseguir apontar o momento ou o acontecimento que relegou a mulher para segundo sexo, não consegue dar uma resposta satisfatória. Mas depressa Beauvoir chega à conclusão que:
"Sempre houve mulheres; elas são mulheres pela sua estrutura fisiológica; tão longe quanto a História consegue alcançar, elas foram sempre subordinadas ao homem; a sua dependência não é a consequência de um acontecimento ou de algo que surgiu."
"Il y a toujours eu des femmes; elles sont femmes par leur structure physiologique; aussi loin que l'histoire remonte, elles ont toujours été subordinées à l'homme; leur dépendence n'est pas la conséquence d'un événement ou d'un devenir, elle n'est pas arrivée."
Ou seja, isto deixa antever que há algo inerente à fêmea humana que explica a sua condição subalterna. E foi aqui que eu tremi. Não estava bem a compreender onde é que a Simone ia parar indo por esta linha de pensamento abaixo. Fraqueza inerente? Isto cheira precisamente à misogenia que durante séculos manteve a mulher subjugada: "A mulher é naturalmente mais fraca que o homem, tem perturbações de humor, é histérica, é emotiva, é uma incapaz, é melhor deixá-la lá estar sossegadinha no lar. É para bem dela."
Simone envereda pois pela biologia. Vai tentar descobrir onde está a característica que terá que ser comum a todas as fêmeas humanas e que explica o "ser mulher". Rapidamente descobre que só o facto de ser fêmea não explica que a mulher tenha que ter uma posição subalterna ao homem; na Natureza e entre as outras espécies tal não se verifica. Sim, geralmente as fêmeas são mais pequenas do que os machos, menos fortes, e têm obviamente uma função importante na continuação da espécie. Mas estão par a par com os machos; ou seja, funções diferentes sim mas equivalentes. O que não acontece com as sociedades humanas: a mulher, relegada para o lar e para a função reprodutora, tem um papel manifestamente secundário na sociedade (de notar que o livro foi lançado em 1949, e enquanto toda a argumentação é perfeitamente válida hoje, o papel da mulher mudou bastante nestes últimos 60 anos).
Então o que é que a autora descobre? Uma coisa surpreendente na nossa biologia. Nenhuma outra fêmea, na Natureza, está tão escravizada à sua função reprodutora, à sua espécie, portanto, quanto a fêmea humana. Beauvoir enumera:
- nenhuma outra espécie tem a possibilidade de engravidar todos os meses - se pensarmos nos cães e nos gatos, estes têm, o quê? dois ou três cios por ano, enquanto uma mulher está condicionada pela sua função reprodutora doze vezes por ano;
- nenhuma outra espécie tem uma semana de relativa alteração hormonal todos os meses fruto do seu ciclo reprodutor que é, lá está menstrual, e que, consoante a intensidade é mais ou menos incapacitante;
- nenhuma outra espécie dá tanto de si, biologicamente, durante a gestação. A gravidez é nas humanas uma condição que lhe suga literalmente elementos indispensáveis à vida;
- nenhuma outra espécie sofre tanto com o parto como a fêmea humana.
Daqui a Simone retira que a mulher é, fisiologicamente, uma escrava da espécie. E que esta escravidão constitui o busílis da questão da sua inferioridade na sociedade:
"A razão profunda que no advento da História relegou a mulher ao trabalho doméstico e a interdiu de tomar parte na construção do mundo, é a sua escravização à função geradora."
"La raison profonde qui à l'origine de l'histoire voue la femme au travail domestique et lui interdit de prendre part à la construction du monde, c'est son asservissement à la fonction génératrice."
Isto era tudo muito bonito, diz ela, na altura em que o homem caçava para comer, esculpia as suas ferramentas, e sobrevivia apenas. Aí a mulher tinha, como qualquer outra fêmea na Natureza, a tarefa de gerar. Mas esta era tão válida quanto a da caça, já que ambas se destinam à perpetuação automática da espécie. É a partir do momento em que o homem começa a modelar o mundo, a explorá-lo, a domá-lo, a desbravar terras e a cultivá-las, que o seu papel ganha uma transcendência impossível até aqui e que a fêmea humana, pela dupla razão da sua escravização à função reprodutora e por ser geralmente mais fraca que o macho humano, é relegada para a caverna de forma definitiva:
"A fecundidade absurda da fêmea impede-a de participar ativamente no crescimento dos recursos uma vez que ela (a fecundidade) cria indefinidamente novas necessidades."
"La fécondité absurde de la femme l'empêchait de participer activement à l'acroissement de ses ressources tandis qu'elle créait indéfinemant de nouvelles besoins."
Beauvoir chega a interrogar-se no entanto porque é que mesmo assim a mulher não gozou de uma posição igual ou mesmo superior ao homem precisamente pela sua capacidade de gerar vida; se há coisa mágica e geradora de inspiração e maravilhamento é a capacidade de onde só havia um, passar a haver dois. Mas ela depressa descobre porquê:
"É arriscando a vida que o homem se eleva acima do animal." - Ou seja, o homem adquire o seu valor enquanto Homem quando arrisca a vida, quando empreende, quando desbrava o mundo.
"Se en risquant sa vie que l'homme s'élève ao dessus de l'animal."
"Gerar, amamentar, não são atividades, são funções naturais; nenhum projeto é aqui empenhado; é por isso que a mulher nunca encontrou aí motivo de uma afirmação superior da sua existência; ela apenas se submete passivamente o seu destino biológico."
"Engendrer, allaiter ne sont pas des activités, ce sont des fonctions naturelles; aucun projet n'y est engagé; c'est pourquoi la femme n'y trouve pas le motif d'une affirmation hautaine de son existence; elle subit passivement son destin biologique."
Isto é quase como levar uma chapada na cara. Tão acutilante, tão sem-misericórdia, tão cru, tão racional, tão... controverso. Mas tão lógico e tão clarificador. Explica duas coisas fundamentais da condição da mulher:
1. O historial de subalternidade, desde sempre e em todas as sociedades sem exceção;
2. Porque é que só agora, há pouco mais de 50 anos, é que se tem assistido a uma verdadeira alteração no papel fundamental da mulher. Numa palavra: pílula.
Pela primeira vez na História, a mulher domina o destino a que a espécie a devotou ao controlar quando, como e onde será (ou não) mãe. Só agora a sua participação ativa no mundo, na produção e no conhecimento é possível:
"Um dos problemas essenciais que se colocam à mulher é a conciliação do seu papel reprodutor com o seu trabalho produtor."
"Un des problèmes essentiels qui se posent à propos de la femme, c'est la conciliation de son rôle reproducteur et de son travail producteur."
Dei pulos de contente quando desenredei todo este pensamento; eu sabia que a minha suspeita de que a conciliação trabalho-família é o grande obstáculo para a igualdade de género na Europa era fundada!
E pronto, chega assim ao fim o ponto central e fundamental d' O Segundo Sexo. Não é o único, bem entendido: falta o papel da religião, a explicação da sexualidade diferente, e as consequências que séculos de relegação para papel inferior tiveram (e ainda têm) no que é "ser mulher" e em como a mulher se vê a si própria. E ainda há todo o papel fundamental que o Cristianismo teve nisto tudo.
Fica para futuros posts.
Por agora, ficarei muito contente se tiver feedback, seja ele do género "isto não faz sentido nenhum" ou "sim senhora, muita lógica" ou ainda "faz sentido mas discordo aqui e aqui". Como diz o outro, é a falar que a gente se entende.
S.
Já li o Segundo Sexo há muitos anos e também senti esse deslumbramento pela clareza da explicação da SB. Ajudou-me a entender o porquê do papel secundário da mulher no mundo. A entender, não a aceitar! Custa-me reconhecer, mas quase todas as mulheres ocidentais, aceitam com facilidade e sem se revoltarem a supremacia masculina, por exemplo, consideram natural pôr o nome do marido e que seja o apelido deste a ser transmitido para os filhos. Mesmo a SB teve uma relação com o Jean-Paul Sartre onde reproduziu alguns estéreotipos femininos de submissão. Ninguém é perfeito, nenhuma mulher é perfeita!
ResponderEliminarFelicidades aí por essas terras geladas e continuação de boas leituras.
Blan, obrigada pelo comentário. De facto é um bocado triste o desdém que a maioria das mulheres tem pelo feminismo e a sua passividade face aos resquícios de patriarcado que ainda estão vivinhos da silva na Europa. Mas ao mesmo tempo não as condeno; a maior parte delas toma estas coisas, como se ficar com o apelido do marido, como garantidas e não pensam nelas criticamente. "É assim que deve ser".
ResponderEliminarEsse exemplo do apelido é uma questão muito interessante e que já me deu muito que pensar. Por mais que tente não consigo encontrar uma razão para adotar o apelido do marido que não seja a perpetuação da posição subalterna da mulher; mas sei perfeitamente que a grande parte das mulheres que o faz não lhe dá essa conotação consciente; adota simplesmente porque é assim que é costume.
Talvez um dia escreva qualquer coisa mais aprofundada sobre isso :)