sexta-feira, 27 de abril de 2012

O outro lado do passeio

No meu caminho para o trabalho e do trabalho para casa, todos os dias, sigo sempre pelo mesmo lado da estrada. Pela simples razão de que o caminho é sempre a direito. E eu sou agarradinha à rotina como lapa, à mesma maneira de fazer as coisas repetidamente. E como de manhã é cedo e está frio e eu tenho sono, é mais fácil ligar o piloto-automático e deixar os pés seguirem a rota pré-definida.

Mas hoje, pela circunstância de um carro atravessado no passeio, vi-me obrigada a atravessar a estrada e a mudar-me para o outro lado. E tenho de confessar que só aí me apercebi de que nunca tinha feito o meu caminho daquele lado da estrada. Porque de repente tudo parecia diferente. Descobri um gabinete de um psiquiatra, dois apelidos portugueses em campainhas e um gato cinzento a olhar-me com altivez através de uma janela.

E um pouco mais à frente, quase ao final do caminho, uma vista que me elevou o coração: um cachorro preto, felpudo, conduzido à trela por uma senhora. E porque tinha mudado de passeio, e porque o cachorro recusou-se a andar assim que viu uma pessoa-potencial-fonte-de-mimos, os nossos caminhos cruzaram-se. "Faço festa, não faço; faço festa, não faço" foi a luta interna que me acompanhou enquanto me aproximava daquela criatura maravilhosa e tão criança-canina. A minha decisão efémera de "Não faço, tinha que pedir, não me ocorre como se diz 'Posso?' em francês..." caiu por terra assim que passei por ele e vi aqueles olhos negros cheios de alegria por anteciparem festas de um humano. Lancei um olhar à dona que me abriu um enorme sorriso e cujo "Bonjour!" muito bem-disposto me poupou um "May I?" por não me ocorrer mais nada. Sorri-lhe em agradecimento, agachei-me e corri as mãos sedentas de contacto com o pelo de um animal (e este era bem felpudo, que maravilha!) e matei as minhas saudades caninas. Ele lambia-me as mãos, abanava o rabinho daquela forma desengonçada de cachorro, louco de felicidade como só os da sua raça mostram para connosco, humanos. O mais engraçado foi que não lhe consegui murmurar aquelas palavras totós que se murmuram aos animais porque só me ocorria "És tão lindo! Ai, coisinha fofa! Que fofinho!" e, apesar de derretida, só pensava "Não vais dizer isso, isto é um cão francófono..." Wtf!? Eu sei. Lá consegui controlar a minha vontade de ficar a dar festas o resto da tarde - a dona estava à espera, afinal - e exclamei um "C'est très joli!" bem sentido e graças aos anjinhos achado a tempo e continuei o meu percurso pelo lado novo do passeio.

Isto tudo para dizer que às vezes basta darmos uns passos para fora da nossa zona de conforto (no meu caso, literalmente) para termos surpresas agradáveis à nossa espera.

Era tipo assim:


Pensando bem, acho que teria atravessado a estrada a correr assim que o visse para ter que me cruzar com ele, de qualquer das formas.




S.

2 comentários:

  1. Acho que todos somos assim... seres de hábitos que se entranham... e o hábito cega-nos. Deixamos de ver o que existe à nossa volta.

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  2. Sem dúvida! Mas acho que devemos combater essa preguiça rotineira, sob pena de deixarmos de apreciar o dia-a-dia.

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