quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

"Who made these rules anyway?"

Desde 2010 que penso muito sobre o que é isto de "casa". Quanto tempo demora a estabelecer uma, do que é ela depende, se podemos ter várias? Se tem que ser sempre onde moramos, se é onde vive quem amamos, se é imutavelmente o sítio onde crescemos ou se é onde ansiamos estar. A sabedoria cibernauta nunca me conseguiu esclarecer -  que choque, não é verdade.
 
Temos então:

 
O meu telemóvel liga automaticamente em vários sítios, nomeadamente na minha morada oficial, no meu trabalho, no aeroporto de Varsóvia, no Workshop Café, em casa dos meus pais, no autocarro do aeroporto em Edimburgo, na lavandaria do bairro. Não me parece que isto os classifique como "minha casa".
 
 

Não gosto de vinho. E também não acho que o supermercado da esquina se classifique como casa.




Eeeeeh... Eu queria perguntar em que sentido? mas tenho medo...

 

Outro... Bom, este vou interpretar no sentido mais light. Sim, é onde estamos mais à vontade, é onde podemos saltar por isso das convenções da vida em sociedade e ser os animais que na verdade somos. Tudo bem. Mas isto é mais quando estamos sozinhos em casa, não apenas quando estamos em casa.
 
 

Nah. Isso é a casa dos meus pais, é a casa da minha infância, é onde mora a minha família. :) A minha casa terá que ser outra coisa qualquer. Senão nunca se criavam casas novas, era sempre a da mãe...
 


Não tenho cão :( . Só o que está em casa dos meus pais. Mas esse não é meu, lá está, é dos meus pais, nunca foi meu porque eu estava lá mas depois já não estava e o bicho é 100% de coração da minha mãe. Quer dizer, ele faz uma grande festa sempre que me vê, nem consegue acreditar que eu voltei, não sei se pensa que eu moro ali à mesma, se entende que eu pertenço à matilha dele, mas acho que não, ele não sofre quando eu me vou embora, não fica a ganir baixinho quando desapareço, ou à chuva sentado de olhos presos no portão por onde saí, como faz com a minha mãe. Por isso, não, não tenho cão realmente. 




Sim, está bem, mas, er... explicação demasiado escatológica.
 


...

Esta nem faz sentido.




Ah, assim está bem. É onde quisermos, é onde a construirmos, está bem. Mas isso significa que pode ser em muitos lados? Mas, e também, o que é realmente preciso para ela ser casa, mesmo "casa" (recuso-me a empregar a palavra "lar", que odeio)? Dá para se tornar casa num instante, só porque eu quero?
 
A sabedoria cibernauta não foi capaz de me satisfazer.
 
Acabei por voltar à sabedoria popular.



Ah, porra. Este é mais complicado.
 
O meu coração está em muitos lugares. Está em todos os sítios onde eu já fui feliz, está no passado ligado às memórias da minha infância, mas também está no futuro, demasiadas vezes no futuro, em coisas que anseio fazer, em pessoas em abstrato que ainda não conheci. Está em sítios que eu nunca vi mas que sinto que conheço, está em sítios que nem existem mas que, segundo a minha cabeça, podiam muito bem existir. Estamos antes a falar de pessoas? Bom, isso aí eleva ainda mais o grau de  complicação. Pode a nossa casa ser uma pessoa? É que as pessoas movem-se. E são muitas, como escolher.
 
Uma amiga, bem mais experiente do que eu nisto das emigrações (aos 26 anos já tinha vivido em 7 países diferentes), disse-me uma vez que a maldição de qualquer emigrante era nunca mais voltar a ter a alma inteira, esteja onde estiver. Se estou em Bruxelas sinto falta da minha família e amigos em Lisboa, se estou em Lisboa sinto falta dos meus amigos de Bruxelas, em Londres deixei uma grande amiga, outra fugiu para a Dinamarca. Para onde quer que um emigrante se mude, vai sentir sempre falta de alguém. Ela disse mais: onde quer que esteja nunca vai conseguir reunir todas as pessoas que ama no mesmo sítio. Seja para festejar os anos, seja numa graduation, seja num casamento. E isto é assustadoramente verdade e irremediavelmente cruel.

Só se... for uma pessoa mesmo muito especial.
 
Eu voltei sem o D. em janeiro. Não estava planeado, mas é temporário, não houve drama. Motivos estritamente profissionais. Eu estou contente por estar de volta a Bruxelas, ansiava pela minha rotina, pelas minhas coisas, voltar aos meus percursos familiares de corrida, estar sossegada no meu canto. Por isso acho que esta é a minha casa. Mas é também a nossa casa e por isso há qualquer coisa estranha no ar, um silêncio que é um bocadinho maior do que eu estar aqui sozinha simplesmente. Parece que está qualquer coisa partida. Não me interpretem mal, eu sou uma criatura que se sente muito bem sossegadinha, quieta no seu canto, que fica feliz por ouvir e ver pessoas à sua volta por aí e se contenta com isso. Os grupos esgotam-me emocionalmente. Mas a minha casa está esquisita. Ainda no outro dia dei por mim a pensar como é que fazem as pessoas que vivem sozinhas e longe da família, por exemplo, para aguentar a falta de carinho físico (não é desse, vá, seriedade), os abraços ou as festinhas de quem nos quer mesmo bem. Depois até arregalei os olhos um bocado horrorizada a pensar que devia estar a começar a bater mesmo mal para pensar naquilo porque eu sou uma pessoa que gosta de guardar as distâncias físicas, mesmo de quem gosto mesmo, mesmo muito. Sou um bocado como aqueles bebés que fogem dos beijos ou limpam a cara a seguir, com a diferença que eu tenho mais vinte e tal anos em cima, por isso sou um coração de pedra. Mas a verdade é que aquilo continuou a preocupar-me durante dez ou vinte minutos. Parece então que há uma parte do meu coração que não está aqui, tente eu racionalizar isto como queira.
 
Porque a verdade é que eu contei os dias todos mentalmente desde que entrei no avião numa Lisboa chuvosa até chegar ao aeroporto da Portela novamente. E eram só 26. Mas passaram um a um, vagarosamente, de uma maneira que não costumam passar. E eu depois nem conseguia ver Family Guy, não achava piada nenhuma aquilo, e não conseguia comer crepes porque era o que fazíamos todos os sábados ao fim da tarde, nem conseguia sentar no pufe porque era o lugar dele. Eram coisas simples que eu evitava, sem grande drama, mas só porque me pareciam desconcertantes. Já está um pouquinho melhor, vi-o há pouco tempo, já não faz mal sentar no pufe.
 
Vi-o, fui radiosamente feliz, mas não estava em casa, mesmo estando com ele em Portugal. A sensação é sempre a do temporário, estou só de passagem, é pena não vires para casa comigo... Esta casa. Daqui. Que é nossa por alguma razão que eu ainda não consegui descortinar completamente e que continua a ser a minha casa mas que está meio errada. É que é possível, claro que é, mas eu não sei construir casas sozinha. Nunca construí sem ele. Por isso casa não é onde quer que ele esteja, mas definitivamente que ele tem que estar lá. É qualquer coisa que construímos os dois de raiz, onde temos rotinas tão aborrecidamente corriqueiras como beber chá a seguir ao jantar nas nossas canecas castanhas do Ikea, ou irmos dobrar e buscar a roupa seca à lavandaria, ou ver o New Girl com um crepe de chocolate no colo (o teu é com açucar. Branco, não mascavado, mesmo à gulosão).
 
Não sei muito bem agora como concluir isto porque eu não gosto de dramatizar. E esta falta de casa é temporária, vamo-nos ver tão regularmente para duas pessoas que estão a dois mil quilómetros uma da outra. E daqui a uns meses vamos construir outra casa de raiz, noutro sítio diferente de Bruxelas, diferente de Lisboa, diferente de Londres, talvez A casa, será? Não vale a pena gritar saudade aos quatro ventos, as coisas são como são e há quem esteja tão pior de saudades do que nós. Ainda assim, percebo agora o que a Helena uma vez disse, de como a pessoa que inventou o estrangeiro devia morrer.



S.


5 comentários:

  1. Bolas, S. ...

    Que bonito desabafo de amor.
    Afinal não sou a única que pensa e repensa, e pensa mais um bocadinho, e repensa ainda mais outro bocadão, em cada momento revolto de uma vida afectiva e física que teima em assombrar a consciência a todo o instante.
    Obrigado por partilhares as tuas inquietudes. Identifiquei-me muito com elas...

    T.

    ResponderEliminar
  2. Bolas, S. ...

    Que bonito desabafo de amor.
    Afinal não sou a única que pensa e repensa, e pensa mais um bocadinho, e repensa ainda mais outro bocadão, em cada momento revolto de uma vida afectiva e física que teima em assombrar a consciência a todo o instante.
    Obrigado por partilhares as tuas inquietudes. Identifiquei-me muito com elas...

    T.

    ResponderEliminar
  3. Eu penso e repenso e remoo ate quando está tudo bem, coisas que deviam ser deixadas sossegadas. Não tem mal, desde que não perturbe demasiado a nossa capacidade de ir vivendo bem.

    Às vezes quando escrevo desabafos mais pessoais tenho medo que as pessoas de quem gosto muito e que me leem interpretem mal e pensem que ando aqui a chorar pelos cantos, a emoção a rebentar pelos poros, mas não, eu tanto penso nisto da saudade como nos quilómetros que vou correr amanhã, ou na notícia que li há bocadinho ou naquela cena do filme que vi ontem.

    Gosto de remoer e sou feliz assim, o que é que se há-de fazer.

    ResponderEliminar
  4. Eu acho que casa é o sítio onde conseguimos fazer tudo mesmo com a luz apagada.

    ResponderEliminar
  5. Nesse caso viver num estúdio pequenino ajuda a que se torne "casa" mais rápido :)

    É uma boa definição, não consigo desprová-la.

    ResponderEliminar