Há meses e meses que andava para falar sobre esta série mas demorou até formar uma opinião mais ou menos duradoura sobre ela daí que o post só apareça agora.
Sexo e a Cidade mas com personagens tridimensionais. E sem o bling-bling ofuscante. E com outros tópicos de conversa que não homens. E tão, mas tão mais realista.
Não é uma série fácil de se gostar. Diria mesmo que é daquelas coisas que ou se adora ou se odeia, e eu oscilei durante a primeira temporada toda entre o ódio e a profunda admiração. Até que estabilizei, pouco a pouco, na profunda admiração.
Ora, o que tem o Girls para odiar? Muito fácil. A personagem principal não é nenhuma modelo, não é convencionalmente bonita, não é boazinha, nem é mázinha, ou seja, é extremamente difícil de caracterizar e de enquadrar numa das personagens-tipo convencionais. Surge, tipo, como uma pessoa normal, de personalidade complexa e cheia de defeitos e contradições - aliás, como as outras três personagens principais - e isso não é muito usual. Esta foi uma das razões por que eu demorei tanto a decidir-me pela admiração: não conseguia gostar do raio das raparigas. Eram demasiado reais e com defeitos que me tocavam pessoalmente e às vezes só me apetecia era gritar-lhes que não era assim que se fazia/dizia/comportava. Como se fossem mesmo pessoas que eu conhecesse e que me exasperassem as suas atitudes.
Depois é a ausência de glamour. Estas raparigas vivem em Nova York, profundamente glamourizada nas mentes dos seres femininos que se habituaram demasiado ao Sexo e a Cidade, mas vivem em apartamentos pequenos, partilhando casa, sem nunca lhes vermos o closet a abarrotar de Chanéis, Diors e Loubotins, e - pasme-se! - têm dificuldades enormes em sobreviver na Grande Maçã! Fala-se inclusive em dinheiro, falta dele, eternos estágios não-remunerados, empregos precários, dificuldade em saber que rumo dar à vida profissional, tanta coisa que ressoa demasiado à minha geração que tenta dar os primeiros passos no mundo ingrato do trabalho em plena crise económica. Quando tentei explicar a uma amiga o teor desta nova série, ela respondeu-me, um bocado desiludida, qualquer coisa do género: oh, mas se é parecido com a vida real, qual é o interesse de ver? Fiquei a matutar naquilo. Realmente, se é para ver a desgraça da precariedade uma pessoa liga a tv no telejornal, escusa de estar a ver desgraça ficcionalizada. O Sexo e a Cidade era por isso uma espécie de escape para muito mulherio, a vida de trintonas Diorizadas numa das cidades mais fixes do planeta, cujos problemas mais prementes eram o que vestir para a inauguração do novo bar na zona mais trendy da cidade e se algum dos seus 50 pares de sapatos combinava com o outfit escolhido. A roupa de alta costura, o sapato de marca e os restaurantes ultra-gourmet onde as protagonistas se encontravam para falar invariavelmente de quem haviam comido na noite anterior, ou quem iriam comer na próxima, enchiam os olhos às espectadoras e criaram padrões demasiado altos e irrealistas sobre o que é ser uma mulher bem-sucedida. (E não me venham com merdas, as amizades femininas não são assim.) O Girls virou ao contrário este mundo glamourizado nova yorkino e apresenta-lo-nos numa travessa de plástico, sem se importar em tirar os podres da vida na Big Apple. É demasiado cru e comum, não enche olhos de estrelas a ninguém.
Mas eu diria que o maior pecado desta série, para muita gente pecado capital, é a protagonista ser tão normal. Ter um corpo normal, excesso de peso, e não ter vergonha. Não só não ter vergonha, como ainda ter o desplante de aparecer nua em tantas cenas, inclusive cenas íntimas, ou apenas de tronco destapado, mamas ao léu e barriga redonda em toda a sua glória. E isto foi algo que eu demorei algum tempo a habituar. Ali estava uma rapariga normal, com uns quilos a mais e com um corpo que desobedece aos padrões impossíveis de beleza feminina (como aliás, 99,9999% dos das mulheres desobedece) e sem qualquer pudor em mostrá-lo no pequeno ecrã. Ao início, olhava aquilo com um misto de estupefação e admiração embasbacada, com um leve traço de inveja pelo à-vontade e coragem desta rapariga, mas com muito rebolar de olhos por me parecer que havia ali pelo meio gratuitidade nas cenas de nudez/sexo. Mas à medida que a série avançava, e eu ia tendo noção que aquela moça que ronda a minha idade era a escritora, produtora e protagonista de uma história que desafiava cada vez mais os padrões do que uma pessoa está habituada a esperar de uma produção americana, a admiração cresceu e eu venci a preguiça que me tinha dado para avançar para a segunda temporada e recomecei a ver a série que de tão realista se havia tornado dura de ver.
Os temas tratados são também extremamente interessantes e uma raridade na tv. Há stalking, há doença obsessivo-compulsiva, há desemprego, há incerteza sobre o que fazer após a univ e os primeiros estágios, há a falta de dinheiro, há a dependência emocional, etc. Nunca com uma nota de moralidade, nem com um final feliz, nem com drama despropositado. Apenas pessoas a cometer erros e às vezes sem qualquer noção, como se fossem, er... pessoas. Muitas vezes me interroguei se muita coisa não seria baseada em situações reais vividas pela Lena Dunham porque simplesmente me parecia impossível alguém conseguir imaginar tal coisa tão intrincada mas tão plenamente realista. Entretanto descobri que sim, muita coisa é baseada na vida real da escritora/protagonista o que explicou também para mim o facto de ela ser um bocado má atriz. Parece mesmo que está a fazer de si própria (e pelos vistos está).
Há uns dias, quando finalmente me tinha decidido pela admiração profunda, fui pesquisar mais sobre a série e a Lena e descobri rapidamente que ela se intitula de feminista. Não foi choque nem surpresa nenhuns; alguém que tem a ousadia de fazer uma série como esta só poderia ter uma sensibilidade apurada para as questões de género. A coragem de desafiar os padrões-espartilho de beleza e o des-pudor em mostrar o corpo feminino tal como ele realmente é é apenas mais um pormenor dessa consciência feminista. Claro que o que para mim é visto como audácia, para muitos é visto como exibicionismo puro. Mas não é o exibicionismo que incomoda os haters, é a lata que uma mulher sem corpo esbelto tem de aparecer nua na televisão tantas vezes.
Incha, haters.
Que não fiquem os mais céticos com a ideia que isto é uma série cheia de lições de moral e que as mulheres são grandes heroínas e cheias de auto-confiança e desprezo pelos homens: nada disso. Os temas não são realmente "temas" a ser tratados em cada episódio e com uma moral da história feminista no final; é antes a complexidade e a forma como as personagens caem em certas situações que revela um veio feminista muito subtil mas omnipresente, se se o quisermos notar
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Não recomendo a série a ninguém porque compreendo perfeitamente que se possa não gostar. Ela não é fácil e mesmo com todas as suas inovações e "recomendações" feministas a minha paixão por ela não foi imediata e demorei a admitir o brilhantismo da coisa. Mas se gostarem de algo diferente e a vida banal da casa dos 20 não vos aborrecer, ide espreitar.
Só deixar aqui uma cena do primeiro episódio e que me arrebitou a orelha logo para o potencial feminismo da série:
S.
P.S. Uma vez uma delas apareceu sentada na sanita a fazer xixi :O E eu que achava que as mulheres da tv não faziam xixi nem cocó!...
coo sempre, gostei muito da tua perspectiva.Só um pormenor: por acaso agora ando a espreitar umas reruns do sexo e a cidade (estão a dar na foxlife) e ainda no outro dia vi a miranda a fazer chichi na sanita. Claro que numa pose perfeitamente asséptica. mas estava na sanita. E já vi em outros filmes também mulheres na sanita (acho que no eyes wide shut a nicole kidman). Agora talvez a novidade dessa Lena seja a pose mais realista na sanita?
ResponderEliminarvi a primeira temporada disto e vi por acaso quiçá metade da segunda e, yup, ODIEI. acho as personagens demasiado personagens-tipo para serem realistas, não acho nenhuma delas gostável e acho que há um esforço consciente para que isso aconteça [e não acho nenhuma delas relatable, fora esses problemas de desemprego, falta de rumo - não conheço ninguém com problemas relacionais (tanto amorosos como de amizades) assim, não conheço ninguém com aquelas personalidades, até porque, lá está, são personagens-tipo]. acho muito bem que a lena dunham se queira mostrar ao mundo, mas metade das cenas dela nua são 100000% gratuitas e as cenas dela em geral parecem ser apenas para lhe alimentar um ego (há um ep na segunda temporada em que ela vai passar tipo três dias com um tipo random super hot que acabou de conhecer e que não contribui nada para a história????). ela é awkward, obnoxious e self-entitled, duvido que a vida real corra assim a alguém com tais características (e nos dois primeiros eps em que ela diz a uma enfermeira que GOSTAVA DE TER SIDA e a um possível empregador que HEHE FOSTE TU QUEM ANDOU A VIOLAR PESSOAS NA FACULDADE?, i mean, QUEM DIZ ESSAS COISAS? ninguém). as outras são completamente chatas e irritantes também, super personagens tipo, a certinha-responsável, a certinha-inocente-virgem e a party-hard. acho-as muito, muito unidimensionais.
ResponderEliminara.i. não me lembro da cena no SC mas no Girls foi uma coisa muito banal, a rapariga sentada na sanita a fazer o que tinha a fazer, nada de especial. Mas pareceu-me uma cena que podia ter sido tirada da vida mais corriqueira que há. Não foi chocante, apenas banal.
ResponderEliminarBárbara, percebo perfeitamente de onde tudo isso vem e o facto de ao início também me ter parecido que as personagens estavam demasiado arrumadinhas para aquilo ser credível, aos poucos e poucos fui vendo que não era assim. Discordo que as personagens sejam unidimensionais. Como classificar a Hannah (protagonista) por exemplo? Sim, ela é tudo isso que disseste, irritante, self-centered, fala demais, mas por isso mesmo podia ser uma pessoa completamente normal. E ela não tem uma vida nada fácil na série, portanto não é como se a sua personalidade irritante a tivesse tornado numa rapariga precocemente bem sucedida.
ResponderEliminarJá as outras, se bem que ao início (primeiros 2 ou 3 episódios) houvesse um esforço (consciente ou não) para as manter nas suas categorias definidas, ao longo da série elas caem em situações tão variadas e contraditórias que acabam por rebentar as costuras das suas supostas personagens-tipo.
Tens a certinha-inocente-virgem que trai o namorado, fica com remorsos, mas depois não fica e acaba por lhe faltar a paciência para continuar com a relação; tens a certinha-responsável que tinha a vida encaminhada como assistente de uma galeria de arte e namorado da faculdade mas depois caem as duas coisas por terra e ela envolve-se com um artista de arte que não bate bem da cabeça e há uma altura que ela decide que quer é ser cantora. Finalmente, a party-hard,que na segunda temporada não está nada para festas e há até um episódio em que ela vai passar uns dias a casa do pai e fica-se a conhecer melhor o contexto da personalidade dela. No Sexo e a Cidade, por exemplo, não me lembro de alguma vez se falar do passado de qualquer das personagens (apenas vagamente quando elas se lembram que a vida era um bocadito dura há dez anos atrás).
Há uma boa dose de loucura, sim senhora. Mas na minha opinião é apenas porque se admite a loucura como parte de qualquer pessoa e para mim isso torna-as verosímeis. Às vezes apetece dar-lhes um par de estalos por certas coisas parvas que dizem ou fazem, ou abaná-las com força a ver se ganham juízo mas por isso mesmo é que as acho relatable. É-me mesmo muito difícil empatizar com personagens de séries/filmes, estou-me sempre pouco ralando com o que lhes acontece, e estas pelo menos provocam-me emoções, seja de frustração seja de admiração.
E quanto à nudez da Lena... Epá, sim, admito que metade das cenas de sexo/nudez são gratuitas e um bocadinho para chocar mas ao mesmo tempo acho espantoso o à-vontade que a rapariga tem, tendo um corpo nada esbelto.
Enfim, compreendo perfeitamente que não gostes da série, eu andei indeciso até aos meados da segunda temporada.
Acho positivo que a série ande aí e que suscite ódios e amores.