Há aquele lugar-comum do não faças como eu digo, faz como eu faço. Ou que uma ação vale mais que mil palavras. Pois é assim mesmo que eu classifico o meu pai dentro das pessoas feministas. Ele não se diz tal, nunca aspirou a sê-lo, e acho que até lhe faz um bocado comichão o termo. Mas é-o.
O meu pai é, e sempre foi, o meu herói. Diz que é muito comum, as meninas e também os meninos, olharem para o pai desta maneira. Há inúmeras teorias sobre o caso, mas eu não quero ir por aí. Desta vez não se trata de dissecar as coisas racionalmente; este, ao contrário do amor por um filho, eu conheço-o e sinto-o, no que mais de visceral tem. Não preciso de teorias que me o elucidem.
Dizia eu que o meu pai é o meu herói. Infalível como a todos os filhos se assoma, mas apesar de crescida e saber mais sobre isso da infalibilidade do que quando tinha 12 anos, ele continua o meu herói. Isto porque reconheço a sua inflência em quase tudo o que sou. E a sua descoberta no que é a bigger picture do meu eu é frequente mas sempre abismal.
O meu pai teve uma influência sobre a minha educação como mais nada nem ninguém (eu um dia prometo que escrevo para ti, mãe. Sobre o que o teu amor inabalável faz por mim todos os dias, mesmo a 1700 km de distância). E fê-lo sem qualquer esforço. O meu pai ensinou-me a pensar, explicou-me o mundo, mostrou-me o mundo, ajudou-me a direcionar o laser das ambições lá para cima. Todos os dias, durante mais anos do que os que eu consigo lembrar, à hora do jantar - a hora sagrada da família, um hábito que me permanece - eu fiz perguntas ao meu pai, tão inconcebíveis quanto o é a curiosidade de uma criança, e o meu pai explicou, nunca relutante, nunca impaciente, sempre ponderado e muitas vezes lançado em respostas que duravam horas. Algumas delas, vim a saber mais tarde, não eram infalíveis nem verdades absolutas: mas na formação de um caráter, a veracidade absoluta das afirmações tem menos importância do que se julga; o fundamental é plantar a semente da interrogação, mostrar que A e B existem, que são uma possibilidade, que estão ao alcance da nossa compreensão e dos nossos sonhos. A minha curiosidade era saciada só até ao ponto em que surgiam novas perguntas sobre História, sobre o Mundo, sobre os países, sobre o Universo, sobre Química, sobre Física.
Física. Essas eram as minhas perguntas favoritas. Lembro-me que precisámos muitas vezes de papel e caneta, para essas; envolviam desenhos, círculos, átomos que se ligavam em moléculas e pólos positivos e negativos. Eu ficava embasbacada a ver o mundo caber naqueles desenhos e a ordem das coisas a encaixar com as linhas que o meu pai traçava no papel. Nunca o meu pai se recusou responder a nada, nem nunca ouvi da sua boca a extremamente irritante afirmação: "Ainda és muito nova para entender." Lembro-me de ele falar de política (a Esquerda e a Direita, quem era o Marx, quem era o Salazar), filosofia (a "só sei que nada sei", de como nunca está garantido que o sol se levante amanhã de manhã, o céticismo e os dogmas), história (o resgate dos reféns americanos na Embaixada em Teerão, Cuba, a cisão China-Taiwan, a Guerra do Vietname). Até por explicações da Teoria da Relatividade ele teve que enveredar e adaptar a uma criança. Mas nunca, nunca, o "mais tarde o pai explica". Acho que ele já sabia que o importante é ficar lá na memória, algures, os nomes das coisas e os conceitos. A compreensão constrói-se ao longo do resto da vida.
A eletrónica figurava muito nas suas explicações do mundo. Afinal, uma criança sabe que fonte de informação privilegiada tem em casa e molda a sua curiosidade a tal. Ganhei fascínio pela física muito antes de a começar a estudar no 7º ano. Viagens de avião, idem. Graças à profissão do meu pai, mas especialmente graças à sua paixão por ela, hoje sei muito mais sobre o funcionamento dos aviões do que seria razoável. Na nossa viagem anual ao estrangeiro - ocasião, sem necessidade de dizer, extremamente ansiada por mim o ano todo - voltávamos à rotina das conversas ao jantar, mas desta vez num banco de avião: eu perguntava, ele explicava, entusiasmado como nunca e a entrar por conceitos e nomes por vezes mais difíceis do que eu conseguia atingir. Mas ouvia, embasbacada, a ser-me transmitida a paixão por aquelas máquinas quase-perfeitas através do discurso e dos olhos brilhantes do meu pai. É por isso que nunca consegui ter medo de andar de avião, não de verdade. Uma coisa que o meu pai conhece como as palmas da sua mão e da qual fala com tanto conhecimento e paixão não poderia nunca ser perigosa. E hoje entendo-a melhor do que o funcionamento de um carro.
A paixão verdadeira pelo que faz, e a sua dedicação e esforço para conseguir a profissão que sempre sonhou, inteiramente seus e não adivinháveis pelas suas origens humildes fizeram com que eu, uma rapariga de origens confortáveis mas também humildes, sonhasse com o céu. Por isto, quis ser bióloga marinha, embaixadora, engenheira aeronáutica, engenheira espacial, historiadora. Quis trabalhar na forca aérea, quis trabalhar nas Nações Unidas, na NATO, quis trabalhar no jardim zoológico, na NASA, na União Europeia. Quis viver na América, quis emigrar, quis viajar sempre, muito. Percebi o valor do empenho e do esforço desde sempre, em tudo o que se faça e como precursor do sucesso.
Herdei do meu pai a personalidade serena, pensativa, que muitos tomam por sisuda e distante. Algum enfado com as diligências do dia-a-dia, com as conversas de circunstância, impaciência com gente idiota. Espíritos silenciosos mas extremamente observadores.
O meu pai deu-me a educação mais gender-neutral possível, sem saber o que isso era, e provavelmente antes de o termo ser inventado. Sem ser feminista assumido. Por saber apenas que é assim mesmo que se faz.
O meu pai já era o meu herói antes de eu me dar conta disto. Agora que dou, só me apetece dar-lhe um abraço muito apertado e segredar-lhe um "Obrigado" do tamanho do mundo, por me ter indicado o caminho certo de forma tão natural, sem nunca vacilar.
E porque hoje é o teu dia, decidi dizer-te isto que nunca disse, para saberes que a tua filha te admira como a ninguém e te adora como sempre.
Parabéns, pai.
S.
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