terça-feira, 2 de setembro de 2014

Correr uma maratona será a coisa mais feminista que já fiz


Já dizia a Simone de Beauvoir que uma das coisas que mais contribui para a aparência e sentimento de inferioridade e fragilidade das mulheres é o facto de não lhes ser estimulado o lado físico durante a infância e adolescência. Coisas como subir a árvores, jogar futebol nos intervalos e afins são experiências ainda de rapaz. Tenho a impressão que as coisas estão a mudar devagarinho mas o cunho de "maria-rapaz" ainda é demasiado usado para rotular crianças que gostam destas coisas e que por acaso não são rapazes. A rapariga quer-se sossegada, bem-comportada, enfeitada, não de calças rotas e pés sujos.
 
"Cette impuissance physique se traduit pour une timidité plus générale: elle ne croit pas avoir une force qu'elle n'a pas experimenté dans son corps; elle n'ose pas entreprender, se révolter, inventer: vouée à la docilité, à la résignation, elle ne peut qu'accepter dans la société une place toute faite."
 
"Esta incapacidade física traduz-se numa timidez mais geral: ela não crê ter uma força que nunca experimentou através do corpo; ela não se atreve a empreender, a se revoltar, a inventar: votada à docilidade, à resignação, ela não pode aceitar na sociedade mais do que um lugar pré-determinado."
 
O corpo feminino é sobretudo feito para ser visto e admirado como um objeto, não para ser sujeito e ativo. A atividade, em havendo, é para servir o propósito de o melhorar para admiração, seja perdendo peso, seja tonificando-o, seja combatendo a odiada celulite, nunca sendo um fim em si mesma. Por isso mesmo durante tanto tempo o desporto feminino foi quase um oxímoro, algo indesejado porque masculinizava as mulheres, associando-lhes características tão horríveis e tão não-femininas como competição, força, determinação, liberdade.
 
Pois, a liberdade. Descubro agora que é exatamente isso que me move a mim - e, suspeito, muitos outros corredores amadores - a voltar uma e outra vez à estrada mesmo quando no dia anterior os pulmões quase explodiam, o coração quase saltava da caixa toráxica e o estômago quase se revoltava com o esforço desconhecido. Não é masoquismo, é amor animal à liberdade que pôr um pé à frente do outro e repetir o mais rápido possível nos dá. É saber que só com os meus pés consigo fazer um caminho que durante toda a minha vida fiz de carro, milhares de vezes. Saber que hoje sou capaz de correr daqui à Ericeira. E para a semana sou capaz de ir e voltar. E que daqui a um ano conseguirei correr até Lisboa, se quiser. Só com o meu esforço, com o meu corpo, mais nada. Há lá ideia mais libertadora do que esta?
 
Não admira que até há menos de 40 anos não houvesse maratonistas. Até aos anos 60 não havia nenhuma prova olímpica feminina de corrida com mais de 200m. Havia a ideia de que não era apropriado as mulheres correrem longas distâncias. Apesar de uma mulher, Stamatis Rovithi, ter corrido uma maratona pela primeira vez em 1896 e de nesse mesmo ano Melpomene ter corrido a maratona olímpica estando registada mas sendo-lhe negada a entrada no estádio para a meta, estávamos em 1972 e a mundialmente famosa Maratona de Boston proibia formalmente mulheres de correrem a distância mítica dos 42195 metros. Proibir, vejam bem. Não bastava desencorajar (pensar em 42 km já é desencorajador o suficiente, ainda mais para uma mulher de meados do séc. XX, bem consciente da sua inferioridade física e das características que uma mulher de bem deve possuir, sendo que a destreza e resistência físicas não eram duas delas). Uma das mulheres que desafiou essa proibição só foi descoberta uns quilómetros depois de começar e escapou à perseguição dos organizadores com a ajuda dos colegas de equipa que lhes bloquearam o caminho. Outra escondeu-se atrás de um arbusto perto da linha de partida e zás, largou a correr quando a prova começou, outra foi puxada mesmo antes de meta e impedida de acabar. Em 1972 lá os organizadores da Maratona de Boston permitiram que mulheres também corressem na prova, após estas persistentes corredoras e a proibição da sua ambição terem ido parar à primeira página dos jornais americanos.
 
Mesmo assim foi só em 1984 que a maratona feminina se estreou como prova olímpica. 30 anos. 30 ANOS. Há pouco mais de 30 anos ainda andavam os paspalhos do comité olímpico a arranjar desculpas como "não é aconselhável as mulheres correrem tanto, faz-lhes mal" (mesmo depois de vários médicos terem emitido comunicados a dizer que não havia nenhum entrave físico a que mulheres pudessem correr maratonas) para não deixarem atletas correrem uma maratona olímpica. A condescendência sempre foi um aliado da resistência à emancipação feminina. No desporto não seria diferente.
 
Ide ler sobre a luta pela instauração da maratona olímpica feminina, que é de uma novidade que eu não fazia ideia. A luta pela igualdade num sítio inesperado.
 
Posto isto, não é surpreendente que uma feminista e apaixonada recente disto do meter um pé à frente do outro e repetir rápido tenha decidido que o seu próximo objetivo é correr uma maratona. Quero engordar as fileiras femininas das maratonas, quero ser mais uma a desafiar o que é suposto uma mulher fazer ou não fazer, conseguir ou não conseguir, gostar ou não gostar. Porque a verdade é que eu falo de liberdade animal, da ânsia de comer estrada com os pés e de saber que consigo ir até ali, mas a corrida deu-me outra liberdade, inesperada: a liberdade de desafiar as amarras do meu género. O meu corpo é o meu maior aliado, sou eu, não é nenhuma máscara inerte e exterior a mim, fonte de ansiedade por não corresponder a padrões impossíveis. A minha perspetiva sobre o que posso fazer com ele mudou irremediavelmente, e com ela a minha perspetiva sobre o que me faz feliz. Deixei de ter paciência para enfeites, adornos, roupa restritiva, calçado que me impeça de saltitar se me apetecer (ainda não apeteceu, mas gosto muito de caminhar durante horas, o que em termos de calçado vai dar ao mesmo). Não desdenho nenhuma destas coisas, simplesmente agora aceito de uma vez por todas que não as quero, elas não me servem. Isto sempre foi verdade, a diferença que a corrida trouxe foi levar-me a admitir isto de uma vez por todas. Por outro lado, agora amo vestidos, calções e saias rodadas como nunca. A minha dicotomia não é feminino-masculino, é restritivo-confortável. Só acontece que as duas coincidem demasiadas vezes e não por acaso:
 
"Les coutures, les modes sont souvent apliquées à couper les corps féminin de sa transcendence: la Chinoise aux pieds bandés peut à peine marcher, les griffes vernies de la star d'Hollywood la privent de ses mains, les hauts talons, les corsets, les paniers, les vertugadins, les crinolines étaient destinés moins à accentuer la combrure du corps féminin qu'à en augmenter l'impotence."
 
"As costuras, os padrões são frequentemente aplicados para privar o corpo feminino da sua transcendência: a chinesa com os pés enfaixados mal podia andar, as unhas envernizadas da estrela de Hollywood privam-na das suas mãos, os saltos altos, os espartilhos, as cestas, a armação dos vestidos, as crinolinas foram destinados menos a acentuar o corpo feminino do que a aumentar a sua impotência."
 
 
Já aqui tinha falado disto mas näo resisto porque afinal quase tudo nisto da desigualdade dos sexos vai parar ao mesmo: a visão do corpo feminino como objeto, para ser olhado, admirado, possuído, e nunca como um sujeito.
 
Assim, e para terminar, fico contente que duas paixões que me surgiram paralelas se complementem tão bem e agora até se alimentem uma à outra. Correr uma maratona não é a coisa mais feminista que se pode fazer (até porque há as ultras, haha) mas será sem dúvida a coisa mais feminista que eu já fiz. Desafiarei os meus limites, desafiarei as amarras do meu género e manter-me-á na linha da pessoa que eu quero ser. E eu quero ser a pessoa que chora ao ver Lisboa a aproximar-se, só que desta vez pelo chão. Maratona EDP de Lisboa de 2015, me espera.
 
 
 
 
S.       

8 comentários:

  1. Assim é que é, venha de lá essa engorda!

    Eu estou aqui indecisa entre a Maratona do Gerês, em Novembro, ou os Trilhos dos Abutres (ultratrail), em Janeiro.

    (aqui que ninguém nos ouve, já não posso é usar sandálias, tenho os pés todos massacrados. paciência)

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  2. Ena pá, trilhos é outro nível! Correr no Gêres deve ser incrível :)

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  3. Parabéns D.S., linkei o texto e tudo. Acho que tens toda a razão. Olha que apesar de me ter metido nas ultras e treinos muito longos, nunca mais volto a sofrer tanto como nos últimos 30-40 minutos da maratona de Madrid. Não se compara a intensidade se tiveres um objectivo de tempo que é ambicioso (mas ao mesmo tempo realista, claro). Eu até algumas semanas da Maratona pensava só "o meu objectivo é chegar ao fim". Mas um dia percebi que chegar ao fim já eu sabia que chegava (e tu vais perceber isso também) depois de correr 35km devagar e acabar contente. A questão transformou-se no "em quanto tempo?" Podem ser 5 horas, 4 horas, 3:30... não interessa, o que interessa é ser ambicioso e realista ao mesmo tempo. Já agora, aconselho-te vivamente isto: http://www.mcmillanrunning.com/
    é uma calculadora de tempos / ritmos. Pegas aí no teu melhor tempo dos 10k ou meia maratona (meia maratona seria melhor) e brincas com os objectivos de tempo para uma maratona. Ele vai dizer-te que tempos deverias fazer nos 5k, 10k, 21k etc. para fazeres uma maratona nesse tempo. Já a usei em 3 corridas e é mesmo muito precisa. Permite estabelecer objectivos realistas com base no teu nível e permite-te testares, em treinos, os ritmos necessários. Ela a mim disse-me que eu fazia a Maratona em 3h e 48 minutos, baseado no tempo da minha Meia Maratona. Fiz em 3h e 58 minutos. A diferença, ainda assim relevante, pode-se explicar pela meia maratona ter sido 100% em plano (beira rio) e a maratona de madrid ser mesmo muito acidentada a nível de terreno. Mas foi essa ferramenta que me fez acreditar que podia fazer sub 4 horas. De outro modo teria apontado para as 4:15-4:30. Pronto, já vai longo, são só umas dicas :)

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  4. Eu sempre tive a ambição de correr a maratona em 4 horas, mas tenho noção que com os meus tempos atuais seria impossível. Na meia-maratona queria fazer 2h e acabei com mais 20 min em cima... Claramente näo estava preparada. Agora já comecei com treino de velocidade em séries, e a preocupar-me com o passo, coisa que anteriormente não fazia, era só ir acrescentando quilómetros. Conto fazer duas meias antes, dará para adaptar passos e tempos se for preciso.
    Isso da última meia hora da tua maratona de Madrid ter sido onde sofreste mais não me dá tranquilidade de espírito :/ Acompanho o teu blog de corrida e se o teu plano de treino parece tão sofrível agora, não quero imaginar como foi essa parte em Madrid... Se bem que a maratona de Lisboa, sendo feita pela marginal desde Cascais não terá o problema da altimetria.
    Obrigada pelas dicas!

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  5. Foi por causa do ritmo. Na altura o meu ritmo "easy" ou zona 2 cardíaca era 6:10 - 6:30 por km. Para fazer sub 4 horas teria de fazer sub 5:40 por km durante 42km. Apontei para os 5:30 / 5:35 por km para dar folga e a ideia era tentar aguentar esse ritmo, o que me parecia improvável... Se não conseguisse, abrandava e pronto, fazia 4:15, 4:30. Primeiros 20k tudo ok, eufórico, uma adrenalina imensa, eu sorria, eu até dava saltos a passar pelas bandas rock (era a rock n roll de madrid). Acreditei que podia fazer sub 4 horas. Isto é muito de gajo se calhar, a cena da competição. Mentalmente, havia todo o mundo de diferença entre fazer 4h:01 ou 3h58', mas fazer 3h58' e 3h30' era igual (o maldito dígito das horas). Ego, ego, ego. Aos 30km bati na parede, mas assim que fisguei o tipo da organização que tinha um balão gigante a dizer 4H e que ia a marcar o pace para esse tempo, não o larguei mais. Senti que se abrandasse, desistia da prova. Cada minuto parecia uma eternidade. A 500 metros da meta eu ainda pensava em desistir. Mas o apoio do público na maratona de Madrid é incrível. Alem disso ia a correr com mais uns 20 gajos (e gajas) que também queriam bater as 4 horas. Não os conhecia de lado nenhum, mas era óbvio que estavam no meu nível, estavam a tentar não largar o pacer das 4 horas. Por isso éramos como uma manada a correr em conjunto, era mesmo um pelotão, havia muito menos pessoas à frente de nós e atrás (as pessoas tendem a agrupar-se em torno dos tais pacers das 3h, 3:15, 3:30 etc. )De vez em quando um desistia e eu sentia-me melhor :D Isto soa mal, mas era verdade ehehehe Uma feminista também vai querer certamente ultrapassar as gajas e gajos à volta dela e ficará feliz quando ultrapassa corredores ;) Proporcionalmente oposta a essa sensação foi o que senti quando passei a meta. Devia estar com uma overdose de adrenalina, endorfina, dopamina... eu sei lá. Essa sensação é indescritível. Mas fiquei com fobia a estrada depois, por isso é que fui para o trail. Foi a minha lição. Já me passou a fobia da estrada, mas só volto a correr a maratona de estrada se tiver um tempo ambicioso mas mais próximo do meu nível. Do género "sei que consigo bater as 3:45, vou lá fazer isso" e faço e só volto a fazer quando souber que consigo bem tirar mais 15' a isso. Já as ultras e treinos longos, é um cansaço e dor diferentes a não ser para os elites que competem para bater recordes e vencer. É muito mental, é preciso paciência, perseverança, teimosia, mas os ritmos são mais baixos. Por exemplo, tens tempo para respirar no topo de uma montanha, ouvir uma música que te anime, comer um snack e dar dois dedos de conversa num posto de abastecimento... Não quero assustar-te, mas sim fazer-te ver que o desafio a que te propões é mesmo difícil e motivar-te para os treinos. E tu vais conseguir. Por exemplo, esse lado espiritual em que inseres a experiência da corrida, como algo feminista por exemplo. Vais querer desistir aos 30km na parede? E depois, vens para aqui para o blogue dizer "ah e tal, sou muito mulher, mas desisti, era muito duro". No fucking way. Além disso, já fizeste aquilo da bicicleta pela costa, não é para meninas. Salvo seja.

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  6. Certo mas agora lendo essa explicação parece-me que a bicicleta pela costa deve estar mais próximo de trail do que de uma maratona de estrada, especialmente se correr com um objetivo de tempo. 800 km parece muito mas nunca passámos mais de 4 horas por dia no selim, e havia mini-paragens pelo meio. Nem 42 km seguidos fizemos muitas vezes a pedalar, e quando fazíamos eu nem queria acreditar que havia pessoas que corriam aquilo. Na maratona de estrada é preciso aguentar um ritmo durante 4 ou mais horas e já percebi que é esse o verdadeiro desafio, mais do que acabá-la.
    Gosto muito de ler testemunhos de corredores amadores porque ainda até há menos de um ano eu não sabia que era possível uma pessoa normal correr uma maratona... Pensava que era uma coisa reservada a atletas profissionais de elite. O teu exemplo e especialmente o da Gralha (porque é mulher) provam que é possível, é só mesmo treinar para ela.

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  7. É mesmo e eu também achava impossível. Conheço alguns corredores amadores bem melhores do que eu que nunca passaram da meia porque acham "impossível" correr mais de 2 horas. E digo-te, na de Madrid acabei 4 horas, mas havia gente a fazer 6 horas, a andar mesmo nas calmas. MEsmo nesta ultra do DUT em conversa com o meu treinador eu confessei que psicologicamente vai ser complicado ser o último ou dos últimos... isto porque parto do princípio que numa ultra daquelas só se inscrevem atletas bem melhores do que eu e tive a experiência do treino conjunto do Sintra Extreme em que vi todos a desaparecer encosta acima em "ritmo fácil". E ele disse-me para não me preocupar que hoje em dia havia certamente mais malucos como eu a meter-me nisso e alguns muito mais mal preparados. Não sei se ele tem razão, mas espero que sim.

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  8. Aposto que sim, que há gente muito mais mal preparada que se mete nessas coisas. Ainda não me esqueci de estar perto da meta da maratona de Londres deste ano e ver chegar tantas pessoas gordas ao fim e pensar: "bolas, estas pessoas não se podem ter preparado assim tanto para uma maratona, se continuam com tanto excesso de peso. Se elas conseguem também hei-de conseguir, caraças." Já passava das 5 horas mas mesmo assim estavam a acabar os 42 km! Foi aí que decidi que um dia havia de correr uma maratona, aliás.

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