Quando, há umas semanas, o D. me diz: "Dia 14 vou ver o Benfica a Leverkusen", a minha primeira reação foi "Está bem." Mas depois lembrei-me: "Espera lá, dia 14 é Dia dos..."
"A sério? Vais ao estádio no dia dos namorados? Numa saída de amigos? Quão cliché é isso, pá?"
Mas depois lembrei-me das minhas raízes feministas, e que mais cliché do que ir ver bola com os amigos no Dia dos Namorados é ser a namorada que fica aborrecida com isso, por isso esta foi a minha verdadeira reação:
Entretanto, andava a matutar sobre que iria fazer no Dia da Mulher que se aproxima. Há um ano, graças ao estágio no PE, estava em lugar privilegiado para assistir a todas as conferências e mais alguma sobre o tema. Precisamente no Dia da Mulher, tive a oportunidade de assistir a um debate muito interessante sobre a igualdade salarial entre homens e mulheres na UE. Por isso, e como sei que a as instituições europeias são devotas à igualdade de género, a primeira coisa que me ocorreu foi ir pesquisar o que o Parlamento Europeu tinha agendado para este ano.
Em caminho descobri a campanha do One Billion Rising. O título baseia-se na estimativa de que uma em cada três mulheres será, algures durante a sua vida, violentada, abusada ou violada.
Uma em três.
Isto traduzido em números dá 1 bilião. Não sei o que dá melhor compreensão da extensão do flagelo da violência contra as mulheres, se o número 1 bilião ou se a fração 1 em 3. Uma coisa é certa: são demasiadas.
Pelo que consegui saber, o Lóbi Europeu de Mulheres - aka o meu sonho de emprego - estava a organizar uma flashmob no dia 14 de fevereiro ao fim da tarde em Bruxelas como parte desta campanha mundial contra a violência contra as mulheres. Havia ensaios de coreografia e tudo, e todo um código de vestimenta para participar nessa mobilização.
Quatro coisas conspiraram para que eu considerasse que essa flashmob puderia ser o serão perfeito para o meu Dia de S. Valentim:
1. Estava de folga àquela hora naquele dia;
2. Assim como assim iria estar sozinha em casa sem nada de especial para fazer;
3. Preciso de ter uma vida social e societal mais ativa nesta cidade, porque só assim me consigo integrar;
4. Preciso de ter uma vida social e societal mais ativa no que diz respeito aos direitos das mulheres, porque só assim consigo conhecer pessoas que partilham a minha visão e os meus interesses e os desenvolvo. A Beauvoir é boa companhia mas também preciso de conviver com gente viva.
Uma coisa conspirou para que a flashmob ao ar livre se tornasse uma má ideia:
1. O tempo.
Depois da hora do almoço começou a chover e no meu boletim meteorológico habitual até figurou um novo tipo de tempo: freezing rain. E que é freezing rain? Portanto, não é neve, não é chuva normal, também não é granizo... O que é? Pode-se sempre contar com Bruxelas para inovar no que aos códigos de meteorologia diz respeito. Comecei a temer que a chuva estragasse os meus planos de manifesto feminista.
Decidi ir. Está a chover, que se lixe. Se não fizer nada porque está a chover bem que posso ficar todos os dias em casa. E se está 1 grau, veste-se mais um casaco e siga.
Quando cheguei à Place Monnaie, o ponto de encontro da campanha e onde iria acontecer a dança, fiquei surpreendida com a quantidade de pessoas. Não estava à espera de ver a sala tão composta:
A minha postura demasiado auto-consciente e mais passiva do que gosto de admitir, levou-me a instintivamente procurar um lugar de observadora, e por isso fugi lá do meio e fui-me posicionar estrategicamente entre as colunas do edifício (também queria estar numa posição privilegiada para fotografar e filmar, confesso).
Entretanto, a música começa e o pessoal começa a coreografar:
Não conhecia os passos, mas a beleza das multidões é que se apanha o ritmo instintivamente, e começa a tornar-se impossível ter os pés quietos. Isso e o frio; não há nada como tirar o pé do chão para evitar que um membro nos caia, de dormente que está.
Foi muito inspirador. E superou as minhas expectativas. Não tanto pela música e pela flashmob propriamente dita, os pretextos para o ajuntamento e o grito de revolta, mas pelos pequenos detalhes que vi: as amigas que vieram juntas e que gritaram mais que todos os outros; os cartazes contra a violência; a mãe que levou a filha de um ano e que encorajava a bebé a dançar ao meu lado, e que foi bem sucedida (mais uma prova de que o ritmo de multidões a dançar é contagiante) e que me trouxe lágrimas aos olhos, porque sim senhora, de pequenino é que se torce o pepino, e assim é que é, educar a filha a ter orgulho em ser mulher, sem ser apenas no mais banal da aparência; na velhota de fartos caracóis loiros que entretanto apareceu lá no meio a bambolear e a curtir a música como as raparigas de 20 anos, e que me levou a um grito interno de "Quando eu for grande quero ser assim!"; os homens que apareceram e que se juntaram ao protesto, numa posição de respeito pelas mulheres da sua vida.
Entretanto a flashmob acabou, começou música para animar e aquecer o pessoal ("Vous êtes CHAUDS?" Então não estamos, senhora apresentadora...) e eu decidi sair do meu poleiro e ir mirar as barraquinhas com informação sobre a campanha. Uma senhora entregou-me isto:
Nada mais nada menos que um panfleto sobre aulas de defesa pessoal, defesa verbal, e grupos de auto-ajuda e aconselhamento sobre como as mulheres se podem sentir mais seguras. Quão bad ass, meu deus!
Isto fez-me lembrar um argumento que a Beauvoir faz n'O Segundo Sexo, sobre a relação entre a passividade a que são devotadas as mulheres e o seu sentimento de fragilidade e insegurança. Segundo ela, é necessário que as mulheres participem em atividades físicas, não lhes seja travado o impulso de subir às árvores em criança, de correr, de saltar, de puxar o limite dos seus corpos. Só experimentando o corpo, mexendo-se e raspando joelhos é que a mulher, tal como o homem, ganha consciência do que é capaz, e que as suas conquistas físicas e a boa relação com o seu corpo lhe dão a auto-estima necessária para dizer na sua vida: "Eu sou capaz" e a colocar-se a si própria objetivos mais altos. Eu vou desconfiando que ela tem razão.
Sem saber muito bem como nem porquê, dei por mim no meio da multidão, e a mexer o pé devagarinho. Passados cinco minutos era ver-me aos saltos como uma maluca, a dançar como raramente aproveito, e com um sentimento de irmandade a invadir-me os sentidos. Fala-se tanto da rivalidade entre mulheres, e como as amizades entre raparigas são sempre tão cheias de intrigas, e como é tão difícil trabalhar com mulheres porque são umas cabras umas para as outras, que foi mesmo bom sentir e presenciar a refutação desse mito: o que ali vi foi mulheres a partilharem a felicidade genuína e o sorriso fácil que vem da dança e do mexer o corpo sem qualquer propósito que não o da diversão: sem o propósito de agradar, sem o propósito de seduzir ou sequer rivalizar. Mexer ritmadamente e ao som de música dançante simplesmente porque é divertido.
Fiquei parva comigo mesma; estava a gostar genuinamente de estar ali a dançar!... De notar que eu fujo da discoteca e da noitada como o diabo da cruz. Fez-se mais uma vez a flashmob e eu entrei rapidamente na coreografia, no meio da multidão e sem qualquer preocupação no mundo.
A sessão de anti-self-consciousness fez-me definitivamente bem à alma.
Agora estou aqui sentada no sofá, no quentinho e no silêncio do lar, de pernas dormentes porque levaram dose puxada de abuso hoje - para além da caminhada habitual de commuting de uma hora, ainda me levaram até à Place Monnaie e aguentaram uma hora a pular como se não houvesse amanhã. Mas estou satisfeita, de sorriso nos lábios e com vontade de me envolver em mais coisas destas. Que venha o dia 8 de março!
S.
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