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O alarme soou ainda não eram oito da manhã. Estridente e omnipresente, é das piores maneiras de arrancar o cérebro à terra dos sonhos. Estremunhada e aflita, sabia o que fazer: calçar os primeiros sapatos que encontrasse, vestir o roupão, resgatar a chave do fundo da mala, e dirigir-me para a rua o mais rápido possível. Sob pena de a universidade achar que o pessoal desta residência é demasiado lento para seu próprio bem e decidir repetir a simulação de incêndio à surpresa. Tive sorte: houve pessoas que foram apanhadas pelo alarme a meio do banho. A manhã fria não convidava a cabeças molhadas e chinelos enfiados à pressa nos pés nus.
O zelo que os britânicos têm pelo health and safety roça a paranóia. É o cobertor apaga-fogos na parede da cozinha. As simulações de incêndio anuais, pré-avisadas e com passos muito detalhados que têm que ser cumpridos sob pena de repetição. As reuniões que começam com a informação à la assistente de bordo de onde se encontram as saídas de emergência. É o não poder usar a sala de estudantes fora de horas sem primeiro tirar um curso online sobre segurança e o que fazer em caso de emergência. São as inspeções aos apartamentos para medir a temperatura dos quartos e da caldeira. É o autocolante que todos os aparelhos elétricos (até o ferro de engomar, até a torradeira, até a chaleira) aqui de casa têm em como foram inspecionados em maio de 2014. É o terem enviado um email a avisar que o alarme de incêndio da residência tinha que ser arranjado e que NINGUÉM podia usar qualquer aparelho elétrico durante a hora e meia que durou o arranjo.
Eu gosto muito do controlo sistemático que eles têm sobre o caos logístico do dia-a-dia - especialmente depois da experiência belga, que continua a infiltrar-se nas nossas vidas de formas inesperadas - mas isto é um bocadinho demais.
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Hoje saltei da cama sem precisar de nenhum alarme estridente de incêndio, só pela prospetiva de ir pedalar pela primeira vez na minha nova bicicleta, na minha nova terra, até às minhas novas aulas. Estava nervosa; não pegava numa bicicleta desde Sagres.
Mas não precisava de estar. Descida a rua e assim que curvei para a agora especial Manchester Rd, o nervosismo foi-se embora e o júbilo instalou-se. Estava a cair aquela chuvinha irritante, as minhas pernas estavam a ficar todas molhadas e o trânsito foi maior do que o que eu estava à espera, mas a alegria francamente primária de estar novamente a pedalar numa cidade abafou o desconforto. Também porque o caminho foi quase todo a descer. Mas isso não é para aqui chamado; o que importa é que já regressei aos meus commutes de bicicleta e eles funcionam.
A Queeny Papa-Léguas portou-se muito bem; é leve como um raio, a miúda, e responde demasiado rápido aos meus movimentos. E é tão pequenina e maneirinha. Deve ser uma vista muito gira, eu, com o meu metro e meio, capacete de patins de criança, a conduzir uma mini-bike pela cidade fora. Quem me dera ter mantido a capa de dementor, para dar um ar mais sério (mas depois talvez ficasse só a parecer um hobbit azul, teria o efeito contrário). Considerações de aparência à parte: é a coisa mais parecida com voar. A rolar num objeto tão pequeno por aí fora, deve ser muito parecido com voar numa vassoura (baixinho).
Nota-se muito a euforia ainda?
Para cá já não me senti a voar numa vassoura, a força da gravidade já não estava do meu lado. As colinas de Sheffield mostraram que não estão para mariquices de viagens de bicicleta facilitadas e eu cheguei ao meu destino sem fôlego, a suar e com os músculos por cima do joelho a latejar. Pensei que fosse pior, ainda assim. É só porque estou destreinada, nada a apontar ao outro bicho. A QPL está aí para as curvas, e para os altos, e para os baixos.
S.
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