sábado, 30 de março de 2013

Barcelona, you're doing it wrong

Muito por acaso, apanhei um mercado enorme em Barcelona, daqueles mesmo bons, tradicionais e enormes, com bancas de todos os vegetais, frutas, peixes, queijos, carnes e enchidos que se possa imaginar. Não tem o caos do mercado do Midi, aqui de Bruxelas, nem a ordem do mercado de Loulé (por alguma razão, o mercado português que está mais vívido na minha memória), mas é labiríntico como nenhum destes dois e com uma variedade que me espantou francamente.

Enquanto por lá cirandava, uma banca de bacalhau chamou-me a atenção. Pensei: "Olha, que curioso, os espanhóis também apreciam bacalhau, não sabia." Até que me aproximei e vi melhor: 





Postas de bacalhau fresco, com uma grande camada de sal por cima, no que eu desconfio ser uma tentativa muito esforçada mais muito fail de produzir um bacalhau igual ao português.

Soltei uma gargalhada sarcástica e meio arrogante porque é sempre a mesma coisa. Todos tentam mas ninguém consegue ter bacalhau como em Portugal. Não, senhores barcelonenses, não é assim que se faz. O bacalhau tem que ser seco; não é só espetar um monte de sal por cima e esperar pelo melhor. Eu sei, eu já tentei... 

Corei um bocadinho quando me lembrei disto. No Natal londrino, numa tentativa um bocado desesperada de ter o tradicional bacalhau à mesa da ceia natalícia, comprei as típicas postas de peixe fresco e no dia anterior salguei-as como se não houvesse amanhã. Remediou, mas não é de todo a mesma coisa.

Por isso, vá, se é para vender tem que se fazer como deve ser; isso não engana ninguém, sim?



S.

domingo, 24 de março de 2013

Guia para uma viagem de sonho à Escócia

Há vários anos que uma das minhas viagens de sonho é ir à Escócia. Este ano, e por uma agradável coincidência, tive que me deslocar várias vezes a esta região em trabalho. Fiquei maravilhada com Edimburgo, que em nada desapontou e cuja aura de mistério e magia me lançaram num remoinho de lembranças de leituras passadas, visitei Glasgow várias vezes mas um bocado de fugida, e vi da janela minúscula de um avião as montanhas, os lagos e o verde que povoam a imaginação quando se pensa em Escócia.

No entanto, a minha viagem de sonho é muito mais do que isto. Quero conhecer esta parte do UK de uma ponta a outra, quero ir a Inverness, a Aberdeen, à Ilha de Skye, visitar os castelos assombrados, caminhar à beira dos lochs, andar no comboio que diz que tem as melhores vistas daquele campo, palmilhar aquilo de uma ponta à outra. Só assim arrumarei a Escócia no compartimento mental dos sonhos realizados.



Entretanto vou-me apercebendo que aquilo tem mesmo uma identidade própria e singular, diferente de (pelo menos) Londres e arredores, ainda que não sinta que estou noutro lado que não o UK. É complicado, para uma pessoa de fora, entender completamente os meandros da identidade de um povo, e por isso é sempre muito interessante quando se tem oportunidade de falar com insiders. Para além de uma ou outra conversa que já tive com o boss - que por acaso é escocês - tive no outro dia uma conversa curiosa com um senhor em Glasgow, que dizia que se irritava quando as pessoas diziam que o seu inglês era muito bom; "Eu não falo inglês", dizia ele, "Falo escocês, o que não é de todo a mesma coisa". Eu não concordo, inglês é a língua, o que há são depois as variantes. Ninguém diz que fala americano, assim como não se diz que se fala brasileiro; o que existe é o inglês escocês, o inglês indiano, o inglês irlandês, e por aí fora. Português europeu e português do Brasil. Mas não deixa de ser extremamente interessante a veemência com que o senhor disse aquilo, e a forma como ele diferencia a língua que fala, da língua que falam grande parte dos seus concidadãos. Durante a licenciatura, quando fiz o minor em Estudos Ingleses, um dos livros de leitura versava precisamente sobre a identidade dos vários povos das ilhas britânicas. Fascinou-me - e continua a fascinar-me - a complexidade das identidades nacionais dos quatro países. O que é ser britânico? E o que é ser inglês, escocês, welsh? Que um escocês não é inglês mas é britânico (ou pode nem se sentir tal). Mas que um inglês entende Englishness e Britishness como sendo a mesma coisa, e que por vezes um escocês se identifica mais como europeu do que como britânico. Fascina-me profundamente, isto das identidades nacionais. Se não tivesse seguido pela via do género, na minha dissertação, tenho a certeza que teria enveredado por aqui. O referendo para perguntar aos escoceses se querem uma Escócia independente já tem data marcada para setembro de 2014, e eu mal posso esperar pelo resultado. Seria algo inédito nos nossos dias, e, caso vença o "sim", muitas questões ficariam em aberto: Teria a Escócia que se candidatar novamente à UE? Manteria a libra esterlina? Como seria o estatuto dos seus cidadãos? Teriam que pedir visto para visitar outro país europeu? Desatará a abrir embaixadas escocesas pelo mundo fora? É incrivelmente interessante porque abriria um precedente nesta Europa cujas regiões querem mais e mais autonomia: a Catalunha, o Norte de Itália, o País Basco, a Bretanha, a Flandres, a Irlanda do Norte...

Mas divago. Eu queria era vir para aqui sonhar um bocadinho e não meter-me numa discussão sobre nacionalidades.

Dizia eu que a minha viagem de sonho à Escócia é muito mais do que Edimburgo ou Glasgow. Há outra parte crucial, para além de a palmilhar de uma ponta à outra, que é o meio para lá chegar: obrigatoriamente partindo de King's Cross de comboio, atravessando Inglaterra toda até à região nortenha do UK. Para vislumbrar o campo inglês, uma ou outra aldeia lá ao fundo, e ver a paisagem a mudar de forma.

Esta semana, foi mesmo isso que aconteceu. Não parti de King's Cross mas de London Euston (uma vez que para Edimburgo é que eles partem de KC e eu fui para Glasgow) e a atenção à paisagem foi reduzida uma vez que ia a trabalhar (benditos comboios com wi-fi) mas deu sem dúvida para maravilhar os sentidos e espicaçar a curiosidade. Se eu pensava que tal viagem me iria apaziguar o desejo de conhecer a Escócia, enganei-me profundamente; se há coisa que fez foi tornar mais obsessiva esta vontade. 

A viagem dura cinco horas e, a cerca de hora e meia do fim, as planícies verdes inglesas começam a dar lugar a um outro tipo de paisagem bem diferente:





Olhei para o lado e até me assustei com o que passava do outro lado da janela: montes imensos, arredondados e verdes, florestas e vales, pelos quais o comboio passava, indiferente e seguindo o seu curso. Começou-me a dar um bocado de raiva por a máquina fotográfica (ou vulgo telemóvel) não estar à altura para captar a beleza do que os meus olhos viam; e convenhamos que a janela de um comboio em movimento não ajuda. Às tantas desisti e decidi apoiar-me apenas nos olhos e na memória para guardar estas vistas.

Quando parámos em Carlisle e eu vi escrito por debaixo da placa da estação a expressão "Lake District" é que me ocorreu que aquilo ainda não era a Escócia mas sim uma região que já tinha ouvido falar por alto, pautada por lagos (pois), florestas e de grande beleza natural. 

E foi então que a minha lista de "sítios a visitar antes de morrer" adquiriu mais um nome. No fundo, no fundo, o que eu quero é palmilhar o Reino Unido de uma ponta à outra, que aquilo tem tanto sítio para visitar, tanto castelo, manor, palácio, aldeia, vila e parque natural que uma vida inteira não chegava para conhecer como deve ser.

Entretanto comecei a chegar à Escócia. Uma vez que as linhas férreas não têm placas de indicação, como é que eu descobri? Muito simples:








Neve!

Quilómetros e quilómetros de manto branco a tapar aquelas montanhas e aqueles campos, que desconfio tenham outro encanto quando a neve derrete. Mas assim, de uma perspetiva quentinha e confortável, me pareceram muito bonitos na mesma. 

Ainda embriagada pelo que tinha visto na viagem, surripiei da receção do hotel uns três ou quatro panfletos de excursões pela Escócia. Só para me darem umas ideias... Entre eles havia uma revista grátis totalmente devotada a roteiros a pé pela região. Páginas e páginas com percursos de vários quilómetros, com respetivos mapas, distâncias e fotos do que se pode ver em cada um. Fiquei pasmada com a devoção que aquele povo parece ter pelas paisagens incrivelmente belas com que a natureza os brindou. De notar que este é um país onde em meados de março apanhei neve e ventos gelados, e onde no inverno anoitece às três da tarde. E não é plano, de todo. Nada convidativo a atividades exteriores, portanto. 

No meio da coleção, encontrei o que andava à procura: excursões de um, dois e três dias por sítios emblemáticos da Escócia. Ouro sobre azul: são excursões pequeninas, em carrinhas de 7/9 lugares, muito personalizadas e com guias apaixonados pelo que fazem. Desde a experiência na Normandia, onde fizemos uma destas excursões muito pessoais pelas praias e cemitérios de guerra, que acredito ser a melhor maneira de conhecer verdadeiramente uma região. Alugar um carro é aventureiro mas para quando se tem muito tempo e, arrisco, dinheiro. Há que contar com muito desvio, enganos no caminho, fails em aldeias ou vistas que não são assim tão bonitas porque na foto pareciam diferentes. Partir com um guia é ter a certeza do que se vai ver, de que vamos visitar o que há de mais bonito e historicamente relevante. E além disso, é completamente diferente acompanhar as vistas com relatos apaixonados e cheios de detalhes que só quem conhece pode dar. 

Trouxe o panfleto das excursões. O grupo chama-se Timberbush Tours e é exatamente o que pretendo no dia em que a roadtrip pela Escócia acontecer. Espantou-me os preços em conta (excursões de um dia inteiro por volta de £30 por pessoa) e a diversidade de percursos por onde escolher. Comecei logo a maquinar fazer dela a nossa escapatória deste verão, mas por mais que deseje esta viagem sei que não vou poder privar-me de verdadeiro calor e sol uma vez no ano e ir mais para o norte em vez de rumar ao sul. Este inverno extraordinariamente rigoroso não me deixa sentir bem em desperdiçar a semana estival anual numa viagem à Escócia. Cá ficará a marinar por mais uns aninhos. Entretanto, vou-me babando com as fotos do folheto.



S.


sexta-feira, 22 de março de 2013

So far, so good


Clima soalheiro do bom:



Check.

Comida mediterrânica barata e de chorar por mais:


Check.

Caramba, tinha-me esquecido - outra vez - do que é uma cidade como deve ser. E de que há mesmo uma diferença entre o pessoal do Norte e o pessoal do Sul. Gente bem mais afável e extremamente mais relaxada. 



S.

quarta-feira, 20 de março de 2013

Sexismo onde menos se espera

Entretanto, numa Boots algures em Edimburgo:



Manwasher.

Esta espécie de esfregão cinzento é nada mais nada menos que uma esponja especialmente desenhada e construída para homens. É uma esponja? Não, não, é um "manwasher".

What the fuck, pergunto eu. Quem foi a cabeça brilhante que achou que havia qualquer coisa de errado com uma esponja normal para que esta pudesse ser usada por homens? Mas porquê a diferenciação forçada? O que tem uma esponja de tão feminino que tenha havido alguém que se tenha lembrado que o que fazia falta era adaptar um esfregão ao banho, para os homens se sentirem mais confortáveis a lavar a pele.

Estou a imaginar o slogan: "Manwasher. Because using a sponge is too girly." É só a porcaria de uma esponja! Usa-se para esfregar a pele, algo comum a todos os seres humanos, tenham eles pipi ou pilinha.

De reparar na cor que foi escolhida, o cinzento, uma cor muito máscula, e naquela pega de plástico, para tornar todo o objeto o mais parecido possível com uma ferramenta de construção - isso sim, de homem - e o menos possível com uma esponja, essas coisas fofinhas usadas pelas gajas com todas as suas mariquices de beleza, tipo lavar a pele como deve ser, e o caraças.

A minha questão é: será que este objeto apareceu porque foi descoberto um nicho de mercado, ou seja, há homens que realmente têm vergonha de usar uma esponja porque esponjas são coisas de gaja, ou será que o produto surgiu e criou ele próprio uma necessidade que não existia? Se calhar depois de verem este manwasher num supermercado, há homens que passaram a ter vergonha de usar uma esponja normal, porque claramente são femininas e não sabiam, porque, oh, aqui está a prova*.

O mundo do marketing e da publicidade é um poço de inspiração para a luta feminista e eu só agora me apercebi.



S.

* No fundo esta é a questão de base do feminismo: saber o que são as diferenças intrínsecas e as que são construídas por influências externas. 

Primavera, qual primavera?

Então, S., como foi o teu primeiro dia de primavera? 

Cheio de florzinhas e solinho e temperaturas agradáveis?

...

Hahahahahahaha. Não.

Tive a minha primeira descolagem de avião debaixo de queda de neve, enquanto tentava perceber se a lei do escorreganço se aplicava aos pneus dos aviões também (não tinha o meu pai ali ao lado para me descansar). Há uma semana houve tempestade de neve por aqui.

Recuso-me a juntar à festa de boas-vindas de uma estação que ainda nem se avista no horizonte aqui pelos nortes europeus.






S. 

terça-feira, 19 de março de 2013

História in da house

Eish... Conta-me História logo seguido de um Pedro e Inês no único canal disponível aqui do lar. RTP Internacional a apostar forte na História em pleno horário nobre!




Minha alma está parva.



S.

sábado, 16 de março de 2013

Um chávena de chá e uma diretiva de licença de maternidade

Mais uma vez me encontro de volta de licenças de maternidade, diretivas sobre trabalhadoras grávidas, posições do Lóbi Europeu das Mulheres, teses e apresentações de Powerpoint. A minha amada conciliação trabalho-família. Cada vez gosto mais do tema, tenho uma pontinha de orgulho pela minha humilde mas séria investigação na área, mas, caramba, hoje teria feito as coisas de maneira diferente. Espiolharia mais, metia mais o nariz onde talvez não fosse muito chamada, iria mais fundo. Três ou quatro meses não dariam para muito mais do que eu fiz, mas gosto de achar que agora I know better e utilizaria de forma ainda melhor esses meses. 

Ainda assim, vai ser uma grande honra estar na mesma sala que monstras académicas da igualdade de género, cujos livros de muitas li nas intermináveis tardes passadas na amada biblioteca da LSE, e que constam na bibliografia da minha tese bebé. Vou-me sentir um pardalito ao pé daqueles cisnes académicos, mas um pardalito entusiasmado e cheio de vontade de partilhar os três ou quatro fios de palha que achou e com os quais fez um... coiso (acabaram-se-me as analogias com o mundo das aves).



Vai ser em Barcelona, no sábado. Lá vou eu voar (olha, afinal tinha mais uma!) para os países do sul que espero se portem climatico-gastronomicamente como deles é esperado, que isto aqui anda uma tristeza. Vivi na segunda-feira a minha primeira tempestade de neve, tenho trabalhado que é maluquice, ando euforicamente agradecida por terem voltado graus positivos e acho que as gauffres do supermercado da esquina são uma iguaria. Portanto isto está grave. Tanto a nível gastronómico como climático. 

Pior: há dois ou três meses que não compro um chá de jeito. Tem sido só tiros ao lado. Acabou-se-nos o chá preferido há um mês, o Rooitea Caramel da Tee Gschwendner, e que entretanto descobri, por entre lágrimas sofridas, que custa o triplo do preço encomendando online devido aos portes. Qual a vantagem de viver no centro da Europa se está tudo tão longe na mesma? Rai's partam os portes de envio.

Desconfio que não será Barcelona que me curará esta última miséria. Mas se curar as outras duas, nem que seja por dois diazinhos, já me darei por satisfeita.



S.
    

Media, é assim mesmo #3

Só lá cheguei quando li a explicação detalhada.


Que filme tão complicadamente construído, de linhas curvas e sem continuidade linear no tempo. Tem a complexidade e aleatoriedade de pormenores tal e qual como num sonho.

Intriga, e dá pano para debates intermináveis, sem ser possível chegar-se a uma conclusão. Como disse, só o entendi satisfatoriamente quando li a explicação do Salon.com

Está aqui porque, para além de ter as 2 (3?) personagens femininas como absolutas principais, é uma crítica séria, velada mas forte quando nos apercebemos que ela lá está, da objetificação da mulher por Hollywood:

"He’s playing explicitly with how Hollywood uses women predominantly as sex objects — except he’s turning the formula on its head, making the women’s world a closed one, at least in Diane’s fantasy of it. But of course, in the end she’s doing the same thing a Hollywood movie normally does to a Camilla — imagining that she’s an empty object that she can possess."

As duas personagens principais + uma são complexas (como não podiam deixar de ser, depois daquele enredo tão denso e sinuoso), tão complexas como um sonho consegue ser.

Há que preparar para duas horas e meia de mind-fuck - que eu não preparei; sabia que era um thriller complicadito mas "thriller complicadito" é um grande eufemismo para o Mulholland Dr. e eu nunca tinha visto nada assim -, na certeza porém de que o Google salva a nossa curiosidade de viver para sempre intrigada.






S.


segunda-feira, 11 de março de 2013

Media, é assim mesmo #2

O descubra-o-estereótipo nem estava ligado desta vez. Há alturas em que o tenho que pôr em stand-by, alturas essas em que normalmente estou muito bem-disposta e num humor de ver tudo o que há de bom nas coisas, de dar o desconto, como se costuma dizer. Ou então alturas em que o D. me começa a lançar olhares exasperados, ou a levantar os olhos ao céu numa atitude de quem pede largas doses de paciência aos anjinhos, que isto de se ter metido com uma feminista cujo passatempo favorito é vociferar contra a televisão (eu não era assim quando ele me conheceu, coitado), não é fácil e "Deixa lá ver o filme em paz...!". Aí eu respiro fundo e rodo o botão para "stand-by", limitando-me apenas a uns ares de enfado e a um ou outro revirar de olhos. Já é palpável a dose de embaraço e culpa do homem quando aparece nudez gratuita de mulherio nos filmes - particularmente comédias, aí ela é quase sempre gratuita (e sim, revolta-me apenas a que não serve nenhum propósito na história; sou contra a objetificação da mulher, não sou púdica)  - portanto sei que de vez em quando tenho que me controlar. Para bem da minha saúde mental, também, e para continuar a conseguir ver filmes e televisão.

Dizia eu que desta vez o descubra-o-esterótipo estava apenas em stand-by. O filme em questão tinha um título meio aleatório e cómico, a frase que o recomendava prometia uma história engraçada e parecia-me que vinha de fora da máquina hollywoodesca. A introdução no artigo da Wikipédia: "Seven Psycopaths is a 2012 British black comedy..." (que só vi agora, devo dizer) faz antever que o humor que encerra não é habitual.



Sem querer entrar em spoilers, basicamente é a história de um escritor que está a escrever um policial sobre 7 psicopatas (mas que não quer que o livro seja violento) e cujas linhas de enredo de cada personagem se vão desenvolvendo e cruzando com a vida real do escritor. Há uma altura em que dois amigos dele, que se dedicam a roubar cães para uns dias depois os irem entregar e receberem a recompensa dos donos, roubam o shih tzu de um mafioso qualquer e aquilo depois não corre muito bem. É mesmo muito boa a história, as personagens e o passo do filme, que é rápido e com muita coisa a acontecer ao mesmo tempo, o que resulta muito bem para comédia. Cada psicopata tem os seus próprios quirks e afetações que os tornam complexamente cómicos, e lembro-me por exemplo de um que andava sempre com um coelho branco ao colo, e que uma vez gritou ao escritor "Achas que eu estou a brincar??!! É porque tenho sempre um coelho branco, não é, ninguém me leva a sério!!" e eu desatei a rir até ficar sem ar porque, convenhamos, psicopata que é psicopata não afaga coelhos. Ainda por cima brancos, que coisa mais fofinha conseguia ele ir buscar. 

É um filme que é impossível adivinhar para onde vai a seguir e muito menos como vai acabar. Não há template nenhum que se afigure por detrás do enredo já que nunca se viu nada assim antes. São os meus preferidos, estes. Nem há o tão comum "dois finais possíveis" que normalmente acontece quando o filme é bem conseguido mas uma pessoa sabe que ou será uma coisa ou outra, não há muito por onde fugir. Aqui nem sequer seria o "o cão é devolvido / o cão não é devolvido" porque a história é bem mais densa e cheia de torpelias do que merece ser reduzida nesses termos. É filme dos bons, portanto, e comédia honestamente original.

Ainda assim, o que tem este filme de feminista para merecer figurar no "Media, é assim mesmo"? Em sete personagens no cartaz, só duas são mulheres, onde está a originalidade neste campo? A resposta é uma cena de 15 ou 20 segundos, mas que me fez rir a bandeiras despregadas pelo brilhantismo puro e tão atirado ao acaso:



"As tuas personagens femininas são terríveis."


"Nenhuma delas tem algo a dizer em sua defesa."


"E a maior parte delas ou leva um tiro"


"ou é esfaqueada até à morte em cinco minutos."


"E as que não são provavelmente vão ser mais para a frente."

                           

"Bom..."



"É um mundo difícil para as mulheres. Sabes?"


"Sim, é um mundo difícil para as mulheres,"


"mas a maior parte das que eu conheço consegue articular uma frase."


Isto é tão cómico porque aborda a questão da representação das mulheres nos filmes em geral de forma tão acutilantemente irónica, extrapola a cena onde é dita, o próprio filme, e é uma punhalada na clichézeda humorística que abunda por aí. Pareceu-me suficiente para vir parar ao "Media, é assim mesmo". Um filme não tem que ter todas as personagens principais no feminino nem versar só sobre as relações entre elas para merecer um lugar aqui. Se bem que, sabe deus o quão raro isso é. E, a sério, a originalidade do enredo e das piadas não as consigo recomendar demais.



S.

domingo, 10 de março de 2013

Exposição à vista

Há uns meses dei-me conta de uma exposição que o V&A em Londres estava-se a preparar para receber e que encaixa perfeitamente num dos meus interesses literários mais aguçados: o período Tudor. A exposição chama-se "Treasures of the Royal Courts" e conta com peças inéditas das Cortes do Henrique VIII e Elizabeth I, dos Stuarts e do Ivan, o Terrível (como este último foi aqui enfiado permanece um mistério para mim).




Infelizmente, só agora reparei que é uma exposição paga - os museus londrinos gigantes, preciosos e totalmente grátis habituaram-me mal - mas estou convicta de que valerá a pena. Só precisava de um pretexto para voltar a Londres nos próximos meses.

O pretexto chegou há uns dias, sob a forma de celebração dos 20 anos do meu curso na King's e convite para lá ir falar sobre a minha vida pós-European Studies (o que eles acham que eu possa ter de interessante para contar supera-me um bocado mas, hey, qualquer desculpa é boa para voltar a Londres :D). Calha mesmo bem para ir visitar a exposição das Cortes, que abriu ontem e lá estará até meados de julho. A ver vamos se nessa altura vai estar mais alguma coisa que valha mesmo a pena ver. Já decidi que me vou manter afastada dos veados, por isso vou ganhar umas 3 ou 4 horas para queimar a conhecer um recanto qualquer daquela cidade que ainda não tenha visitado. Talvez seja desta que vá ao mercado Spitalfields.





S.

The gods have gone mad - again

Oh valha-me deus. Isto é inédito, até para os padrões marados do clima bruxelense.



Estamos em meados de março, porra! Chega de sinais de menos atrás dos números!

De recordar que nem há uma semana tivemos temperaturas de 17º. Estamos perante uma amplitude térmica de quase 30 graus, portanto.

Isto já não é bipolaridade; é esquizofrenia temporal.



S.

sábado, 9 de março de 2013

Feira do Livro: versão indoor

Continuando no tema dos livros, hoje foi dia de visitar a Foire du Livre de Bruxelas. Não estava com expectativas de comprar nada, já que a língua em questão, aliada ao meu cada vez mais especializado gosto e à preferência pelos e-books, tornava a tarefa de encontrar algo que me fizesse puxar da carteira mesmo muito díficil. Da carteira tive que puxar na mesma, uma vez que para meu enorme espanto e indignação a entrada era paga. Sim senhora. Autoridades bruxelenses sempre a promover a cultura. Deu-me logo uma grande pontada de saudade no coração da maravilhosa Feira do Livro de Lisboa, aquele Parque Eduardo VII cheio de filas e filas de barraquinhas de livros, muito sol, muita luz, muito calor, ar livre, um passeio anual que não falhava. Levantei o queixo do chão, engoli a indignação e puxei da nota sem reclamar. 



"Um dia o Obama pediu ao Harry Potter para transformar o seu inimigo em sapo." Quem terá sido este inimigo de que eles falam, hum? Será que o Mitt Romney passou a pertencer à classe dos anfíbios e ninguém deu por nada?

A certa altura ainda pensámos que o bilhete de entrada podia ser como nas discotecas e tivesse livro incluído (não tinha). Paga-se mesmo só pelo privilégio de poder ir ver e comprar livros. Hahahaha, está boa, esta.

Tinha muitos livros interessantes e originais para crianças, algo que desconfio que os belgas são bons, uma vez que já tinha reparada na livraria do aeroporto umas coisas engraçadas. Não sei se tem alguma coisa que ver com a tradição de bandas-desenhadas e ilustrações. Isto trouxe-me um sorriso aos lábios:




Tenho que confessar que me senti muito deslocada, naquela feira. É mesmo muito estranho percorrer quatro pavilhões enormes (ao jeito da FIL de Lisboa) e não encontrar um único livro que se conheça, nenhum nome de autor que ressoe. Ali dei de caras com o quão superficialmente conheço o meu país de acolhimento, a sua literatura contemporânea e clássica, essa parte tão fundamental da cultura e identidade de um povo. É uma coisa que me incomoda, põe-me desconfortável e, ao invés de me fazer querer ler mais sobre a Bélgica, agarrar numa História deste país, faz-me ter vontade de fugir daqui a sete-pés, enroscar-me nos braços da cultura britânica, numa língua que eu conheço não só as palavras mas também e fundamentalmente o tom. Não me é nativa como a visceralmente portuguesa, mas precisamente por estar a meio caminho entre a belga que desconheço e a lusitana que me está entranhada, dá vontade de profundar mais e mais.

Nunca lá fui a feira do livro alguma.

A União Europeia tinha uma secção num dos pavilhões, onde figurava uma imagem gigante da sala do plenário de Estrasburgo, uma imagem com quase todos os atuais deputados e com sinais a indicar que grupo político se senta onde.   



Os 20 deputados europeus belgas tinham direito a fotos maiores, e a senhora responsável pela secção deu-me placas com os nomes deles todos para eu tentar adivinhar quem era quem. Fiquei ainda mais desanimada por ver que nenhum deles me ressoava na memória, muito menos seria capaz de juntar nome e cara. Lá acertei um que me lembrava de ver nas reuniões de igualdade de género no PE, nem tudo esteve perdido.

Saí de lá de mãos a abanar, um niquinho triste pelo sentimento de alienação mas de bons espíritos. Afinal, a experiência foi partilhada com quem mais importa e portanto os risos somados e a tarde diferente pesaram bem mais na balança das experiências. E uma História da Bélgica pode já vir a caminho...



S.  

sexta-feira, 8 de março de 2013

M de quê, mesmo?

Estava preparada para chegar a casa, ligar o computador e escrever um post meio-zangado, meio-irónico sobre tudo o que não é o dia internacional da mulher. Mas depois li isto, pousei a minha caneta virtual e pensei "Caraças, nunca vou conseguir escrever coisa tão aproximada à minha perspectiva deste dia como isto!..." 

Aqui fica, por isso:


Não para todas, felizmente, mas para muitas mulheres este é o dia em que finalmente conseguem aqueles miminhos extra. Terão andado nos últimos quinze dias a fazer referências subtis a pulseiras, anéis, sapatilhas, relógios e até a fins de semana completos nos paraísos da Terra. É o dia em que confirmam que os seus mais-que-tudo não se esquecem delas, seria imperdoável não as recompensarem como deve ser por fazerem pequenos-almoços soberbos com o que não lhes falta no frigorífico, por manterem limpos e saudáveis os filhos que puderam escolher ter, por terem corrido mais de cinco quilómetros por dia e assim terem abatido as calorias dos bombons e outras iguarias pecaminosas que facilmente adquirem numa lojinha gourmet, por conseguirem aguentar o emprego que conseguiram e (apre, que fantásticas!) ainda assim se manterem bonitas, bem vestidas, com o cabelo arranjado e sempre prontas para uma noite de amor.
Outras há a quem bastaria, ainda que por um dia, não serem apedrejadas por pintarem as unhas. Seria um mimo, um grande mimo, uma recompensa por andarem o resto do ano a tentar sobreviver ao inferno. Não podemos mudar isso, é certo, mas podíamos, ao menos, fazer um esforço por não ofender nem insultar com esta opulência em que nos viciámos e que nos tolda as vistas. Calarmo-nos caladinhas e não adulterarmos o sentido e o princípio da homenagem. O dia da Mulher não existe para masturbação. Existe para dignificar. 


De um dos meus blogs absolutamente favoritos: Mãe Preocupada.



S.

quinta-feira, 7 de março de 2013

Filigranes

Ora então, perguntam vocês, o que vai esta feminista fazer no Dia Internacional da Mulher? Nada, respondo eu.

Não é nenhuma ação deliberada, contestatária ou o que quer que seja; simplesmente vou estar a trabalhar (o meu horário laboral entretanto alargou) e não descobri nada para fazer na noite de amanhã. Mas fico muito feliz por ver um grande conjunto de ações de formação e informação sobre igualdade de género, desigualdades salariais, conciliação trabalho-família, violência contra as mulheres, prostituição, inclusão dos homens nisto do feminismo, mulheres nos media, um pouco por toda a parte. Coisas boas vão acontecer em Lisboa, a maior parte pela mão da UMAR, e vi uma conferência interessante que vai decorrer no ISCTE.

A UE, particularmente o Parlamento Europeu, andam numa roda viva de iniciativas para comemorar o dia e para que não nos esqueçamos que ainda só vamos a meio caminho. Hoje foi a grande conferência sobre a igualdade, que já aqui tinha falado, e ainda fui a tempo de participar no chat online em que o presidente da comissão dos direitos das mulheres do PE participou durante uma horita esta tarde.


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Bruxelas este dois dias com temperaturas a bater os 17-18 graus. Eu andei numa espécie de transe sempre que saía à rua, e por não sentir frio. Sabia que iam estar temperaturas de dois dígitos mas não fazia ideia que era assim. Ia-me dando um piripaque quando vi equivocamente o número 17º num mostrador de farmácia, e só não tirei foto para futura referência porque estava montada na bicicleta (ia caindo com o susto). Maravilha de ar, aquela temperatura perfeita, quando não se sente nem frio nem calor, quando não sopra nenhum vento e o céu está azul. Oh, paraíso! Paraíso que entretanto já está a ir embora e a dar lugar a -5º já na segunda-feira. Apetece-me chorar mas recuso-me.

Com esta maravilha de tempo decidi ir ontem visitar uma coisa que me estava encravada já há quase um ano, desde que tomei conhecimento dela: a maior livraria de Bruxelas, a Filigranes. Fui a pé a rue de la Loi abaixo, sem luvas nem gorro, e lá cheguei à dita cuja, onde uma amiga me esperava.

Tem mesmo muitos livros, é o que me ocorre dizer. Muito maior que a parte de livraria da Fnac e muito mais compacta; uma pessoa mal ciranda pelo meio dos corredores de tanto livro por todo o lado. Mas assim é que é: sente-se que os livros estão mesmo ali à mão, não há barreiras invisíveis entre nós e eles, é só esticar a mão e agarra-se num, mexe-se, folheia-se, pousa-se ou não. Livrarias muito arrumadinhas são um ultraje à literatura; uma livraria quer-se é caótica, a abarrotar, com conhecimento que não cabe nas costuras.

                                          

Dá a sensação na Filigranes de que nem há espaço para pôr tanto livro, e portanto há que improvisar mostradores no meio dos corredores, prateleiras por debaixo do balcão de pagamento, puros labirintos de escrita por aqueles corredores fora. 

Gostei do facto de haver um mini-café no centro da livraria, com mesas onde as pessoas se encontram para falar, beber um café ou simplesmente ler umas páginas daquele livro que é mesmo viciante. A Fnac, eu sei, tem isto, mas é a modos que numa parte separada, parece não haver ligação entre uma coisa e outra.




Fiquei mesmo muito contente quando a minha amiga me disse que a livraria está aberta ao domingo porque coisas abertas ao domingo são a raridade das raridades e esta cidade a modos que hiberna todo o Santo Dia. Ganhei possibilidade de novo programa de fim-de-semana: ficar a olhar horas e horas as lombadas de livros, especialmente um expositor particular que tinha centenas de livrinhos de bolso sobre todo o qualquer tema possível. Adoro estas coleções que têm a ambição dantesca de produzir pequenas introduções ao conhecimento humano; é uma promessa enorme ler-se os títulos tão distintos como "A História das Mães e da Maternidade no Ocidente" (estive com este livro na mão para o trazer, mas contive-me), "Direito Canónico", "A Literatura Japonesa", "História das Relações Internacionais desde 1945", ou a "Metapsicologia".

Ao que parece, a Filigranes costuma ter nas prateleiras à entrada livros alusivos a um certo dia que se aproxima ou a alguma comemoração especial. Por estarmos pertinho do Dia da Mulher tinha alguns títulos sobre o tema, um deles sobre a organização Femen, que já aqui falei. Mas foi quando vi este título que até se me arrepanhou a espinha:




Epá... Não. Não vão por aí, a sério. Porque não é verdade, nem é desejável, é puramente sensacionalista. É um bocadinho como aquela música profundamente feminista da Beyoncé, "We Run the World (Girls)"; não runam nada, não vale a pena fingir que sim. É por isso mesmo que se luta; se já runassem não tínhamos estatísticas vergonhosas como estas:



Enfim, eu sei que a controvérsia e o sensacionalismo é que vendem, e aquele livro até pode ter pouco que ver com o título e ser uma tese de investigação muito interessante (ainda assim duvido), mas eu prefiro que uma capa me apele à inteligência, não à emoção.

Hei-de lá voltar porque a horita e pouco lá passada a seguir ao trabalho soube a pouco. E eu não provei a tarte de framboesa.



S.


domingo, 3 de março de 2013

S. versão: dona-de-casa emigra

Há quem ponha no blog compras de roupa nova, bijuteria, cremes e os mais recentes gadgets; eu sou um bocadinho mais triste e emigra saudosista e meto as minhas últimas compras de mercearia.




Mas a alegria deve-se partilhar. E eu fiquei tão feliz por finalmente encontrar a mercearia portuguesa aqui das redondezas aberta e poder trazer estas coisas tão preciosas para as papilas gustativas de dois portugueses na diáspora que não me contive. 

Oh, bacalhau! Oh, polvo! Oh, sal grosso que não custa 4 euros a embalagem! Oh, palmiers (estes, para minha desilusão, são feitos em Espanha, mas hão-de servir)!

Entrei na loja e parecia um boi a olhar para um palácio: tanta marca familiar num sítio estranho! Ele era Nestum, Ruffles, leite com chocolate Mimosa, enlatados da Compal, sumos da Compal, feijão e grão naquelas embalagens de plástico, arroz carolino, Super Bock, Um Bongo, queijo Limiano, chouriços de toda a qualidade e região, leite com chocolate Ucal, bolacha Maria, leite Matinal, bacalhau com fartura, rissóis de camarão, preparado para arroz de marisco, preparado para caldeirada. Só não trouxe potas porque não temos forno senão era já o jantar de hoje. 

Fiquei com pena de não ter tirado umas fotos à socapa, mas a loja ainda era pequena e para apanhar vergonhas prefiro apanhá-las só virtualmente, obrigada. E tenciono lá voltar.



S.  

sábado, 2 de março de 2013

Media, é assim mesmo #1

Bom, então o que tem a Brave de tão especial?

O que eu sabia antes de ir ver o filme era que tinha uma rapariga ruiva como protagonista, empunhando um arco, e que supostamente era diferente dos filmes habituais da Disney. O nome tornou o tom do filme óbvio mas o facto de ser sobre uma personagem feminina - ainda por cima, ruiva*! - suscitou a minha intenção de o ver. Tive-o no computador durante algum tempo e foi só quando me apercebi que a história se passava na Escócia, e para além disso, falada toda ela no sotaque tão característicamente escocês, é que me decidi a vê-lo de uma vez por todas.




Depois de parar de sorrir estupidamente e me habituar ao tão raro de ouvir na TV inglês de pronúncia escocesa, concentrei-me na história e liguei o descubra-o-estereótipo. Mas desta vez, e porque já ia precavida que era um filme original, o descubra-o-estereótipo estava de pernas para o ar, ligado em descubra-a-originalidade. E agora vou tentar explicar como a Brave bateu o record neste novo jogo tentando ser o mais cuidadosa possível para evitar contar o que acontece na história.

O que mais me surpreendeu neste filme, e suspeito que isto seja uma coisa que a Disney tem vindo a aperfeiçoar ultimamente, foi a qualidade dos detalhes. Não falo apenas da animação, embora quanto mais atenta ao detalhe for mais agradável se torna, mas sim dos pequenos quirks que as personagens deste filme têm. As personagens não são mais só más ou só boas, como acho que já não o eram há uns anos. Mas a Disney na Brave vai mais longe e introduz características subtis nas ações e personalidades das personagens que as faz parecer complexa e contraditoriamente humanas. A sério: enquanto o filme se desenrolava eu só pensava que quanto filme "real", com pessoas verdadeiras em vez de desenhos animados, eu já tinha visto que eram tão pior conseguidos que este. Bolas, todas as personagens das novelas portuguesas e brasileiras são unidimensionais comparadas com as personagens do Brave! Para mim esta é a marca de um grande filme e o que o caracteriza como bom ou mau. Tenho cada vez menos paciência para coisas flat no grande ou pequeno ecrã. E não estou a falar de filmes em 3D; para os efeitos visuais estou-me pouco lixando. São as personagens quem conduz a história e quem faz o filme.

Bom, então dizia eu que a Brave tem este grande traço de originalidade transversal a todas as suas personagens. Isto faz com que não só se torne interessante e desafiador ver o filme, ainda que feito a desenhos, como torna o enredo difícil de adivinhar. A personagem principal não é também a típica menina rebelde, do género adolescente que diz "não" só porque o pai ou a mãe diz "sim". Tem todo um conjunto de quirks muito subtis que a tornam quase humana, e, ainda que definitivamente corajosa e ativa, não seja a pura rebeldia em pessoa. Também não existe, como eu temia, uma espécie de antagonista a esta personagem que seja a má; sim senhora, há uma rixa entre a Merida e a mãe, mas a própria mãe tem uma série de subtilezas que a impedem de se caracterizar na puramente rígida figura autoritária parental.

Duas outras coisas que fizeram este filme um dos mais originais que vi ultimamente:

1. A relação mãe e filha é central ao filme todo. Pela primeira vez desde, er... eu arriscaria "sempre", temos um filme de desenhos animados com duas personagens femininas como personagens principais. Lembrai as categorias de personagens-tipo femininas que eu fiz há uns posts atrás: nenhuma delas se encaixa. A mãe não se encaixa na personagem-mãe típica porque não é nem self-effacing nem serve de bengala à filha; está antes par-a-par com esta, tem personalidade complexa e própria e é essencial à trama. As duas têm uma relação mãe e filha cheia das contradições e incoerências próprias das relações mãe e filha reais. 




Ah e ela também não tem uma família disfuncional, do tipo justificação para ser espigadota; é tudo gente fixe e cada um com a sua pancada, o que torna o enredo divertido mas plausível.




2. Continuando nisto da personagem-tipo bengala, a Merida também não serve de bengala a personagem masculina nenhuma. Confesso que no meu subconsciente estava sempre à espera de ver surgir na tela o "príncipe encantado", o amigo, pelo menos, que a ajudaria a desenvencilhar-se da trama da história e que inevitavelmente selaria o final feliz. Eu tinha ouvido dizer que a Brave era original mas podia ser só por ser corajosa. E nisto das representações eu aprendi a ter as expectativas baixas. Mas quanto à personagem príncipe-encantado, nada. Nicles. Nem o cavalo, que aqui era o mais próximo de amigo que se poderia apontar a ajudou a desenvencilhar-se das coisas assim por aí além.  




Depois há os bónus: os que já falei sobre o sotaque escocês e as paisagens constantes das Highlands, a história ser contemporânea dos contos da Juliet Marillier que eu costumava ler, se ouvir constantemente folclore escocês e os irmãos dela a um ponto estarem a brincar com haggis :D Ah, e tem um bocado de magia, como não podia deixar de ser, e para se poder qualificar como um conto de fadas.

Conto de fadas mas, por tudo o que expliquei, conto de fadas original acima de todas as minhas expectativas. Se a Disney continuar nesta linha vai certamente redimir toda a clichézada que tem na sua história de princesas.

Um grande thumbs-up à Merida ;)






S.


* O ser ruiva por si só não lhe acrescenta nada de originalidade em termos de personagem feminina Disney - a Ariel é ruiva, atenção. É só mesmo porque eu tenho um fascínio por ruivez, um fascínio um bocado aleatório e impossível de explicar. Por isso para mim ela já tinha ganho pontos antes de ver o filme :D

Disney redimida

Por falar em representação de mulheres nos media: Disney. A Disney deve ser uma das marcas mais conhecidas e amadas no mundo inteiro. Há muito que deixou de ser apenas uma empresa de filmes de animação; desconfio mesmo que hoje em dia o filme anual de desenhos animados que a Disney lança seja apenas o pau de lenha com que atiça a enorme fogueira do seu sucesso. Ou seja, é apenas o que inicia uma nova explosão de peluches, bonecos, fatos de mascarar, copos, toalhas, canecas, pijamas, canetas, mochilas, babetes, legos, etc, etc. Toda a parafernália de merchandise que toda a gente que já visitou uma loja da Disney sabe. Um novo filme de animação gera também novos bonecos, diversões temáticas e desfiles para acrescentar em todo o parque que a Disney tem espalhado pelo mundo. Resumindo e concluindo, a Disney é uma mega-marca mundial que gera milhões e milhões todos os anos, e que é hoje muito mais do que os filmes.

E o que é facto é que a Disney deve ser das marcas mais bem-amadas deste mundo: não há pessoa que eu conheça que não goste dos filmes da Disney, que não olhe para aquele castelo branco sobre fundo azul com olhos sonhadores e um sorriso estúpido nos lábios, e que sinta uma nostalgia da infância a descer sobre si. Mesmo quando a pessoa em causa não cresceu com aqueles filmes; em Portugal, pelo menos, só as crianças de finais da década de 80 - eu incluída - é que cresceram a ver os filmes da Disney. Isso não impede que pessoas da geração dos meus pais amem os filmes da Disney menos do que nós. Só aqui está bem refletido o sucesso da Disney em associar-se com a própria ideia de infância: até pessoas que não a tiveram durante os seus anos de criança a associam fortemente a essa fase da vida. 

Eu, estando ciente de todo este poderio de marketing e da máquina geradora de milhões, culpada me confesso: adoro a Disney. A minha evolução nos anos foi proporcional com o número de cassetes de vídeo da Disney que eu tinha, passei boas horas da minha infância colada a um ecrã a ver os mesmos filmes repetidamente, a primeira máscara de Carnaval que me lembro era da Branca de Neve, o primeiro filme que vi no cinema foi o Rei Leão, sei-lhe as falas todas de cor, e continuei a acompanhar os filmes da Disney - ainda que intermitentemente - durante a minha adolescência e idade adulta. Apetece-me dar gritinhos de histeria sempre que entro numa loja Disney e começo a ver peluches do Bambi, da Nala, do Nemo, do Timon, da Marie, do Sebastião. O meu primeiro gato chamava-se Tulose em honra ao gato mais rebelde dos Aristogatos e - confesso com vergonha - fiz um dia uma jura de quando tiver um filho (e for rica, só pode) só o vestir com as roupas mais-que-fofinhas para recém-nascido que se vendem nas lojas Disney. Entretanto, e em minha defesa, voltei a pôr os pés na terra e deixei-me de parvoíces. Acho que o facto de se pôr o pé fora dessas malditas lojas ajuda; aquilo a modos que droga uma pessoa e faz-nos alucinar e jurar estas coisas absurdas.

Entretanto, comecei a ler sobre estas coisas da representação de mulheres na TV, nos filmes, nas revistas, nos anúncios, e a chama-Disney foi-se apagando um bocado. Numa rápida pesquisa mental sobre as histórias Disney duas personagens (e aqui nem são personagens-tipo, são mesmo personagens dos filmes, tal e qual) aparecem distintivamente: a princesa em apuros e o príncipe encantado. Convenhamos: esta é uma dualidade que está tão enraizada na cultura ocidental que até na lógica das relações entre os dois géneros ela se entranha. Não foi a Disney que a inventou, é bom que seja esclarecido. Cheira-me que esta dualidade vem do tempo dos trovadores, dos castelos e das conquistas, dos reis, príncipes, cavaleiros e princesas, dos vestidos longos de veludo e do tempo das trevas (vulga Idade Média. Uma professora de história do liceu tentou provar-nos que a Idade Média não tinha nada sido idade das trevas como por vezes é apelidada, que não tinha nada sido uma época de estagnação ou mesmo de retrocesso no conhecimento, isto por causa dos mosteiros e dos monges que copiavam os livros e porque tinha sido na Idade Média que se inventaram os óculos (??). A mim nunca me convenceu. Entalada entre a época Clássica dos gregos e romanos e o Renascimento, com as suas descobertas do mundo, da matemática, da física e da astronomia, a invenção dos óculos torna-se risível.). Vem da altura em que os homens e as mulheres tinham papéis muito bem distintos e definidos, segregados, e com diferenças extremamente exacerbadas. As mulheres queriam-se passivas, dóceis, puras, os homens queriam-se valentes, ativos, corajosos. O casamento era a salvação da mulher e a sua máxima aspiração; daí que todos os contos de fadas acabem dessa forma, o final feliz que não é mais que a abençoada paz matrimonial.

Pensem em todas as personagens femininas disneyanas: essa tropa de princesas de sorriso sonso e muito cor-de-rosa que invade os corredores das lojas de brinquedos, secção menina. Personagens tão unidimensionais que nem a grande diversidade de cor de cabelo, cor de pele e vestidos consegue disfarçar o facto de serem todas uma só. O argumento que os defensores da Disney atiram é que filmes como a Branca de Neve e os Sete Anões, a Bela Adormecida, a Cinderella e afins são todos muito antigos, feitos numa época em que as mulheres tinham outros deveres e a única expectativa era que agradassem ao seu futuro marido, fossem boazinhas e não levantassem a voz. Hoje os filmes da Disney já são um bocadinho diferentes, já há Mulans que salvam a China e Pocahontas que ficam na sua terra junto do seu povo enquanto o seu amor parte para Inglaterra. 

Certo, é verdade que a Disney tem as suas heroínas que fogem ao estereótipo da dama indefesa. Mas é das suas princesas que a marca mais lucro tira. Ainda há poucos anos a Disney criou as "Princesas Disney", um sub-merchandising que junta todas as princesas de personalidade mais diluída e as transforma em "amigas" das meninas apanhadas de surpresa, sob a forma de diários (o que elas possam ter de interessante para contar sobre as suas vidas pós-casamento-com-príncipe-encantado supera-me), fatos de Carnaval, roupa cheia de lantejoulas, kits de maquilhagem, varinhas mágicas carregadas de brilhantes, muita boneca tipo Barbie, e muito, muito cor-de-rosa. Isto, muito honestamente, faz-me ter pavor perante a ideia de vir a ter uma filha.


E a Ariel é quem mais odeio, porra. A gaja é uma sereia e mete-se em drogas para ficar humana, só porque um homem com quem ela nunca falou na vida é giro e tal. E depois abandona o seu mundo, o pai, as irmãs e os amigos para ir viver com o camafeu. A Pequena Sereia: a ensinar desde 1989 a todas as meninas que por um homem se deve abandonar não só tudo o que temos e quem mais amamos mas também - e literalmente - QUEM somos. Ela era uma sereia e transformou-se em humana para poder viver com o seu amor. Todo o sacrifício é pequeno para agradar a um homem. 

Mesmo tendo em conta a Mulan, a tal heroína da Disney que se disfarçou de homem para tomar o lugar do pai doente no exército e acabou por salvar a vida do seu capitão e da própria China, já depois de ter sido descoberta como mulher. Bad-ass, sim senhora. Dizem-me também que o Entrelaçados é um bocadinho assim, uma espécie de twist ao conto da Rapunzel e cuja personagem principal não é a típica princesa submissa e dócil. Ou o Rei Leão II, cuja história se centra na cria do dito cujo, a Kiara, e também é uma princesa rebelde. Mas ainda assim, há sempre qualquer coisa de repetitivo nestas histórias: tudo tem que acabar num apaixonamento e consequente casamento. Ou seja, não importa o quão rebelde ou ousada a personagem feminina tenha sido, a sua história só é validada na medida em que acaba bem - e aqui o acabar bem é a eterna felicidade conjugal. Sabe a pouco. Reparem que com personagens principais masculinas isto não é assim; o Toy Story, por exemplo, não tem por base nenhum apaixonamento nem casamento. É apenas a história de dois brinquedos rivais e depois amigos e a fidelidade ao seu dono.




Foi por isso que quando hoje me sentei finalmente a ver o Brave (ou devo antes dizer "a" Brave), o último filme animado da Disney, e aquilo ia superando as expectativas que eu tinha para filme-de-Disney-que-quebra-os-estereótipos-de-personagem-femina a cada minuto que a fita rolava, eu decidi exclamar: "Disney, estás perdoada!". E porque este post já vai longo e o meu rant sobre a Disney foi mais comprido do que eu esperava, aproveito para inaugurar uma nova rubrica chamada "Media, é assim mesmo". O primeiro post é sobre a Brave e vem já, já a seguir. Tenho mais uns quantos já esboçados mas ideias e sugestões sobre personagens, filmes ou programas são muito benvindas ;)




S.