quinta-feira, 5 de abril de 2012

A solidão é solitária

Já não sei estar sozinha. Acho que lhe perdi o jeito.

Em Londres eu sabia muito bem estar sozinha. O meu horário reduzido de aulas e o trabalho exigente do D. fizeram com que eu passasse muito tempo em casa, contente de volta das tarefas domésticas que eram minha obrigação pela primeira vez, a dar um pulinho à High Street, ir ao banco, ir ao supermercado, ir à Primark bater palminhas aos preços impossivelmente baratos. Palmilhar a cidade na companhia exclusiva de mim mesma. Ao final da tarde, ele chegava a casa, e o sentimento de lar instalava-se; as horas solitárias do dia eram agradáveis porque temporárias. E porque eu sempre gostei muito da minha companhia.

Em Portugal tinha o contrário, horário a rebentar pelas costuras, tempo passado a trabalhar em vários sítios diferentes com pessoas diferentes, sempre com companhia. À noite e aos fins-de-semana lá estávamos nós dois, e se não estávamos, a proximidade dos pais, avós e um Luky a dormir ao tapete nunca deixava espaço para solidões.

Aqui, tenho permanente companhia: no escritório com colegas, ao fim da tarde e fins-de-semana o D. 

Não admira pois que uma solidão, ainda que de poucos dias, me pareça estranha. À boa moda do Luky, eu aproximo-me dela, cheiro-a e torço o nariz por não a achar familiar. Ainda que tenha por ela uma espécie de amor-ódio. Enquanto caminhava para casa depois do trabalho (sim, estou-me a aguentar estoicamente neste meu novo hábito, quem diria...) ía enumerando entusiasmada todas as coisas que podia aproveitar para fazer em casa estando sozinha: aproveitar o silêncio para me embrenhar a fundo na leitura, ver episódios de Downton Abbey em modo contínuo, limpar a casa de alto abaixo, estudar muito muito muito para o exame que se aproxima...

Mas depois uma pessoa chega a casa e não está cá ninguém. Os estores estão corridos e a sala está na penumbra. Silêncio. Nenhum movimento fora o meu. Ninguém com quem dividir a baguete quentinha acabadinha de comprar.

Ainda por cima a cidade está meio deserta, já a hibernar para o fim-de-semana prolongado de Páscoa. A caminho para o trabalho quase não vislumbrei vivalma; as duas escolas por onde passo estão fechadas para férias. Menos gente na rua, no trabalho, menos carros. A minha colega de escritório doente e a minha supervisora de férias. Cidade e Parlamento a meio gás.

Ao que a tudo isto se soma a ansiedade a borbulhar cá dentro quando sei que ele está em viagem. A transitar de um lado para o outro. Eu juro que não era assim; não me lembro de momento em que ganhei esta paranóia estúpida e irracional de entes queridos em viagem. Sei que há cerca de dois anos, quando o D. embarcou para Londres uns meses antes de mim, eu passei o dia todo agitada. Estava no meu trabalho de verão e lembro-me perfeitamente de ter aberto um site daqueles que mostram o percurso dos aviões em direto e estar constantemente de olhos presos na figurinha minúscula do avião por cima do mapa imenso da Europa. Desta vez não deu porque a viagem foi de expresso. Ainda que a possibilidade de mandar mensagem de vez em quando tenha atenuado a paranóia.

Dei o desconto de na altura ser por causa da grande mudança, do lançamento um bocado às cegas que foi a ida dele para lá, a incerteza de se tudo iria correr bem. Mas ele depois veio (foi! não é veio... por mais mudanças o compasso geográfico nunca muda, caraças) a Portugal. E eu passei outro dia com o nervosismo a borbulhar no peito, daquele chato porque não dá para acalmar visto não ter razão lógica. Ainda pensei que tivesse que ver com aviões - tenho uma irritação e nó no estômago cada vez maior quando preciso de utilizá-los - mas hoje veio confirmar que não. Também se aplica a autocarros. Se bem que hoje foi misto de ansiedade com excitação a fazer as contas mentalmente tentando imaginar quando é que ele passaria o Túnel da Mancha. Parecia uma criança: "Já chegaste? Já chegaste? Já chegaste?" Quando me informou que já estava em solo londrino abri um sorriso do tamanho do mundo, de alívio misturado com alegria por tê-lo a ele em Londres - devo pensar que estas coisas se transferem por osmose...

Por isso concluo: estar sozinha num lado qualquer é aborrecido. Desamparador. Tenho muita mania de achar que amo a vida de emigrante, que me abre o espírito e me desperta os sentidos mudar de cidade e de país, mas a verdade é que eu não aguentava aqui sozinha uma semana. E que portanto a companhia, o apoio emocional nas banalidades do dia-a-dia, a partilha da descoberta de novos lugares e as duas escovas de dentes na casa de banho não são para ser tomados como garantidos ou trivializados; se não fossem eles sei perfeitamente que não estaria aqui.




S.

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