Por ocasião da Primeira-Ministra australiana ser incluída no menu de uma festa da oposição, o the Guardian compilou um Top 10 de momentos estupidamente sexistas da política. Sempre casos em que se vilipendia mulheres no poder por duas razões maiores:
- ou porque são bonitas demais e é um desperdício;
- ou porque são umas cabras do pior e deviam estar caladas/na cozinha/em casa onde ninguém as veja envelhecer.
Tal como nas personagens-tipo dos media, há aqui variações nos insultos dirigidos a estas mulheres. Mas no fundo, são apenas nuances destas duas categorias. Assim, e seguindo a lista do artigo:
- temos o Cameron a lançar um arrogante e condescendente "calm down, dear" a uma deputada da oposição no meio de uma tirada desta. A velha ideia do histerismo de que padecem as mulheres e que foi considerado doença psiquiátrica até à década 50 do séc. XX (curiosamente era uma doença de que só as mulheres podiam padecer). A atitude profundamente condescendente com que muita gente trata mulheres quando estas levantam a voz irrita-me solenemente, particularmente quando se está numa discussão/debate. A mulher como histérica, o homem como assertivo. Atitude direitinha à 2ª categoria;
- ... tenho algumas dúvidas se não devia saltar este. É sobre o Berlusconi. Ora bem, de um "senhor" que organiza bunga-bunga parties e contrata prostitutas adolescentes não se pode esperar respeito pelas mulheres. No entanto, é incrível as coisas que este homem vomita sob a forma de palavras. Entre sugerir que empresas deviam investir na Itália porque lá têm secretárias muito bonitas (que, como toda a gente sabe, são parte da decoração de um escritório; e ainda tiram uns cafés e mandam uns mails como bónus, que catita!), ou que o Zapatero, por ter no seu governo uma maioria de mulheres teria o dobro do trabalho a controlar o seu Executivo (as mulheres são emotivas por natureza, claro está, imaginem umas quantas a governar um país...! Dupla dificuldade de controlo uma vez por mês porque... hormonas!), o Berlusconi oscila em diarreias de "mulheres são eye-candy" e "irra, que cabras!". É um homem que encerra todo um fenómeno sociológico em si mesmo, uma espécie de micro-clima da sociologia.
- entretanto, na África do Sul, a líder da oposição recebe bocas sobre o facto de ser gordinha, interrompem-na no Parlamento para dizer - de forma muito pertinente, claro está - que devia fazer qualquer coisa ao cabelo, e durante o debate do orçamento, e relativamente ao que levava vestido, acusam-na de não respeitar as regras de decoro daquela casa. "Feia, gorda, cala-te, vai para casa, pára de tentar discutir política ao nosso nível." Foi também acusada de ser uma ninguém, uma "tea girl" (se é para arrasar, é para arrasar).
- na mesma nota, a Ministra da Habitação francesa teve que aguentar piropos em forma de assobios (mas está tudo doido?! Mas em que mundo é que vivemos?!) durante o seu discurso na Assembleia Nacional francesa. As desculpas dos assobiadores - que são as mesmas sejam os assediadores homens de fatinho e gravata, líderes de uma nação, sejam homens das obras (querendo isto dizer que não é uma questão nem de educação, nem de classe, nem de idade, é de papéis de género masculino gone wrong) - foram que ela estava a pedi-las porque levou de propósito um vestido que os distraía do que ela estava a dizer e que os assobios eram um tributo a ela, e que portanto, inferindo destas afirmações, ela devia era estar grata e sentir-se muito lisonjeada. Novamente, pergunto: mas que porra de mundo é este?!
- um tweet sobre como uma ex-deputada devia estar caladinha e ser uma boa esposa em vez de responder aos meninos crescidos da Câmara dos Comuns;
- outra sobre como uma mulher indiana, após 20 anos de andanças na política de alto-nível, ainda tem que ouvir coisas como "fiquei engasgado com a beleza dela" ou como supostos colegas de Câmara não se conseguem controlar e que depois lá fora revelam o que não podem revelar ali dentro. Tudo isto porque foi, em jovem, vencedora de uma concurso qualquer de beleza. Claro exemplo de categoria 1.
- depois, a Presidente sul-coreana, acusada de não ter qualquer espécie de "feminidade" por não ter filhos, nunca ter dado à luz, etc. Mas acusada de não estar à altura de ser comandante das forças armadas por ser mulher e não ter experiência na matéria. (Ou seja, cabra mas não cabra o suficiente, aparentemente.)
- na mesma nota, a famigerada Primeira-Ministra australiana, vilipendiada por não ter filhos e que portanto é uma pessoa fria, coração de pedra, e que como pode uma mulher assim ter empatia suficiente para governar um país. A ideia pelos vistos ainda extremamente enraizada de que uma mulher que escolhe deliberadamente entre filhos e carreira é uma aberração.
- entretanto, piadinha no Chile sobre como as mulheres não sabem o que querem, e que quando dizem "não" querem dizer "sim", umas indecisas. (Acho, de todos os mitos sobre géneros, este o mais perigoso. É ele que vai perpetuando o que muitos apelidam de "rape culture", e de que a vítima tem sempre qualquer dose de culpa, porque estava a pedi-las, porque tinha uma mini-saia justa, porque estava bêbeda, porque foi por aquele caminho sozinha, porque mandava supostos "sinais". "Não" significa "não", não significa "talvez", nem é um convite para mudança de ideias. Mas esta conversa leva-me por um caminho muito extenso, que não é para percorrer hoje).
- finalmente, a Hillary Clinton. Essa teve que ouvir repetidos gritos de "vai-me passar a camisa a ferro!" durante um comício durante a corrida às presidenciais norte-americanas de 2008 e é constantemente apelidada de histérica, estridente, e cabra. Mesmo assim, com as letras todas: b-i-t-c-h. Pessoas tipo Glenn Beck e Rush Limbaugh (que eu não sei como ainda estão autorizadas a respirar) que dizem sem vergonha nem escrúpulos nenhuns que ela é "o estereótipo de cabra" e que seria um inferno para todos os homens americanos durante quatro anos se ela ganhasse as eleições para Presidente. Mais: que era uma coisa horrorosa ver uma mulher envelhecer diariamente à frente da nação toda. ... E é nestes momentos que uma pessoa chega a conclusão que quais sexismos subtis quais quê, o machismo violento e desavergonhado está bem e recomenda-se neste nosso mundo ocidental. E que estas criaturas podem não ser representativas dos EUA mas que têm uma base de fãs demasiado alargada para que eu possa restaurar a minha fé na Humanidade a 100%.
Acho que isto dava uma investigação de doutoramento tão frutífera, estudar de que forma a misoginia está infiltrada no debate político. Mas depois talvez quatro anos não fossem suficientes para o levantamento de exemplos.
S.
tenho a dizer que acompanhar o meu biriani vegetariano que trouxe na marmita hoje(restos do jantar de ontem) com leitura do que escreves é fantástica maneira de passar hora de almoço.
ResponderEliminare ainda levo como bónus, no meio de ahs e ohs de espanto mental, rir-me um pouco com tua veia cómica mesmo falando de coisas com este nível de gravida.
como
"micro-clima da sociologia"
"tea girl"
machismo violento e desavergonhado está bem e recomenda-se neste nosso mundo ocidental
espero que não tenha caído mal o almoço ;)
ResponderEliminaragradeço e tiro crédito da 1ª e 3ª mas o "tea girl" foi mesmo usado pelos deputados sul-africanos para caracterizar a jovem. lá está, a realidade é sempre mais mirabolante que a ficção...
não,não, caiu ainda melhor! (ler o teu blog é tempo muito bem gasto!)
ResponderEliminarnão sei bem o que é uma "tea girl", é uma espécie de "it girl?"
estes temas dão sempre um bocado de azia, daí a dúvida...
ResponderEliminaruma tea girl é a rapariguinha que serve os cafés/chás, ou seja, que devia estar a servir e não a discutir política com os senhores doutores, claro está. pior ainda que uma "it girl" já que esta ainda consegue ter influência (ainda que não na política, mas enfim)
Muito, muito bom. E fez-me lembrar o que li sobre o que a Maria de Lourdes Pintasilgo teve que ouvir em sede do parlamento português. Eu sei que se passaram 30 anos, entretanto, mas pergunto-me se seria muito diferente se uma mulher chegasse a Primeira-Ministra.
ResponderEliminarAh, a Pintasilgo! Faço uma ideia, mas gostava de saber muito mais sobre essa mulher. Vai ser interessante quando a Assunção Cristas tirar a licença de maternidade ler/ouvir o que se dirá a propósito...
ResponderEliminarDo que se conhece da nossa MAMAOT ela irá concordar com tudo o que se disser, em termos de comentários machistas, sobre "mulher ministra grávida e de licença de maternidade". A ideia que tenho dela é que pertence à casta (numerosa, aliás) de mulheres que concordam com sociedade paternalista, condescendente e machista (alvitro até que ela pode fazer parte dessa "associação de malfeitores" designada de "associação das famílias numerosas").
ResponderEliminar(lembro-em bem dela nos corredores da minha faculdade, quando eu era lá aluna e ela monitora de processo penal e namorava com outro monitor muito "certinho e direitinho")(desculpa a cusquice)
ResponderEliminarPelo facto de ir tirar licença de maternidade em vez de se demitir - que foi a primeira coisa que jornalistas lhe perguntaram se ela ia fazer logo que se soube que ela estava grávida - já tem o meu respeito. Acredito que ela tenha estado sobre pressão para deixar o cargo e o facto de não o ter feito revela alguma resistência às exigências de um mundo ainda demasiado patriarcal como é o da alta política.
ResponderEliminarSim, lá "tomates" tem ela (trocadinho fácil; no outro dia em alfama ouvi um homem referir-se-lhe como a "ministra das alfaces" , sei que não abona muito a meu favor, no capítulo respeito pelas "fellows" mulheres, mas não pude deixar de me rir). Eu não consigo dissociar a "cor" política dela como mulher ou pessoa, e mais uma vez sei que não abona a favor de minha racionalidade, como também não consigo dissociar o facto de ela, como outros tantos da minha geração meus colegas de faculdade, terem feito um percurso escolar, académico, profissional propositadamente apontado para o "poleiro". Sou muito desconfiada quanto a pessoas que têm como objectivo pessoal "subir na vida"(é um defeito meu, eu sei)
ResponderEliminarBom, eu não estou a dizer que ela é uma grande ministra e não é por ser mulher que tinha que automaticamente o ser. Muito menos que ela tenha que estar isenta de críticas (ela ou qualquer mulher política) porque senão está-se a ser machista. A minha crítica é apenas para aspetos em que se critica mulheres na política por razões que nada têm que ver com as suas decisões/ideologias mas sim pelo simples facto de serem mulheres. Daí que o caso da licença de maternidade me aguce a curiosidade. Um problema que muitas mulheres no mercado de trabalho enfrentam, é bom que uma no topo dê o exemplo.
ResponderEliminarSim, e eu sinto isso na pele. Trabalho numa empresa que despediu meu colega porque ele tirou, num só ano, licença de paternidade prolongada seguida de férias e licença de casamento. Tenho a certeza que no dia em que eu anunciar gravidez, coisas ficam (ainda mais) "pretas" para meu lado.
ResponderEliminarMas, no campo das mulheres na política, os países que conheço que têm, parece-me, mais tradição do que na europa por mulheres em cargos de poder, são alguns dos PALOP. Em moçambique, angola e cabo verde há ou tem havido várias ministras mulheres (por exemplo da justiça), que sei, porque na minha empresa trabalhamos directamente com algumas delas, que têm força e são ouvidas no governo. Também têm feriados nacionais que celebram Mulher.
E, que eu conheça (por via de trabalho) um pouquinho de realidade, em alguns países de maioria muçulmana, como Yemen ou índia, há uma grande percentagem de mulheres pescadoras e têm sido feitos esforços para que sejam contempladas como categoria na legislação de pescas (que tem estado a ser revista com fundos as nações unidas). No yemen é curioso que no ministério das pescas há mulheres em cargo de responsabilidade, nomeadamente como pontos focais nestes projectos de revisão da legislação.
Ah, mas só mais um comentário (e prometo que a seguir paro) sobre o "exemplo" dado pela ministra ao tirar licença de maternidade. Eu não acho que esse exemplo sirva de alguma coisa para a sociedade civil. Não estou a ver os patrões a mudarem de mentalidade neste campo só porque a ministra tirou licença e o PM não aproveitou para uma remodelação ministerial. Pelo contrário, o que sinto mais uma vez é o fosso entre os privilegiados (como ela), que, enfim, não teria muito a perder (carreira, dinheiro, etc) caso saísse das funções actuais, e os outros (nós), os que temos muito a perder caso nos despeçam por estarmos grávidas.
ResponderEliminarCompreendo a ideia mas discordo. Se ela se demitisse - ou pior, se fosse feita a remodelação ministerial para aproveitar o facto de ela estar grávida - estaria a dar um sinal claro de que nem uma mulher "privilegiada" se pode dar ao luxo de manter a carreira caso vá ter um filho. E que nem o Governo é capaz de seguir a lei básica das licenças de maternidade, portanto porque deveria uma empresa fazê-lo? Assim fica reforça-se a ideia de que é normal a mulher trabalhar, parar uns meses, voltar ao seu emprego e não há drama nenhum. As mentalidades mudam-se passinho de bebé a passinho de bebé, infelizmente não de um dia para o outro, mas chega-se lá. Obrigada pela discussão ;)
ResponderEliminarObrigada eu pelos teus sempre frescos pontos de vista! Nem imaginas como fico contente cada vez que escreves um post novo :)
ResponderEliminarEsperemos então que o exemplo da ministra seja visto com bons olhos pelo mundo empresarial... (embora particularizando o mundo empresarial em que me insiro, tudo o que esta ministra, especialmente esta, faça é tomado como meus patrões como mau exemplo, mas isso agora não vem ao caso)