terça-feira, 20 de outubro de 2015

Isto não é um relato de uma maratona

A minha mãe gosta de contar a história de como eu em pequenina caminhava com todo o cuidado pela praia, contornando todas as pegadas na areia para não pisar o que eu dizia serem 'buracos'. Não me lembro de alguma vez ter subido a uma árvore, nunca parti nada, nunca levei pontos, conto pelos dedos de uma mão as vezes que esfolei os joelhos. Aliás, uma das minhas memórias de infância mais vívidas é precisamente a de estar sentada em cima da bancada da cozinha, lavada em lágrimas, enquanto a minha mãe me tentava convencer a limpar o joelho esfolado com água oxigenada ('Isto não arde, Sara, a água oxigenada não arde nada!'). Fui o cliché da menina de boas notas a quem Educação Física sempre lhe estragou a média, que detestava as horas passadas no ginásio, que sempre teve medo de bolas a voar na sua proximidade, e que na hora de jogar fut-lata (don't ask) nos intervalos das aulas, queria ser sempre à baliza porque é o único sítio em campo onde estamos preparados para as bolas/latas que vêm contra nós e portanto o único sítio onde a defesa é possível. Na natação, sempre que havia corrida para ver quem fazia a piscina mais depressa, eu esperava pacientemente que todos arrancassem primeiro para não ter que ir a levar com os salpicos da água tumultuosa à minha volta. E, reparem, a minha infância não foi de florzinha de estufa; muito pelo contrário. Cresci na aldeia, muito do meu tempo livre foi passado na praia, horas a fim dentro do mar gelado da zona Oeste, a explorar os campos, o mini-rio que passa lá em baixo, a apanhar bichinhos da conta e centopeias e afins, a andar de bicicleta, tudo por sítios que ainda hoje penso que se tivesse acontecido alguma coisa estávamos lixados, que ninguém sabia por onde andávamos e na certa iam demorar muito a nos encontrar. Mas a minha integridade física imediata, essa, sempre foi resguardada com todas as minhas forças. 

No domingo, ao correr uma maratona, não foi diferente.

Desde que descobri que pessoas normais também corriam maratonas que sabia que um dia queria muito correr uma. Há mais de um ano que tinha decidido que iria correr esta de Lisboa e há mais de seis meses que me preparava fisicamente e especificamente para ela. Porque se descobri que pessoas normais podem correr maratonas, também descobri todo o tipo de coisas que acontecem frequentemente a pessoas que a acabam: mamilos ensanguentados nos homens pelo suor e fricção de quatro horas com a t-shirt, estragos a órgãos internos que fazem muito boa gente mijar sangue a seguir à prova, anemia durante meses pelo desgaste dos músculos e das reservas insuficientes de energia imediata do corpo, desfalecimento por hipoglicemia nos km finais ou no cruzar a meta, vómitos idem, unhas dos pés que caem, bolhas, assaduras diversas. Portanto, uma pessoa acabar uma maratona não é nada impossível, agora acabá-la saudavelmente já me parecia uma história completamente diferente. O meu espírito sonhador e o meu ultra-conservadorismo físico inato estavam portanto em choque.

Desde o início que tive a ambição de acabar a maratona nas 4 horas. 3h59, vá, para ser mais precisa. É um tempo tão aleatório como qualquer outro mas na minha cabeça - e na de muitos atletas amadores, sei - há um mundo de diferença entre fazer 4h01 ou fazer 3h59 (4h01 ou 4h29 já vai dar à mesma coisa, quase). Mas pronto, meti esse tempo na cabeça, que o inesperado record a 50'47 nos 10k de Londres em junho veio confirmar que me era possível fisicamente (o Mcmillan tem uma calculadora muito jeitosa e muito precisa em determinar que tempos são alcançáveis noutras distâncias, baseado no tempo que fizemos numa prova recente. A projeção do nosso tempo de maratona não é duplicar o nosso tempo de meia-maratona, por exemplo, é uma coisa mais exponencial do que aritmética). Comecei pois a treinar não só para acabar a maratona, mas também para a acabar dentro das 4 horas.

Isto pensava eu. Porque no fundo, no fundo, o meu afinco todo, o número mais elevado de treinos semanais do que seria necessário para garantir que acabasse a maratona, não foi para conseguir ir ao ritmo necessário para as sub-4h, mas sim para garantir sem sombra de dúvida que eu seria capaz de acabar os 42,195 km sem qualquer mazela. Isto percebo eu agora, em retrospetiva. Porque assim que comecei a correr no domingo, mandei o passo de 5min40/km ir dar uma volta ao bilhar grande que eu queria era sentir-me bem durante todo o caminho. Portanto desde o km 1 que eu sabia que não iria conseguir o meu objetivo de tempo. Nem sequer lutei por ele.

E aqui entra a minha natureza, de que eu já desconfiava e que se me afigurou claramente após ter cruzado a meta às 4h38: eu recusar-me-ei sempre a sacrificar a minha integridade física em prol da competitividade desportiva. Mesmo que essa competitividade seja apenas comigo mesma.

Porque a verdade é que eu nunca sofri durante a maratona. Fui sempre bem-humorada - o que nas provas é muito raro, fico com um feitio terrível - fui capaz de sorrir sempre para as fotos, para as pouquinhas pessoas que nos animaram durante o percurso, fui capaz de apreciar estar a correr na Marginal, ao lado do rio, sorrir ao ver a ponte 25 de Abril a assomar-se de repente no horizonte, não houve um momento em que tivesse pensado em desistir, e tirando o aborrecimento dos primeiros km que demoravam a passar, e o enjoo terrível que me deu nos últimos 2-3 km e que me impediu de finalizar forte como queria, tive uma prova santa. O tempo foi quase o ideal para correr - fresquinho, nublado durante quase todo o percurso - senti-me bem e bem-disposta, portanto nenhum fator externo que influenciasse negativamente a minha capacidade de dar o meu melhor. Apenas o meu ultra-conservadorismo no que toca à proteção do meu bem-estar, lá está. E foi precisamente esta retração muito inata de dar tudo que me estragou um bocado a alegria de ter realmente cruzado a meta e completado uma maratona. Não dei, e suspeito que nunca vou dar, o meu melhor nestas coisas.

Mas bom, a verdade é que a minha estratégia insconsciente defensiva garantiu que mazelas físicas nem vê-las, para além dos músculos doridos do dia a seguir: unhas dos pés todas inteiras, zero bolhas nos pés, zero assaduras, não mijei sangue!

Ora, posto a reflexão anterior, só há uma coisa a fazer: da próxima vez que quiser correr uma maratona sub-4h, tenho que treinar com o afinco e a velocidade que uma pessoa normal treinaria para uma maratona sub-3h30. Para garantir que o meu confortável já seria as tais sub-4h. Boa estratégia, hein? :D


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Voltando agora ao relato mais descritivo da prova:

Acordei às 6h da manhã com uma carga de água de meter medo ao pessoal que vive em países de monções. Não consegui dormir os 20 minutos que ainda faltavam para o despertador tocar por isso levantei-me e comecei o ritual de esfreganço com vaselina em todos os pontos que sabia atreitos a feridas de fricção: calcanhares, contorno do sutiã, elástico dos calções, virilhas, dedinhos dos pés um a um, pontos das pernas onde encosta a costura dos calções, etc. Comi o meu pão costumeiro de pequeno-almoço, sem nada porque os nervos não permitiram e muito lentamente, meti os géis na bolsinha do telemóvel, vesti a sweatshirt velha para me abrigar até ao tiro de partida, e lá parti com o meu pai para o hipódromo de Cascais. Fila demorada para a casa-de-banho, direcionamento para a zona dos sub-4h40 (e não é que acertei? :P), espera pelo tiro de partida. De repente abre-se o sol em todo o seu esplendor e eu começo a maldizer as projeções meteorológicas que davam céu nublado, aguaceiros e descida da temperatura por me terem dado uma falsa sensação de segurança. A coisa que me é mais insuportável na corrida é o sol/calor. Começámos a correr às voltas por Cascais e quando finalmente desaguamos na Marginal temos o sol mesmo de frente a bater nos olhos. Aaaaah, que agradável, ainda por cima estamos a correr em direção a leste, vai ser isto todo o caminho, que fixe. Isto aliado ao facto de serem os primeiros km e uma pessoa pensar que ainda nem um quarto da distância percorreu, de ir sozinha e de haver muito pouquinhas pessoas a apoiar, fez com que a primeira parte do percurso fosse chata para caraças. Não foi custosa - lá está, escolhi desde o início ir a um ritmo confortável - mas foi chata.


(peço desde já desculpa pelas marcas de água mas não me apetece dar 50 euros para poder usar fotos em condições) 
bem-humorada na primeira parte do percurso - até fazia fixes e sorria para as fotos, que coisa rara :)


Aí ao km 17 comecei a ver a Ponte 25 de Abril ao fundo, e fiquei muito contente. Iiiih, já via Lisboa! Mas sabia que ainda faltava uns 10 km até passar por debaixo dela, e pelo menos uns 5 ou 7 até chegar à capital propriamente dita. Que não me doesse a barriga até lá - literalmente - pensei eu.

No Dafundo, em vez de subirmos pela Marginal fomos direcionados pelo passeio mesmo à beirinha do rio, onde havia uma data de voluntários a segurar bandeiras de alguns países representados na maratona. Essa parte foi gira, até porque eles gritavam muitas palavras de incentivo, o que sabe sempre bem, e era mesmo à beirinha da água, foi agradável. Quase sem dar por isso entrei na reta ao pé do Aquário Vasco da Gama, uma velha amiga das anteriores meias-maratonas da ponte 25 de Abril e que ficou gravadinha na memória por ser a parte mais custosa desse percurso (nunca mais acaba, nunca mais chega a zona para virar, e enquanto a percorremos sabemos que temos que fazer aquilo tudo para trás ainda). Prometo nunca mais me queixar dela depois de a ter feito com 20 km em cima das pernas, em vez dos costumeiros 13, e de ainda ter mais de 20 para fazer, em vez dos costumeiros 5.


a tal parte muito ribeirinha, com as bandeiras de vários países

Quase à entrada de Belém, ao km 23, tive a maior surpresa do percurso: 3 colegas do grupo de corridas de Mafra que me reconheceram e me acompanharam um ou dois km na corrida, perguntando se estava bem, como estava a correr a prova até ali, como era com os géis, e se estava a planear acabar. Foi aí que disse em voz alta e por isso ficou assente: 'Agora já sei que acabo.' Só ainda não sabia era em que tempo. Estava-me a sentir bem, a entrada em Lisboa tinha-me dado um novo alento (agora já estávamos perto, porra, a meta era nesta localidade), e sabia que mesmo que tivesse que ir a andar o resto do caminho, as cerca de 4 horas que ainda me restavam até ao tempo limite da prova seriam suficientes. E foi assim que fiz este cálculo que me relaxei um bocadinho e dei permissão a mim mesma para caminhar nos abastecimentos enquanto bebia a água e tomava os últimos géis necessários.

Em Lisboa o aborrecimento já não foi nenhum porque à medida que ia passando sítios estratégicos ia ficando com a sensação de que a meta estava cada vez mais perto (e estava, como é óbvio, desde o primeiro km, né, mas isto do psicológico nem sempre bate certo com o factual). Torre de Belém, Mosteiro dos Jerónimos, Ponte 25 de Abril, Cais do Sodré, até que entrámos no Terreiro do Paço. E aqui foi a parte mais surreal de todo o percurso. Para fazer os míticos e certinhos 42195 metros, há que enfiar ali dois ou três quilómetros para dentro da cidade, que a estrada de Cascais ao Parque das Nações não chega exatamente. Daí que nós temos que subir até aos Restauradores e voltar para baixo novamente. Ora, a Baixa estava à pinha com turistas, como é normal a um domingo, e por isso foi muito estranho estar ali a correr no meio deles. Os domingueiros mal olhavam, a passear, entretidos a ver as montras e a entrar e a sair das lojas, quase me senti mal por estar ali a incomodar, a correr no meio da rua. E nunca foi mais nítido a distância entre nós e as pessoas ditas normais que aquele momento, a minha cabeça gritava 'Eu estou a correr uma maratona, eu vim a correr de Cascais até aqui, levo 32 km nas pernas, estou a viver um momento mítico, único, espetacular, mas o mundo continua a girar como se nada fosse!'. Banhinho de humilde, ajustamento das perspetivas, o que queiram. Fiquei feliz por voltar para perto do rio.


no Rossio, ainda com cara razoável


A zona de Xabregas é um bocado deprimente, mas como é a zona imediatamente antes do Parque das Nações, a zona da meta, passa-se bem. O meu coração deu um pulo grande quando o relógio marcou os 33 km, pois nunca tinha corrido mais do que isso e a partir dali era o desconhecido. Continuei a sentir-me bem, continuei a dar-me permissão para caminhar nos abastecimentos, ingeri o último gel, e comecei a contagem decrescente até aos 42. Verdade seja dita que eu vinha em contagem decrescente desde o km 4 ou assim, mas o momento em que se passa o km 32 é o momento em que passam a faltar só quilómetros de um dígito e é também o momento em que, se nos sentirmos razoavelmente - como era o caso - já sabemos que de uma maneira ou de outra vamos cruzar aquela meta. Mas a partir dali, de cada vez que recomeçava a correr após os abastecimentos sentia os gémeos a contrair, as minhas pernas começaram a gritar de dor (dor da normal, não de lesão, portanto suportável) cada vez mais alto. Lembro-me que houve três vezes em que me emocionei durante o percurso, em que me escorreu que era aquilo, eu estava ali a correr uma maratona, após tantos meses de ânsias, após tanto km sofrido em treino, após tantas vezes (mais para o final do programa de treinos, em que o esgotamento mental era tanto que receei pela minha sanidade mental) em que me apeteceu chorar só de saber que tinha que calçar os ténis para ir correr mais uns km, após gastar tanta energia mental e física a preparar-me para esta prova, finalmente, ali estava eu. Foi já perto dos 40 km que me deu o terceiro ataque de emoção, em que comecei mesmo de lábiozinho a tremer, soluços a irromperem pelo peito sem controlo, e lágrimas a marejar os olhos, ao mesmo tempo que pensava: 'Eh, Sara, calma, guarda a catarse para quando cruzares a meta.'


já no Parque das Nações, mesmo quase a chegar à meta, com cara de quem está concentrada a controlar o estômago revolto


A catarse não veio. A partir do km 39-40 o meu estômago a modos que enrolou e os saltos que a corrida envolve tornaram-se insuportáveis para o enjoo que se seguiu. Comecei-me a irritar porque queria acabar de forma forte, a correr a miséria de metros que faltavam e não estava a conseguir. E ainda por cima as pessoas tinham saído à rua em força ali! A Av. D. João II estava apinhada de gente de um lado e do outro, tudo a gritar por nós, 'força, está mesmo QUASE!', e eu a caminhar sorumbática com um estômago que tinha desistido de ser estômago ou estava em negação, ou assim. Avisto a meta, mais de 4 horas e meia depois de ter começado a correr, há uma vida, em Cascais, e recomeço a correr devagarinho. Estômago cooperante ou não, cruzar a meta com honra ninguém me tira, pensei eu, enquanto me preparava para erguer os braços em posição triunfal, pouco condizente como eu me sentia. 

Recolhi a minha medalha, sorri à minha mãe e madrinha que gritaram por mim na meta, e espalhou-se o enjoo por mim afora, contente por agora já estar à vontade para reinar. Sentei-me no chão, nauseada e sorumbática e olhar as outras pessoas a cruzar a meta e a pensar para mim: 'Nunca, mas mesmo NUNCA mais me meto numa coisa destas.' E foi só um enjoozinho no final, que durou umas boas horas mas ainda assim. Caguinchas ou não?

A minha primeira maratona teve portanto este sabor agridoce de saber que a acabei e ter a noção de que só isso é coisa para me orgulhar, mas não ser capaz de sentir verdadeiro orgulho porque fiquei bem aquém do objetivo temporal que tinha ambicionado. Não houve catarse no final. Sei que não dei o melhor que podia ter dado. Desconfio que só vou realmente apreciar a distância que percorri quando voltar às distâncias mais curtas e elas me voltarem a parecer enormes. Ou quando conseguir apreciar o facto de que ainda nem há dois anos me estava a inscrever na minha primeira prova - 10 km na São Silvestre dos Olivais - e que nem sabia se a iria conseguir acabar. E agora acabei de fazer mais do quádruplo.




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Entretanto, coisas que aprendi sobre mim para corridas futuras:

- não posso fazer planos de treino de mais de 16 semanas a correr 6 vezes por semana. Nas últimas semanas abate-se-me um esgotamento tão grande que nem olhar para os ténis consigo. Nem tenho garantias que essa quantidade toda me tenha feito correr melhor/ mais rápido. Talvez tenha garantido que não sofresse durante uma maratona nem ficasse com mazelas, mas para os meus próximos objetivos - que não passam por correr mais maratonas a curto prazo - não serve. Planos mais curtos e com menos treinos semanais mas de qualidade serão a minha próxima aposta.

- as minhas projeções de tempo têm que se tornar mais realistas. Sabendo como sei que sou naturalmente avessa a sacrifícios e que nunca darei tudo o que tenho numa corrida, tenho que me certificar que o que tenho é muito superior do que o que é preciso para atingir o objetivo que tracei.

- relacionado com o ponto anterior: o meu ritmo em treinos tem que estar mais próximo do ritmo que quero correr em prova. O meu corpo e mente precisam de mais certificados do que o corredor normal de que conseguem correr a um determinado ritmo e mantê-lo durante muitos km. Têm que saber que não lhes vai acontecer nada de mal se se sentirem desconfortáveis durante umas horas, a sobrevivência não está em risco, sim? 

- tenho que deixar de ser tão conservadora no início das provas. Uma coisa é arrancar a mil à hora por causa da emoção da partida e depois rebentar a meio; outra é partir tão abaixo do que somos capazes com medo de nos sentirmos mal lá mais para a frente. Não posso prever como me vou sentir lá mais para a frente. E se me sentir a esgotar, abrando - já que acabo sempre por abrandar de qualquer das formas.

- só quero voltar a correr uma maratona quando estiver segura de que a consigo acabar abaixo das 4 horas. Por tudo o que referi, isto é coisa para levar uns aninhos. Focar-me nas meias para me tornar uma corredora mais rápida no geral e deixar os treinos longos de 30 km afastados durante muuuuuito tempo.

- no dia em que correr uma maratona em 3h44m59s será o dia em que terei entrada direta na Maratona de Londres e a razão pela qual eu não vou desistir de me tornar mais rápida. Um passo de cada vez, Sara, um passo de cada vez.

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Quanto mais penso no que fiz no domingo, mais orgulho sinto no meu corpo. Não em mim, mas no meu corpo. Ele portou-se à altura, carregou-me durante 42 km quase sem nenhum queixume (ainda estou um bocadinho aborrecida com o estômago, mas podia ter sido bem pior. Podia ter enrolado aos 15 ou 20 km e aí eu não tinha acabado de certeza), e já está quase pronto para outra. Aprendeu com o stress todo que lhe mandei para cima durante estes meses, evoluiu em conteúdo e especialmente em forma - tenho uns músculos definidos e rijos nas pernas como nunca sonhei, e estou à beira de ganhar abdominais! - e nunca se revoltou muito. Lembro-me de nos dias anteriores à corrida pensar muitas vezes em como o meu corpo nem sonhava com o que lhe ia fazer no domingo, nem sonhava com o que aí vinha, e quase sentir que o estava a trair de certa forma, já que as duas semanas precedentes são de redução drástica no volume e intensidade do treino. Se calhar pensava que o pior já tinha passado, coitadinho. Mal sabia ele :). E apesar disso portou-se à altura. 

Ouviste, senhora mente? Põe os olhinhos aqui no senhor corpo. 







S.

terça-feira, 21 de julho de 2015

As feministas são feias e mal-amadas e lésbicas - e então?




Já há algum tempo que me perturbava ver o tempo que é despendido por algumas mulheres tentando trazer o sexy back ao feminismo. Epá, não é esse o interesse. Ser sexy/feminina/fuckable já é a norma, o feminismo não precisa de validar ainda mais este espartilho que aperta todas as mulheres sem exceção. Isto não quer dizer que haja necessariamente uma incoerência entre ser feminina - o que quer que seja que isso signifique - e ser feminista, mas por favor, parem de justificar os saltos altos que compraram hoje como uma escolha que o feminismo trouxe. Nem tudo é feminismo na vida. Nem todas as nossas escolhas são feministas. Nem têm que ser. Oiçam, leiam, interroguem-se, pensem. Tenham menos ânsia de justificar tudo o que fazem à luz do moralismo da moda.




S.

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Disney a educar sobre períodos desde 1946

O mundo precisa de saber que a Disney lançou um filme sobre 'A História da Menstruação' em 1946.


É surpreendentemente científico, mas tem pérolas como: 

'Why is nature always called "Mother Nature"? Perhaps it's because like any mother, she quietly manages so much of our living without us ever realising there was a woman at work.'

Ou quando, ao desmistificar velhos mitos como o não se dever praticar exercício durante o período, dizer que pode, sim senhora, mas pensando bem também a vossa rotina diária já é bem para o frouxa, portanto não há que preocupar muito com isso de abusar no exercício.

Mas suponho que no cômputo geral a coisa devia ser bem avançada para a época, e a Wikipédia até diz que foi o primeiro filme a usar a palavra 'vagina'. Wow. Disney muito à frente.




S.

terça-feira, 9 de junho de 2015

Kudos aos escritores

Rap battles entre princesas da cultura pop? Isto merece ser partilhado.

Cinderela vs Bela

Branca de Neve vs Elsa


Galadriel vs Leia





S.

quinta-feira, 4 de junho de 2015

Compasso cultural

Pronto, mas depois, por outro lado, temos coisas destas, expressões reconhecíveis instantaneamente:


No táxi de ontem



Nos Monkeys de sempre





S.

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Note to self

Viva onde viver, vai-me sempre faltar qualquer coisa. Agora já é inevitável. Que eu me lembre disto nas próximas vezes que tiver que tomar decisões sobre o futuro. 

Tenho que levar cada vez menos a sério – ainda menos – isto de mudar de casa. É que isto será o prato do dia nos próximos anos, e nos a seguir também, provavelmente até onde consigo prever. Tratar de prever cada vez menos, portanto. Estou cada vez melhor nisso, mas a conclusão de que teria que voltar a mudar-me para Bruxelas não foi menos chocante por isso. Tinha posto na cabeça que me iria manter em Inglaterra nos próximos 5-10 anos. Não. Não, nada de planos a esse longo prazo. A nossa vida não é essa. Estabilidade residencial está sobrevalorizada, de qualquer forma. E Portugal acaba por figurar sempre pelo meio, de uma maneira ou de outra. 

Eu gosto muito de viver em Inglaterra por isso não sei de onde veio a alegria pura que me subiu por aqui acima enquanto o expresso me transportava do aeroporto de Charleroi para Bruxelas. Mas desconfio, porque no dia a seguir, ao voltar a ouvir francês nas ruas, alemão na mesa do lado no café, e uma míriade de outras línguas que compõem a colmeiazinha eurocrata, lembrei-me o quanto sentia falta de estar no centro das coisas. 

Foi mais ou menos este o sentimento a caminho de Bruxelas: emergir. 

“Estar no centro das coisas” é portanto um requisito importante na escolha das minhas casas, outra note to self. Resta saber o quanto ela vale e se consegue cobrir as desvantagens associadas a centros, como longos commutes, poluição, vida acelerada, confusão, casas caras. Por isso mesmo não sei se Inglaterra a todo o custo me vale. Adoro aquele país, sinto-me em casa e tenho uma familiaridade enorme com demasiados pontos culturais, com a língua – aquela versão da língua, e não outra – e amo que ali se fale o puro inglês, o inglês enraizado culturalmente, historicamente, academicamente, em vez dessa versão estandardizada, simplista e desenraizada que é o inglês internacional (tanto o de trabalho em centros internacionais como Bruxelas como o turístico em qualquer outro sítio com afluência de estrangeiros pernoitadores). 

Mas em Inglaterra não me sinto europeia, e a verdade é essa. Aquilo afinal não é bem Europa, não como isto aqui, em Bruxelas e arredores. Muito menos uma cidade regional como Sheffield, não importa quantos estudantes internacionais tenha (e tem muitos). Daí que mesmo em Inglaterra, o país que poderia mais reclamar como casa para o futuro, me fique a faltar qualquer coisa: a minha identidade europeia. 

Resumindo: estar no centro das coisas, sim, planos para além dos próximos seis meses, não, mudança de casa possível a qualquer momento, sim. Resta adaptar as minhas possessões materiais (a cada mudança menos, mas que ainda não cabem numa só mala) à leveza de passarinho que a alma já quase adquiriu.




S.

sexta-feira, 15 de maio de 2015

O feminismo a custar-me dinheiro, oh

Gostava de saber porque é que um casal com apelidos diferentes tem que pagar o dobro do que um casal com o mesmo apelido para redirecionar o correio para o estrangeiro.

Ou se paga à cabeça ou se paga ao agregado familiar. Independentemente do apelido, são sempre dois destinatários que eles terão que despachar de maneira diferente. Para quê a diferenciação?



S.


P.S. E enfiem  mas é as 500 libras onde vos aprouver, com esse dinheiro venho eu a Sheffield 5 vezes por ano - que pensando bem devem ser as vezes que tenho que cá vir de qualquer das formas - e recolho o correio eu mesma.

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Um minuto de silêncio...

... pelas pessoas que, seis anos depois, ainda acham que o novo AO as vai obrigar a escrever fato, em vez de facto, e cagado, em vez de cágado.

Em querendo enxovalhar, enxovalhem com conhecimento de causa.




S.

P.S. Lamento rebentar a bolha de quem se acha muito rebelde por estar contra o novo AO porque, 'ah e tal, não é o Sócrates e afins que mandam na língua': andam a escrever sob as regras de um outro AO, o de 1990. A língua evolui naturalmente, sim senhora, mas em determinadas alturas é preciso fixar as regras oficiais de gramática e ortografia, senão cada um escrevia como lhe apetecia, numa lógica de 'isto não é um erro, o meu português é que evoluiu mais rápido do que o teu'.

Update: como muito bem apontou a Ceridwen, o acordo ortográfico que ditou a ortografia da língua portuguesa até ontem foi a Convenção Luso-Brasileira de 1945. O AO de 1990 (!) é o que entra definitivamente em vigor hoje. Mais pormenores aqui, na abertura de 14/05/2015.

quarta-feira, 13 de maio de 2015

Entretanto, há 70 anos numa Berlim 'libertada'


in A Woman in Berlin, anonymous


Estou a ler o diário que uma mulher alemã manteve durante dois meses aquando da chegada do Exército Vermelho a Berlim, da luta pela cidade e da capitulação alemã.

Para além de ser uma perspetiva incrível sobre o dia-a-dia das pessoas durante o crepúsculo de uma guerra - desde os abrigos coletivos nas caves dos prédios sempre que chegavam as bombas, até à ida diária à bomba para ir busca água, as rações a que tinham direito, a espera e incerteza sobre quando chegariam os russos e a incerteza geral pelo futuro - é um retrato profundamente realista (porque, enfim, escrito na primeira pessoa e à medida que as coisas iam acontecendo) sobre a natureza humana, as relações entre conquistador e conquistado, e a capacidade do ser humano de se adaptar a condições que no conforto da nossa paz achamos inconcebíveis.

É incrível a forma lúcida e objetiva com que ela analisa o que vai acontecendo, coisas por que passa - incluíndo múltiplas violações - e o detalhe que fornece. 

Talvez o mais precioso de tudo sejam as reflexões desapaixonadas que faz de assuntos gerais através das experiências que vai vivendo. Há uma altura em que reflete se a sua relação com um major do exército russo se baseava em violação ou se não estaria ela a trocar favores sexuais por comida, e se sim, o que achava ela do facto de se estar a prostituir (ela não julga a situação moralmente e diz muito simplesmente que nunca se achou acima das mulheres que se prostituem para ganhar a vida). Ou de quando conclui que o facto de falar um pouco russo é ao mesmo tempo uma benção e uma maldição, já que por conseguir entender os soldados consegue identificar-se humanamente com eles, consegue vê-los como indivíduos, como humanos, e portanto não consegue odiá-los no geral como bestas pelo que estão a fazer, como outras mulheres alemãs conseguem. Ou quando, já na inevitabilidade de Berlim ser vencida, repetir sarcasticamente o dito de que os berlinenses otimistas estão a aprender inglês, os pessimistas a aprender russo. Quando reflete no odioso culto à masculinidade feito durante o regime Nazi, mas masculinidade essa que agora se refletia na decadência dos berlinenses que restavam, que não levantavam a voz a nenhum dos conquistadores, nem punham qualquer entrave ao tratamento vil destes às suas mulheres, que por isso iria ser preciso encontrar um novo conceito de masculinidade após a guerra. O relato das conversas sobre política que teve com alguns membros do exército russo, do medo que os russos em geral tinham de subir escadas por estarem habituados a casas rurais de único piso, de como eles só conseguiam violar mulheres quando estavam podres de bêbados, de como aproveitaram as bandeiras nazis para recortar bandeiras vermelhas e hasteá-las no topo de edifícios, de como relógios de pulso fascinavam os soldados russos, alguns usando-os 5 e 6 em cada braço, porque na URSS não havia cá desses luxos.

O diário foi publicado em 1954, em inglês, salvo erro, e não na Alemanha, porque houve uma controvérsia enorme sobre o conteúdo do diário. Ninguém queria falar das violações em massa, ainda hoje um assunto tabu, nem da geral conivência dos homens alemães com aquilo que os russos fizeram às suas mulheres (a autora não os recrimina, observando que é uma técnica de sobrevivência como outra qualquer, mas relata surpreendida a retirada que dois ou três russos fizeram quando um marido lhes gritou que deixassem a sua mulher em paz - não estavam à espera daquela reação e não queriam confusão). A autora manteve o anonimato, e só autorizou a re-publicação do livro após a sua morte, para evitar mais uma onda de polémica.

É um relato fascinante, bem mais incrível do que literatura histórica da época. Parece que a realidade supera sempre a ficção, não é verdade, tanto no mais terrível como no mais belo.




S.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Sexo fraco o c@r@1h9

A Paula Radcliffe bateu o record mundial da maratona a correr com o período.





Porra, RESPECT.


S.

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Compras digitais, fronteiras reais


Acho que já vai sendo tempo, já.

As voltas que dei há umas semanas quando tentava descarregar um filme da Amazon.de para o portátil. Primeiro não podia ser porque não tinha morada alemã (para que precisam eles de saber onde vivo se a compra era digital, nada de correios envolvidos?). Depois, quando meti uma morada alemã, não podia comprar o filme porque o meu IP assinalava que eu não estava em território alemão. Lá me lembrei de procurar o filme na loja do iTunes, para concluir minutos mais tarde que, é verdade, estou no UK, a minha loja de iTunes é britânica, tem lá agora filmes em alemão. Na minha ingenuidade ainda pensei que devia ser fácil escolher a loja iTunes nacional que se quisesse, mas 'tá bem, abelha. Mesmíssimas restrições que no caso da loja digital da Amazon. Netflix, idem.

Portanto, eu posso encomendar um produto físico da Alemanha, que custa dinheiro, mão-de-obra e tempo a transportar, que atravessa fronteiras físicas nacionais, e que implica portanto também pelo menos dois sistemas de correio nacionais diferentes. Mas não posso descarregar um ficheiro digital comprado pela internet a um website com domínio alemão, que não implicaria rigorosamente nenhum dinheiro, tempo a transportar, nenhum sistema de correio, nem travessia de nenhuma fronteira. 

O produto que é o sonho de qualquer mercado único é o último cuja circulação está restringida no mercado único europeu. Mas que rica coerência lógica que temos aqui. 

'The commission said it would convert Wednesday’s proposals into legislative initiatives by the end of next year. The problems will be formidable on everything from national VAT rates to broadband infrastructure investment and how national spectrum allocation can be harmonised. Development of 4G and 5G in Europe are suffering because national governments jealously guard their prerogatives over spectrum allocation.'

É apertar com eles é, Comissão, para que a UE sirva pelo menos o propósito mínimo para que foi feita: concretização do mercado comum europeu.




S.

sábado, 2 de maio de 2015

Uma pessoa ri-se, ri-se, mas quero dizer, quão triste é isto?

'Do you know the difference between the clouds and the sky? If you do, you're lucky, because if you live in England, the two are pretty much synonymous. (...)

Our word sky comes from the Viking word for cloud, but in England there's simply no difference between the two concepts, and so the word changed its meaning because of the awful weather.'

The Etymologicon: A Circular Stroll Through the Hidden Connections of the English Language, Mark Forsyth


Hoje fui correr vestida com o meu equipamento de inverno: camisola de manga comprida, calças, impermeável, tapa-orelhas. 

(Eu o inverno tolero bem, o que me frustra mesmo é o prolongamento do mesmo por meses que não devia. Especialmente depois do contraste de uns dias em Portugal a correr de chapéu e protetor solar.)





S.

sábado, 18 de abril de 2015

A pé, de comboio, de avião e de carro: a saga da Queeny PL

Quando estava no processo de escolher que bicicleta arranjar para me deslocar em Sheffield, depressa ficou arrumado que teria que ser uma dobrável para poder ser o mais portátil possível. Já me imaginava a fazer viagens de comboio a Londres e afins, e deslocar-me na metrópole com a minha própria bicicleta, para não precisar de passar um mês sem comer para carregar o Oyster para ir a todos os sítios que queria ir. Era uma prospetiva que me deixou de estrelinhas nos olhos desde que vi duas belgas de meia-idade a embarcar no Eurostar em direção a Bruxelas com as suas Brompton muito compactas ao seu lado.

O uso da Queeny PL para visitas a cidades inglesas nunca chegou a acontecer, mas ela fez jeito em algumas das minhas deslocações em Sheffield. Não tanto jeito como deveria, porque o frio e a neve chegaram entretanto e eu perdi a vontade de enfrentar as colinas sheffieldianas no pós-inverno. Mas o potencial está lá. Quando se tornou claro que ainda não seria Sheffield que seria casa permanente, percebi que não estava preparada para a vender e portanto teria que arranjar maneira de a levar para Portugal.

Fartei-me de correr fóruns por essa internet fora para ler testemunhos de pessoas que já tinham viajado com as suas bicicletas de avião e as ditas cujas sobreviveram à aventura. Bastantes, foi o que acabei por descobrir.

Para bicicletas normais, o que muita gente aconselhava era levá-las sem desmontar nada, apenas com um plástico a toda a volta, sendo que a lógica era que quanto mais óbvio for que ali vai uma bicicleta, mais cuidado os senhores das malas têm com elas. E realmente foi isto que eu vi no aeroporto de Manchester da última vez que tinha viajado para Lisboa: um senhor a dirigir-se ao balcão de check-in com uma bicicleta pela mão enrolada em plástico.

Mas para o meu caso não era o ideal por duas razões:

- a minha bicicleta é dobrável, por que não utilizar essa vantagem para a transportar mais facilmente;

- queria poupar algum dinheiro transportando-a como bagagem normal ao invés de taxa extra de equipamento desportivo.

Rapidamente descobri que a Ryanair tem uma política muito simples de transporte de o que eles chamam equipamento desportivo. Por €50/£50 eles transportam qualquer instrumento musical ou equipamento desportivo até 20 kg (30 no caso de bicicletas). Basta adicionar online como se adiciona bagagem normal de porão. Mas o meu problema é que a minha dobrável caberia nos limites de uma bagagem normal, visto ter o peso e as dimensões adequados. Para quê dar então 20 ou 30 libras a mais só porque o conteúdo da minha bagagem de porão calhava ser umas barras de ferro e dois pneus em vez de roupa e cosméticos?... 

A forretice é a mãe do desenrascanço. 

Falei com o atendimento ao cliente online da Ryanair, num serviço de chat muito catita que eles têm, para expôr o meu caso e perguntar se se poderia tratar uma dobrável como bagagem normal. A resposta que obtive - e que prontamente imprimi como prova para o check-in - foi que, desde que não excedesse os limites da bagagem normal de porão e que a acondicionasse de forma segura, poderia fazer check-in da bicicleta como bagagem normal de porão.

A segunda dor de cabeça foi saber o quão preciso era acondicionar a bicicleta. Uns diziam que pouco, uns diziam que muito e contavam histórias de terror de bicicletas recebidas nas passadeiras à chegada amolgadas ou com raios de roda partidos, outros que não era importante o acondicionamento mas sim fazer o mais visível possível que dentro daquela bagagem ia uma bicicleta, na lógica do saco de plástico e do bom coração do pessoal das bagagens.

Acabei por me decidir a encomendar uma mala de transporte de dobráveis até 20 polegadas de roda e depois acomodar arestas que ficassem com plástico de bolhinhas.

Escolhi a mala que me pareceu mais resistente e encomendei-a:



Quando chegou constatei que a bicicleta cabia à vontade no saco, que ele era mais mole do que parecia, e que seria impossível carregá-lo de casa à estação e da estação ao aeroporto. Nunca na vida, já que o saco não tem pegas que dêem jeito e não tem rodinhas para puxar.

Não tem rodinhas mas há uma coisa que tem: a bicicleta. Por isso ficou decidido que a levaria montada até ao comboio, desmonta-la-ía no comboio, e depois levava-a montada da estação ao balcão do check-in, onde a poria dentro do saco.

Impossível acondiciona-la com o plástico previamente, portanto. Ainda pensei em levar o plástico na mala, mais a fita e uma tesoura, para depois lá tapar arestas mais salientes, mas depois logo pensei 'que lixe, se não a consigo enrolar toda em plástico qual é o sentido de acondicionar certas partes, sei lá o que é que está mais atreito a partir-se, vai à confiança'. Sendo que uma vez dobrada a bicicleta parece tão robusta, deixei-a nas mãos do pessoal das bagagens.

Os pneus já estavam um bocado embaixo, pelo que não foi preciso esvazia-los um pouco para transporte em avião, como vi recomendado em alguns fóruns.


Comboio

Os comboios em Inglaterra têm uma carruagem com espaço para se transportar bicicletas, normalmente numa das carruagens da ponta. Vi inúmeras pessoas a transportar bicicletas - normais e dobráveis - pelas estações e pelos comboios pelo que sabia que bicicleta no comboio não seria um problema. Normalmente eles recomendam comunicar à operadora que se vai transportar uma bicicleta, porque o espaço para bicicletas é limitado, mas no caso das dobráveis não é necessário porque podem ser transportadas nos sítios das malas. 

Entrei com a Queeny comboio e arrumei-a no sítio das bicicletas de qualquer forma, por ter mais espaço e ir mais segura.


Aquilo tem umas fitas de velcro para se prender as bicicletas e não caírem durante a viagem.



Basicamente o 'cycle storage' é um espaço com bancos que se auto-arrumam, e que portanto também dá para pessoas em cadeiras de rodas ou passageiros sentados sempre que não há bicicletas a bordo. Uma coisa tão simples de se ter e que facilita a vida aos ciclistas e encoraja a utilização de bicicletas.


Avião

Chegadas ao aeroporto, lá percorri os corredores desde a estação até ao terminal do check-in com a Queeny a rolar ao meu lado (não tivessem sido os pneus esvaziados e eu teria sido menina para tê-los percorrido montada na bicicleta, que aquela porcaria é longe que se farta). Devo dizer que a atenção de colocar rampas e elevadores em tudo o que é mudanças de piso, quer nas estações quer em todo o aeroporto, me facilitou enormemente a vida (imagino então o alívio que não é a pessoas com mobilidade reduzida). Seria de esperar que colocar rampas e elevadores, ou pelo menos escadas rolantes, em sítios onde o pessoal normalmente anda carregado fosse óbvio mas Bruxelas ensinou-me que não é. Muita bagagem com metade do meu peso alombei eu pelas escadas das estações do metro bruxelense.

Chegada à zona do check-in tratei de desenrolar o saco que trazia dentro dos alforges para embalar a bicicleta e despachá-la para o porão. 


Embalada e pronta a viajar 2000 km.



Estava com medo que surgissem problemas se fosse óbvio que o saco levava uma bicicleta e obrigarem-me a pagar a taxa de equipamento desportivo (que no aeroporto seriam £60) e a brincadeira acabar por me custar quase tanto como a bicicleta no final de contas. Mas não. Correu tudo bem, o senhor no check-in indicou-me só que levasse o saco ao balcão da bagagem fora de formato para que a mala fosse tratada com mais cuidado, já que era um saco mole.

Perfeito. Relaxei e comecei a acreditar que ia chegar a Portugal com uma bicicleta inteira. 

À chegada, estava ansiosa para ver o tratamento que a riquinha tinha levado. Quando a mala foi ter ao tapete do bagagem fora de formato, desembalei a Queeny PL, respirei de alívio por a ver inteira e sem mazelas, desdobrei-a, e lá fui eu até onde a família me esperava com a menina a rolar ao meu lado.


Cá está ela já em Lisboa pronta para a última etapa da viagem :)


Carro

Ainda a surpresa maior foi a bicicleta não caber na mala do carro, mesmo dobrada, e ter que se ter aberto o banco para a frente. Mas a vontade de tentar que ela coubesse não era muita à uma da manhã, pelo que acredito que a culpa foi minha, não da Queeny ou do espaço da bagageira do carro.


Moral da história: correu tudo muito melhor do que eu antecipava e agora que vi a simplicidade que é viajar com a bicicleta, as voltas pela Europa que me aguardem. 




S.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

A normalidade não é assim tão normal

'But I was beginning to understand something about normality. Normality wasn't normal. It couldn't be. If normality were normal, everybody could leave it alone. They could sit back and let normality manifest itself.'

Jeffrey Eugenides, Middlesex


A Marylin Frye argumenta qualquer coisa parecida. Ela diz que todas as pessoas são obrigadas no dia-a-dia a salientar o sexo a que pertencem da forma mais óbvia possível (mas ironicamente sem poderem recorrer-se da marca mais óbvia que há, que são os genitais). E as pessoas fazem isto através de mil e uma maneiras: a roupa que vestem, o tom de voz que usam, a forma de andar, a postura ao sentar, expressão facial, maquilhagem ou não, adornos, o cabelo, etc, etc. Isto do sex-marking torna-se uma coisa tão obsessiva na nossa sociedade que o começamos logo a fazer mal os bebés nascem: o cor-de-rosa e o azul, os ganchinhos ou fitas nas bebés mal lhes cresce um bocadinho de cabelo - não vá alguém se enganar e achar que está ali um menino em vez de uma menina.

Ora esta obsessão pelo sex-marking pressupõe duas coisas: que existem dois sexos muito distintos um do outro (quando não é assim; estima-se que 1 em cada 2000 bebés não encaixem neste binómio), e que essa distinção é muito importante.

A contradição está aqui: se as diferenças entre um e outro fossem assim tão pronunciadas e importantes, tão normais, podíamos deixá-las em paz. Não era preciso haver regras sociais para uns e outros, não era preciso andarmos sempre a lembrar ao mundo se somos homens ou mulheres, não era preciso as prateleiras dos supermercados estarem divididas entre brinquedos de rapaz e rapariga, presentes para ele e para ela, seria óbvio.




S.   

quarta-feira, 15 de abril de 2015

A explicar como isto do sexo e do género é complicado

- O Transparent é capaz de ser uma das melhores séries dos últimos anos, de tão bem interpretado e com tão bons diálogos (e nem precisa de dragões);

- O Middlesex é page-turner desde o primeiro capítulo (obrigada, Febre dos Fenos, não vou mais largar o Jeffrey Eugenides);

- O Mein Freund aus Faro foi uma surpresa das grandes, pensando que ia juntar Portugal e alemão acabei foi com questões de identidade de género pelo meio;

- O Berlin 36, baseado numa história verídica, junta gajas a darem baile aos nazis com questões intersexuais*.





S.

* os filmes alemães a que tenho acesso parece que cabem em duas caixas perfeitinhas: ou filmes sobre segunda guerra mundial ou filmes sobre pessoal transgénero (se alargar esta última caixa a 'feminismo' ainda posso, mesmo que um bocadinho forçosamente, juntar o Hannah Arendt)  

quinta-feira, 9 de abril de 2015

quinta-feira, 2 de abril de 2015

A mais chata das virtudes

Só agora, ano e meio depois de ter começado a correr, é que finalmente entendi que a única fórmula mágica para correr mais rápido e melhor é correr em modo fácil o tempo quase todo.

Caramba, que coisa tão contra-intuitiva. 

Basicamente porque a coisa mais importante na corrida, e sobretudo na corrida de longa distância, é a capacidade do nosso corpo usar oxigénio para converter glicose em energia eficientemente. O sistema aeróbio, portanto. E isso só é treinado correndo em modo fácil muito regularmente. Ou seja, é preciso uma coisa muito chata e inimiga de quem quer ver resultados aqui e agora, chamada: PACIÊNCIA. 

Treino de séries de velocidade também é importante para se melhorar, mas este tipo de treino só é aguentável pelo corpo em doses muito baixas. Porque depois de um treino intenso o que é que acontece: os músculos demoram a regenerar e o tempo de recuperação tem que ser maior sob pena de começarem a aparecer lesões. Não se consegue voltar aos treinos com a frequência necessária para eles darem frutos e ficamos perpetuamente no sistema do um passo à frente, dois atrás. 

Aliás, a ideia de que não é o treino em si mesmo que produz resultados, mas o que acontece no nosso corpo a seguir a ele, é muito esclarecedora.

Mas isto continua a ser tão contra-intuitivo porque se se corre devagar parece que não estamos comprometidos com o nosso treino já que não damos o melhor em cada sessão, como é que vamos conseguir atingir o nosso pace no dia da corrida se mal o treinamos nos treinos... Mas parece que o senso comum não é sempre indicativo de verdade (cofaterraéplanacof). Vou confiar na ciência.

Tenho aprendido nestes últimos meses a ouvir com muito mais atenção o meu corpo e por isso mesmo mantive lesões afastadas durante a preparação para a meia-maratona de Lisboa, mas agora que penso nisso, não cumpri o meu plano de treinos completamente porque precisava sempre de tirar mais dias do que o indicado devido a sessões demasiado intensas. Resultado: o treino não teve a regularidade que devia. Consequência: não atingi o objetivo que sabia que estava ao meu alcance (fazer a meia em menos de duas horas). Ainda assim, com este método do saber escutar e respeitar o corpo fui capaz de voltar à estrada mais rápido do que pensei e manter afastada a lesão no joelho direito que andava a ameaçar há umas semanas (figas, que ainda está na corda bamba).

A meia-maratona aqui em Sheffield é já daqui a duas semanas portanto ainda não vou ser capaz de testar se isto de correr devagar mais vezes funciona mesmo - a chave aqui é mesmo a consistência ao longo do tempo - mas vai revolucionar certamente a maneira como eu encaro a corrida e como vou pensar o treino para a maratona. Já não vou ter medo de correr em dias seguidos, por exemplo, coisa fundamental para treinar para uma maratona, mas coisa que à intensidade atual seria lesão certa. Ainda que para a meia de Sheffield não vá com ideias de bater as duas horas devido à bela subida inicial até mais da milha 5:



Se a primeira parte correr bem, a segunda é toda a descer. Se for com calma na subida (que aliás é uma subida familiar) e a coisa correr bem e tal, e guardar a maior parte energias para a segunda parte (o contrário do que fiz em Lisboa), quem sabe o que poderá acontecer... Também, contando que isto é cidade para ainda estar abaixo dos 10º daqui a duas semanas, quem sabe se a quebra mental e os pensamentos derrotistas dos 12-13 km se mantêm ao largo (ainda nunca tinha cruzado uma meta com vergonha, como aconteceu desta vez em Lisboa).

Por causa de compromissos académicos, razões logí€ticas e vida em geral, não vou fazer uma data de corridas que tinha planeado para esta primeira metade de 2015 (APAV, Sinos, Edimburgo). Vou a esta de Sheffield, à da Nike Women 10k em Londres em junho, e talvez consiga fazer os 20 km de Bruxelles no final de maio, desta vez completos. Por isso mesmo ainda não sei bem o que vou fazer entre abril e julho em termos de treinos, talvez me concentre em fortalecer o corpo para depois entrar no treino para a maratona com uma boa base e diminuir as probabilidades de lesão aqui e ali devido à estrutura não estar bem montada.

Por enquanto estou a ficar entusiasmada para a meia de Sheffield, coisa que não pensei que fosse acontecer pela inscrição feita num impulso de raiva e vergonha uns dias depois de Lisboa.


Delays, sim, tipo o meu...


Desejai-me um bocadinho de sorte e um bocadinho de força mental (que a força física disponibilizo eu). :)


sábado, 28 de março de 2015

Feminismo™

Deambulando pela Fnac do aeroporto de Lisboa, às 6 da manhã:

'Feminismo... Hein? Como? Quando? Onde? Ah, espera...'


'Feminismo - As mulheres poderosas do século XXI e a moda que vestem: o estilo militar, o power suit e o denim.'


Mulheres poderosas: vamos analisar as suas vidas, como chegaram onde chegaram, a sua ambição, o que lutaram para lá chegar? Não, não. Vamos ver o que vestem.

Suspiro gigante.


S.

segunda-feira, 23 de março de 2015

Good for her! Not for me

Isto é bem capaz de ter sido uma das melhores coisas que li nos últimos tempos:


'I have many friends who have had natural childbirth. I applaud them. I have friends who have used doulas and birthing balls and pushed out babies in tubs and taxicabs. I have a friend who had two babies at home! In bed! Her name is Maya Rudolph! She is a goddamn baby champion and she pushed her cuties out Little House on the Prairie style!

Good for her! Not for me. 

That is the motto women should constantly repeat over and over again. Good for her! Not for me.'


Do livro da Amy Poehler ,'Yes, Please!', citado no A Cup of Jo

É que isto aplica-se a tudo na vida.



S.

quinta-feira, 5 de março de 2015

Tenho futuro como Occlumens

Hoje foi dia de apresentar aos meus colegas doutorandos o meu projeto de investigação, e receber feedback e interrogações sobre ele. Foi também o dia em que me disseram que eu tinha uma postura brilhante a apresentar coisas e a responder às perguntas postas, postura confiante, calma e de quem sabe exatamente do que está a falar.
 
Interrogo-me em que parte da minha vida aprendi a ser tão boa atriz.




S.
 
("Sei do que estou a falar", hah, essa é boa! Já tive mais crises existenciais desde que comecei esta coisa do que na minha vida inteira)



quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

O Alemão e o Capitalismo


Empregado : der Arbeitnehmer (literalmente 'aquele que toma o trabalho')

Patrão : der Arbeitgeber (literalmente 'aquele que dá o trabalho')


O Das Kapital deve fazer tão mais sentido na língua original.



S.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Eu estou a fazer de mulher, e tu?

Numa altura em que debatiam as diferenças entre sexo e género e os arrumávamos em duas caixas distintas - o sexo na caixa das diferenças biológicas, o género na caixa das características do que é ser homem e mulher numa sociedade numa determinada altura - veio a Judith Butler e baralhou isto tudo.
 
Até aqui (leia-se: anos 90) entendia-se que o sexo era naturalmente dado, o género era socialmente construído e assimilado. E isto ainda é uma distinção útil quando se fala disto das desigualdades e dos feminismos. O que Butler veio dizer foi que se calhar isto era uma distinção um bocado simplista.

Pois que o género é socialmente construído e portanto diferente consoante a sociedade e o período de que falamos. Os sapatos de salto alto já foram coisa de homem, e o cor-de-rosa foi durante algum tempo associado à masculinidade. Ainda assim, o género não é uma construção abstrata, ele é influenciado pelos traços biológicos do animal humano a que se refere. Uma parte substancial das regras do que é ser mulher na nossa sociedade atual ainda está muito relacionada com a capacidade da fêmea humana dar à luz: o instinto maternal que é suposto todas as mulheres sentirem, a sua função como cuidadoras principais dos filhos, todas estas regras não-escritas vão buscar a sua justificação à biologia.
 
Mas e se, propôs Butler, o sexo for tão influenciado pelo género como o género é pelo sexo? E se a biologia for tão construída socialmente quanto as regras do ser mulher e ser homem? E aqui é que uma pessoa franze o sobrolho e começa a achar que o debate já está a resvalar para o absurdo: como assim, a biologia é construída socialmente? As diferenças sexuais são naturais, estão à vista de toda a gente! (salvo seja). Não há como as influenciar socialmente.
 
Ah, mas o valor que damos a essas diferenças é construído socialmente e a sua lógica não tem nada de natural. E é quando percebemos isto que o pensamento de Judith Butler começa a ser tão brilhante.
 
Vejamos: a inveja do pénis, o conceito inventado por Freud que basicamente se explica sozinho: a inveja que todas as raparigas têm dos rapazes por eles terem pilinha e elas não. E o Freud fundamentou esta inveja na biologia, nas supostas características físicas do instrumento em questão. Mas este conceito só faz sentido numa sociedade que valoriza e inventou essas mesmas características para o pénis. O que é que há de tão espetacular naquilo? É um pedacito de carne que anda pendurado a maior parte do tempo, e por ser exterior até torna o seu dono mais vulnerável. Não seria mais lógico haver uma inveja do útero, um complexo de inferioridade que todos os rapazes tivessem por não conseguirem criar vida? Isso sim, é uma coisa espetacular. Mas ao pénis, símbolo diferenciador do género das pessoas dominantes foram conferidas toda uma série de características que de biológicas têm pouco: a força, a dominação, a pujança. Ide ver o texto da Gloria Steinem 'If Men Could Menstruate' para um desenvolvimento deste raciocínio (é curtinho e muito divertido). Deixo aqui só um teaser:
 
'Whatever a "superior" group has will be used to justify its superiority, and whatever an "inferior" group has will be used to justify its plight. Black men were given poorly paid jobs because they were said to be "stronger" than white men, while all women were relegated to poorly paid jobs because they were said to be "weaker." As the little boy said when asked if he wanted to be a lawyer like his mother, "Oh no, that's women's work." Logic has nothing to do with oppression.'
 
Voltando à Judith Butler e como ela baralhou ainda mais o binómio tão certinho de sexo e género. Ela disse outra coisa profundamente inovadora: o género não existe predeterminado nem abstrato. Ele só existe quando e porque é representado. Uma pessoa não é mulher porque os outros estabelecem à priori que ela é mulher; ela é mulher quando e porque representa o papel de mulher uma e outra vez, todos os dias, durante toda a vida (um homem, idem). Visto-me com as roupas que são associadas às mulheres, tenho o cabelo comprido como é típico de uma mulher, uso maquilhagem, depilo-me, arranjo as unhas, comportamentos associados ao ser mulher, estou a representar o meu género (no sentido de 'performing gender', atuar, como num palco): sou uma mulher. E isto só acontece porque o faço uma e outra vez.
 
Ou seja, estamos todos a viver uma gigante peça de teatro, ou a brincar às casinhas, 'eu faço de homem, tu fazes de mulher', a representar um papel que nos coube e que às vezes nos faz menos sentido do que outras vezes.
 
E apesar de isto ser uma teoria um bocado difícil de compreender na totalidade (quer dizer que só existe género porque todos o representamos, as regras só existem porque as cumprimos uma e outra vez? Mas então o género desaparecia se parássemos de representar? Seríamos o quê então, só humanos?), no seu essencial ela faz-me um sentido do caraças. Performing gender... Quantas vezes dei por mim a olhar para uma professora ou uma amiga, e a pensar 'O que é que te fez decidir usar esse colar? O que é que ele acrescenta à roupa que vestiste para sair à rua que tem a função primária de te proteger do frio?'. Ou quando decidi - ainda que de forma inconsciente e gradual - deixar de usar brincos no dia-a-dia: 'Esta ação diária que eu faço tirar e pôr estes alfinetes nas orelhas, qual é o propósito? É para quem? Que papel estou eu a representar? As minhas orelhas nuas não são suficientes?'. É por isso que acho esta piada tão brilhante:



Não me interpretem mal: eu não sou contra nada dessas coisas, nem quem as usa, e eu própria uso-as de vez em quando. E talvez até não esteja a incluir aqui o fator da beleza, decoração, sentido estético, que os seres humanos têm e que lhes faz sentir prazer em olhar para coisas bonitas (se bem que também se pode argumentar que esse sentido estético será influenciado socialmente). A minha curiosidade é mesmo uma curiosidade infantil e sem maldade, de tentar perceber porque é que eu ou os outros escolhemos fazer isto em vez daquilo, nos incomodamos a escolher usar isto ou aquilo que não tem um propósito justificado por necessidades primárias. A ideia de que estamos todos a representar o papel de 'homens' ou 'mulheres' faz-me muito sentido.
 
Por isso vão lá festejar o Carnaval e mesmo que não sejam grandes adeptos de mascarar, lembrem-se: façam o que fizerem, não dá para lhe fugir, estão a usar a máscara que usam o ano inteiro.




S.