É difícil reparar quando uma coisa está errada se vivemos com ela desde sempre e não conhecemos alternativa. É preciso grande dose de imaginação para envisionar um mundo diferente se esse mundo nunca existiu. Esta dificuldade é elevada ao quadrado se achamos que a nossa realidade não tem mal nenhum; é normal, pois se nunca conhecemos diferente porque haveria de estar errada?
Vivemos num mundo altamente sexualizado. Isto não seria necessariamente mau se essa sexualização fosse natural, igualitária, e acima de tudo saudável. Mas está longe de o ser porque as mensagens com que somos bombardeados diariamente - quase sem notar conscientemente, de tão banais que se tornaram - passam uma imagem de uma ultra-sexualização particularmente violenta para a mulher, em que o que conta é o desejo masculino, e a perfeição do corpo feminino em nome não se sabe muito bem de quê (da juventude, da frescura, da passividade, da mulher tornada boneca...). Hoje confunde-se empowerment da mulher com salto-alto, disponibilidade sexual instantânea, solário, lipo-aspirações, maquilhagem, saias curtas e justas. É o sair de uma gaiola e enfiar noutra, pensando que agora sim, se chegou à liberdade.
N' O Segundo Sexo, a Beauvoir fala disto. Precisamente como a aparência da mulher sempre foi moldada em nome de um ideal que não lhe diz respeito, um ideal de beleza subordinado ao que o homem deseja, variando consoante as épocas mas sempre com o mesmo objetivo comum. Um ideal que é criado tão somente para a render à passividade e à condição de boneca e manequim, embelezá-la o mais diferente possível do homem, mantê-la como o "Outro", a tal coisa para ser admirada, lá alto num pedestal ou no submundo, misteriosa porque diferente, numa vénia perpétua à aparência, nunca à sua humanidade. Daí que os stilettos vertiginosos de hoje não sejam no fundo mais que os enfaixamentos dos pés das meninas chinesas há uns séculos atrás, ou os corpetes do séc. XIX não tivessem um propósito fundamentalmente diferente que as saias-tubo: votar a mulher à imobilidade.
Beauvoir diz:
"Les coutures, les modes sont souvent apliquées à couper les corps féminin de sa transcendence: la Chinoise aux pieds bandés peut à peine marcher, les griffes vernies de la star d'Hollywood la privent de ses mains, les hauts talons, les corsets, les paniers, les vertugadins, les crinolines étaient destinés moins à accentuer la combrure du corps féminin qu'à en augmenter l'impotence."
"As costuras, os padrões são frequentemente aplicados para privar o corpo feminino da sua transcendência: a chinesa com os pés enfaixados mal podia andar, as unhas envernizadas da estrela de Hollywood privam-na das suas mãos, os saltos altos, os espartilhos, as cestas, a armação dos vestidos, as crinolinas foram destinados menos a acentuar o corpo feminino do que a aumentar a sua impotência."
E continua, nesta crua mas tão clara afirmação:
"L'idéal de la beauté féminine est variable, mais certaines exigences demeurent constantes; entre autres, puisque la femme est destinée à être possédée, il faut que sont corps offre les qualités inertes et passives d'un objet."
"O ideal de beleza feminina é variável, mas alguns requisitos permanecem constantes; entre outros o seguinte, pois como a mulher está destinada a ser propriedade de outrém, é necessário que o seu corpo ofereça as qualidades inertes e passivas de um objeto."
É incrível como tão pouco mudou desde que Simone escreveu isto. Hoje, exemplos desta objetificação da mulher entram-nos casa e olhos adentro diariamente que já mal damos por eles. Mas é quando oiço respostas do género "Eu visto / uso / faço X para agradar a mim mesma, porque gosto, e não para agradar aos homens" que me surpreendo que, porra, a mensagem é mesmo eficaz, tão eficaz que nos chega a convencer que o fazemos por espontânea e livre vontade, e não porque somos condicionadas, todos os dias desde pequeninas, por múltiplos canais, que assim é que é. Esta dialética do inerente/externamente-condicionado é o que me fascina na igualdade de géneros e não é exclusivo dela. No fundo é isto que é a socialização, é assim que aprendemos a viver em sociedade, que interiorizamos as regras, tanto legais como informais, do que é ser pessoa. O feminismo simplesmente contesta muitas das que nos impingem sobre o que é "ser mulher" e "ser homem".
Eu não sou imune a elas, claro está. Não sou uma ermita. No meu guarda-roupa versam alguns saltos-altos, uma ou outra saia-tubo, vestidinhos bonitos e alguns extremamente restritivos à minha mobilidade. Pintei o cabelo durante vários anos, faço depilação como é esperado, pinto as unhas de vez em quando. Mas isto não me impede de questionar qual é o propósito com que calço um sapato que me vai fazer bolhas e impedir de andar rápido, porque é que mudo a cor natural do meu cabelo ou que sinto que se não cortar os pelos que teimam em crescer debaixo dos braços sinto que estou a cometer um crime. É o tentar descobrir sempre se o que estou a fazer é de minha verdadeiramente livre vontade ou se estou apenas a capitular face à poderosíssima mensagem com que sou bombardeada diariamente.
Sobre isto da objetificação da mulher, e ligado também aos posts que já fiz sobre a representação da mulher nos media, deparei-me com este vídeo brilhante sobre a forma como a mulher é mostrada na publicidade. E porque corremos o risco de não perceber onde está o problema, já que - again - isto é no que estamos banalmente imersos, decidiu-se imitar certos anúncios extremamente degradantes mas colocando um homem no lugar da mulher. Isto, mais do que qualquer outra coisa, grita o ridículo que são estes anúncios.
O vídeo faz parte de um projeto que um grupo de alunos da Universidade de Saskatchewan fizeram, no âmbito de uma disciplina de estudos de género. Aqui fica:
No dia da Mulher, andou a circular pela blogosfera um post do mesmo género, extremamente espirituoso e que espelha bem o que é isto do Patriarcado, ao criar um universo paralelo onde governaria um Matriarcado, com as mesmas falhas e degradações para um dos géneros que o primeiro. É o Plano B para a Humanidade. Ide checkar também que é mesmo bom.
O Unas também já lhe apanhou o jeito:
S.
adorei o video!
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