segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

O patriarcado tira-me o sono - literalmente

A minha madrugada foi difícil. Voltas e voltas na cama tentando adormecer e falhando miseravelmente, devido a um misto de não-sono e cabeça a fervilhar. Teria passado melhor o meu tempo a ver os Óscares (e daí talvez não - sou só eu que acho um ultraje que o Argo tenha ganho melhor filme? Que duas horas tão olvidáveis de filme, que coisa tão somente razoavelzinha, credo).

Tenho sempre as minhas melhores ideias antes de adormecer. Como a noite anterior foi propícia à insónia, do ponto de vista das ideias foi muito frutífera. Esbocei todo um post na minha cabeça sobre a representação da mulher na televisão portuguesa, que envolvia alguns filmes norte-americanos que vi há pouco tempo, mais o Vale Tudo, o Odisseia e o Preço Certo. Entretanto, o sono passa por uma pessoa e esvazia-lhe a cabeça de todas as ideias brilhantes e fica antes esta amostra de post. Mas como se diz na loja: "Olhe, é o que há."

Desde que comecei a ler noutras áreas da igualdade de género que não a académica conciliação trabalho-família que a indignação cresce. A ignorância é mesmo uma benção. Fiquei especialmente indignada desde que assisti a uma conferência extremamente informativa e assustadora sobre a over-sexualisation of girls, na qual fiquei a saber que há um número cada vez maior de raparigas a verem o lap-dancing como uma boa profissão, muito porque o que se celebra nos media é o sex-appeal das mulheres, seja em anúncios, programas de televisão, concursos, filmes, jogos de vídeo, revistas. Que todas estas mensagens, uma aqui, uma ali, mas num fluxo constante, todos os dias, as faz associar o seu valor-próprio ao serem sexualmente atrativas.

Não quero enveredar pela questão de quem tem a culpa: se são os paizinhos, se é a televisão má, se são as revistas cor-de-rosa, se é a cabeça oca característica da adolescência - até porque todos, se bem que uns em maior grau que outros, têm a sua dose de culpa. Mas com isto tudo arranjei um jogo novo: descubra-o-estereótipo.

É muito divertido. Passa primeiro por observar os diferentes tipos de formas simplistas com que as mulheres são representadas nos media (vamos focar na TV e cinema). Vou já adiantar um mega spoiler: não são muitas. Ui, disto é que não estavam à espera! Normalmente há:

- a histérica/neurótica, que tem muitas variantes (mãe-histérica, namorada-neurótica, são exemplos), e é muito frequente nas rom-coms hollywoodescas;

- a sedutora, que não serve outro propósito no filme que é estar ali, servir de fantasia aos atores principais e ser um pretexto para as peripécias em que estes se envolvem. É também frequentemente apenas uma espécie de bengala às qualidades do ator principal, assim uma espécie de prémio que este conquistou por ser tão esperto/bonitão/charmoso/astuto (coughJamesBondcough);   

- a virgem, a inocente, a pura, que contrasta fortemente com a sedutora e que merece tudo de bom deste mundo e do outro. No entanto, e especialmente nas comédias de adolescentes, serve o mesmo propósito em relação aos atores principais;

- a mãe, muito semelhante à virgem mas de características dóceis, maternais, self-effacing. Nunca vale por ela própria e é muitas vezes também uma personagem-bengala para outra bem mais importante.

É mais ou menos isto. Claro que estas são personagens-tipo, estereótipos, e normalmente os senhores cinematógrafos conseguem meter uma ou outra variante que tenta dar um toque de originalidade à personagem que, pensam eles, acabaram de inventar. É tentar tapar o sol com uma peneira. E é risível o número de vezes que estas personagens-tipo aparecem e re-aparecem depois de se lhes soprar a camada muito fininha de perlimpimpim de originalidade que tinham. Chega a ser um bocejo.

Por isso ando sempre à cata de filmes, livros, programas e histórias que representem personagens femininas de forma original. Para não me arrancarem fortes bocejos, ou rangeres de dentes demasiado sonoros. O que é curioso é que normalmente encontro-os onde menos espero. E acho que isto agora tinha tudo para dar para rubrica, do género: eu metia aqui de vez em quando um livro ou filme ou série ou programa de TV que tivesse apanhado, e apontava-lhe o dedo envergonhador-do-cliché-feminino, ou aplaudia de pé a originalidade da representação de uma rapariga ou mulher qualquer. Porque tenho-os encravados na garganta aos molhos.

Ontem durante a insónia tinha uns quatro ou cinco programas muito bem explicadinhos na minha cabeça, com argumentos demolidores muito bem alinhavados e tudo; hoje só vejo umas sombras. Mas, bom, lembro-me que um era o Odisseia (e não, nem pensar que vou para a Casa dos Segredos. Demasiado explorado - em muitos sentidos).

Ora bem, o Odisseia. O Odisseia tem a fama - e ganhou-a muito antes de estrear, por ser o novo bebé do Bruno Nogueira - de ser um programa de humor inteligente, muito à frente e muito diferente do resto. E normalmente, é. Já me arrancou boas gargalhadas, é uma meia-horita bem passada; mas sinceramente também já me arrancou muitos bocejos e muita sobrancelha erguida. Mas foi desde que o apanhei com o pé na argola à terceira vez que me encolhi como quando se ouve uma unha a riscar um quadro de ardósia. Então não é que os sacanas conseguiram enfiar as três personagens femininas principais em duas personagens-tipo tão perfeitinhas que chega a ser doloroso jogar ao descubra-o-estereótipo?  A primeira foi a Rita Blanco que, admito, de personagem tão extremamente neurótica tornou-se ridicularmente mas brilhantemente desenhada. Aí estava o tabuleiro de jogo arrumado porque seria a exceção à regra, de uma história até aqui estereótipo-free. Mas depois foi as raparigas-fãs que apareceram e que serviram para o BN achincalhar em apenas uma ou duas linhas de texto, a ex-mulher a chatear o maridão em férias porque decidiu partir numa viagem sem rumo nem duração definidos, tendo dois filhos pequenos (o que eu gostava de ver uma mãe fazer isto...! - a sério, estou a dizê-lo sem sarcasmo nenhum: gostava de ver um filme onde uma data de mães partiam numa road-trip porque a maternidade e os diktats de mulher-perfeita tinham-nas feito dizer "basta! preciso de um intervalo". Isso é que era original...), ou aquelas duas ou três raparigas que apareceram apenas para participar na orgia, e que depois aparecem no barco deles meias-nuas e que mal abriram a boca para falar. Só para sorrir, claro está. Concedo: a parte da novela mexicana foi original e deu para gargalhar, mas logo a seguir veio o grande plano do Nuno Lopes a beijar as bochechas do rabo da Joana Duarte e a mandar uma piada qualquer enquanto ela se ia embora e eu fiz o segundo maior facepalm da vida. "A sério, Bruno Nogueira? A sério?". Se bem que não foi completa surpresa nem out-of-character, esta linha de enredo - afinal eu oiço o Tubo de Ensaio regularmente e, oh se eu ganhasse um euro por cada vez que ele chamou gorda à Merkel ou fez crónicas com a palavra balofa incorporada. Foi apenas uma desapontante constatação. 

Depois temos o Vale Tudo, bem mais popularucho, de humor fácil, dirão muitos, mas que supreendentemente me diverte mais que os episódios da Odisseia. Não está isento de estereótipos - numa palavra: Luciana - e o número de piadinhas brejeiras tem uma correlação positiva com as vezes que o João Ricardo abre a boca. Mas tem jogos de mímica divertidos, histórias inventadas no minuto cuja comicidade varia com a espirituosidade de quem nelas participa, e mulheres participantes witty e originais. Foi uma grande surpresa, acrescento. Dá-me é sempre uma grande tristeza por não ter acompanhado o 5 Para a Meia-Noite na altura em que a Filomena Cautela o apresentava.

Chega por hoje. Ainda queria falar do filme 7 Psicopatas e um Shih-Tzu, e do Sexo e a Cidade, ou do Bridesmaids, do Hunger Games, ou até do We Need to Talk About Kevin, ou até de, haha Harry Potter :D 




mas amanhã é outro dia. E hoje já vou dormir melhor.

S.              


P.S. - E porque hoje  foi dia de Óscares e tem tudo a ver com isto da representação da mulher nos filmes, é ler este artigo sobre a categoria de Best Supporting Actress que dá que pensar ;)

Update: Entretanto, a minha amiga B. mostrou-me este link, também sobre os Óscares, e que é uma amostra fiel do quantidade de sexismo que a TV alberga: 9 Sexist Things That Happened at the Oscars.

4 comentários:

  1. no outro dia li uma notícia sobre um prémio dado a uma associação para apoiar a compra de pensos higiénicos por mulheres africanas. dizia que se estima que elas faltam a escola e trabalho em média 50 dias por ano por falta de acesso a pensos. mas estou farta de procurar onde li isso e não encontro.

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  2. a.i., aí junta-se um novo elemento: a pobreza extrema nessas populações. É como não poderem comprar fraldas descartáveis para os filhos. Mas o facto de essa carência as impedir de ir trabalhar (se calhar mesmo até de sair de casa) é assustador.

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  3. Apesar de gostar muito da Odisseia, acho exactamente isso, que as personagens femininas são todas estereótipos do pior. É uma espinha atravesada na minha garganta. Gosto muito, mas claramente não passa no Bechdel Test. Não percebo se é por ignorância, egocentrismo ou machismo puro e duro. Ou um misto dos três. Gostei muito desta tua análise. Fiquei fã :)

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  4. São João, obrigada! Fico feliz por as minhas análises ressoarem noutras cabeças :)
    Isso do egocentrismo explica um bocado do Odisseia. Às vezes dá-me a sensação que o Bruno e restantes argumentistas escrevem para eles próprios e sobre eles próprios, num sentido muito de "private joke". Quando acontece sai-lhes o tiro pela culatra porque as pessoas deixam de se relacionar com o humor e falha. Pelo menos comigo acontece isso. Mas tenho sempre curiosidade para saber onde vão levar a história (se bem que nem um décimo da que tinha com O Último a Sair).

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