sábado, 2 de março de 2013

Disney redimida

Por falar em representação de mulheres nos media: Disney. A Disney deve ser uma das marcas mais conhecidas e amadas no mundo inteiro. Há muito que deixou de ser apenas uma empresa de filmes de animação; desconfio mesmo que hoje em dia o filme anual de desenhos animados que a Disney lança seja apenas o pau de lenha com que atiça a enorme fogueira do seu sucesso. Ou seja, é apenas o que inicia uma nova explosão de peluches, bonecos, fatos de mascarar, copos, toalhas, canecas, pijamas, canetas, mochilas, babetes, legos, etc, etc. Toda a parafernália de merchandise que toda a gente que já visitou uma loja da Disney sabe. Um novo filme de animação gera também novos bonecos, diversões temáticas e desfiles para acrescentar em todo o parque que a Disney tem espalhado pelo mundo. Resumindo e concluindo, a Disney é uma mega-marca mundial que gera milhões e milhões todos os anos, e que é hoje muito mais do que os filmes.

E o que é facto é que a Disney deve ser das marcas mais bem-amadas deste mundo: não há pessoa que eu conheça que não goste dos filmes da Disney, que não olhe para aquele castelo branco sobre fundo azul com olhos sonhadores e um sorriso estúpido nos lábios, e que sinta uma nostalgia da infância a descer sobre si. Mesmo quando a pessoa em causa não cresceu com aqueles filmes; em Portugal, pelo menos, só as crianças de finais da década de 80 - eu incluída - é que cresceram a ver os filmes da Disney. Isso não impede que pessoas da geração dos meus pais amem os filmes da Disney menos do que nós. Só aqui está bem refletido o sucesso da Disney em associar-se com a própria ideia de infância: até pessoas que não a tiveram durante os seus anos de criança a associam fortemente a essa fase da vida. 

Eu, estando ciente de todo este poderio de marketing e da máquina geradora de milhões, culpada me confesso: adoro a Disney. A minha evolução nos anos foi proporcional com o número de cassetes de vídeo da Disney que eu tinha, passei boas horas da minha infância colada a um ecrã a ver os mesmos filmes repetidamente, a primeira máscara de Carnaval que me lembro era da Branca de Neve, o primeiro filme que vi no cinema foi o Rei Leão, sei-lhe as falas todas de cor, e continuei a acompanhar os filmes da Disney - ainda que intermitentemente - durante a minha adolescência e idade adulta. Apetece-me dar gritinhos de histeria sempre que entro numa loja Disney e começo a ver peluches do Bambi, da Nala, do Nemo, do Timon, da Marie, do Sebastião. O meu primeiro gato chamava-se Tulose em honra ao gato mais rebelde dos Aristogatos e - confesso com vergonha - fiz um dia uma jura de quando tiver um filho (e for rica, só pode) só o vestir com as roupas mais-que-fofinhas para recém-nascido que se vendem nas lojas Disney. Entretanto, e em minha defesa, voltei a pôr os pés na terra e deixei-me de parvoíces. Acho que o facto de se pôr o pé fora dessas malditas lojas ajuda; aquilo a modos que droga uma pessoa e faz-nos alucinar e jurar estas coisas absurdas.

Entretanto, comecei a ler sobre estas coisas da representação de mulheres na TV, nos filmes, nas revistas, nos anúncios, e a chama-Disney foi-se apagando um bocado. Numa rápida pesquisa mental sobre as histórias Disney duas personagens (e aqui nem são personagens-tipo, são mesmo personagens dos filmes, tal e qual) aparecem distintivamente: a princesa em apuros e o príncipe encantado. Convenhamos: esta é uma dualidade que está tão enraizada na cultura ocidental que até na lógica das relações entre os dois géneros ela se entranha. Não foi a Disney que a inventou, é bom que seja esclarecido. Cheira-me que esta dualidade vem do tempo dos trovadores, dos castelos e das conquistas, dos reis, príncipes, cavaleiros e princesas, dos vestidos longos de veludo e do tempo das trevas (vulga Idade Média. Uma professora de história do liceu tentou provar-nos que a Idade Média não tinha nada sido idade das trevas como por vezes é apelidada, que não tinha nada sido uma época de estagnação ou mesmo de retrocesso no conhecimento, isto por causa dos mosteiros e dos monges que copiavam os livros e porque tinha sido na Idade Média que se inventaram os óculos (??). A mim nunca me convenceu. Entalada entre a época Clássica dos gregos e romanos e o Renascimento, com as suas descobertas do mundo, da matemática, da física e da astronomia, a invenção dos óculos torna-se risível.). Vem da altura em que os homens e as mulheres tinham papéis muito bem distintos e definidos, segregados, e com diferenças extremamente exacerbadas. As mulheres queriam-se passivas, dóceis, puras, os homens queriam-se valentes, ativos, corajosos. O casamento era a salvação da mulher e a sua máxima aspiração; daí que todos os contos de fadas acabem dessa forma, o final feliz que não é mais que a abençoada paz matrimonial.

Pensem em todas as personagens femininas disneyanas: essa tropa de princesas de sorriso sonso e muito cor-de-rosa que invade os corredores das lojas de brinquedos, secção menina. Personagens tão unidimensionais que nem a grande diversidade de cor de cabelo, cor de pele e vestidos consegue disfarçar o facto de serem todas uma só. O argumento que os defensores da Disney atiram é que filmes como a Branca de Neve e os Sete Anões, a Bela Adormecida, a Cinderella e afins são todos muito antigos, feitos numa época em que as mulheres tinham outros deveres e a única expectativa era que agradassem ao seu futuro marido, fossem boazinhas e não levantassem a voz. Hoje os filmes da Disney já são um bocadinho diferentes, já há Mulans que salvam a China e Pocahontas que ficam na sua terra junto do seu povo enquanto o seu amor parte para Inglaterra. 

Certo, é verdade que a Disney tem as suas heroínas que fogem ao estereótipo da dama indefesa. Mas é das suas princesas que a marca mais lucro tira. Ainda há poucos anos a Disney criou as "Princesas Disney", um sub-merchandising que junta todas as princesas de personalidade mais diluída e as transforma em "amigas" das meninas apanhadas de surpresa, sob a forma de diários (o que elas possam ter de interessante para contar sobre as suas vidas pós-casamento-com-príncipe-encantado supera-me), fatos de Carnaval, roupa cheia de lantejoulas, kits de maquilhagem, varinhas mágicas carregadas de brilhantes, muita boneca tipo Barbie, e muito, muito cor-de-rosa. Isto, muito honestamente, faz-me ter pavor perante a ideia de vir a ter uma filha.


E a Ariel é quem mais odeio, porra. A gaja é uma sereia e mete-se em drogas para ficar humana, só porque um homem com quem ela nunca falou na vida é giro e tal. E depois abandona o seu mundo, o pai, as irmãs e os amigos para ir viver com o camafeu. A Pequena Sereia: a ensinar desde 1989 a todas as meninas que por um homem se deve abandonar não só tudo o que temos e quem mais amamos mas também - e literalmente - QUEM somos. Ela era uma sereia e transformou-se em humana para poder viver com o seu amor. Todo o sacrifício é pequeno para agradar a um homem. 

Mesmo tendo em conta a Mulan, a tal heroína da Disney que se disfarçou de homem para tomar o lugar do pai doente no exército e acabou por salvar a vida do seu capitão e da própria China, já depois de ter sido descoberta como mulher. Bad-ass, sim senhora. Dizem-me também que o Entrelaçados é um bocadinho assim, uma espécie de twist ao conto da Rapunzel e cuja personagem principal não é a típica princesa submissa e dócil. Ou o Rei Leão II, cuja história se centra na cria do dito cujo, a Kiara, e também é uma princesa rebelde. Mas ainda assim, há sempre qualquer coisa de repetitivo nestas histórias: tudo tem que acabar num apaixonamento e consequente casamento. Ou seja, não importa o quão rebelde ou ousada a personagem feminina tenha sido, a sua história só é validada na medida em que acaba bem - e aqui o acabar bem é a eterna felicidade conjugal. Sabe a pouco. Reparem que com personagens principais masculinas isto não é assim; o Toy Story, por exemplo, não tem por base nenhum apaixonamento nem casamento. É apenas a história de dois brinquedos rivais e depois amigos e a fidelidade ao seu dono.




Foi por isso que quando hoje me sentei finalmente a ver o Brave (ou devo antes dizer "a" Brave), o último filme animado da Disney, e aquilo ia superando as expectativas que eu tinha para filme-de-Disney-que-quebra-os-estereótipos-de-personagem-femina a cada minuto que a fita rolava, eu decidi exclamar: "Disney, estás perdoada!". E porque este post já vai longo e o meu rant sobre a Disney foi mais comprido do que eu esperava, aproveito para inaugurar uma nova rubrica chamada "Media, é assim mesmo". O primeiro post é sobre a Brave e vem já, já a seguir. Tenho mais uns quantos já esboçados mas ideias e sugestões sobre personagens, filmes ou programas são muito benvindas ;)




S.  

4 comentários:

  1. Também já li algures essa teoria de que a idade média afinal se calhar não foi a idade das trevas que nos impingiram nos livros de história. Alguma coisa a ver com os monges copistas, acho eu, que fizeram um grande trabalho de preservar os textos antigos a que naquele tempo só a Igreja tinha acesso.

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  2. Sim, acho que esse era o argumento da tal professora. Sempre me pareceu poucochinho, mesmo assim. Se bem que eu, apesar de fascinada e ter muito interesse por História, não sou nenhuma especialista, e sei que as impressões do senso comum (como essa da Idade das Trevas) estão muitas vezes erradas. Admito que possa haver aí mais qualquer na Idade Média do que os leigos conhecem.

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  3. Apesar de concordar contigo em relação à maioria das princesas (odeio a cinderela e a branca de neve), tenho um fraquinho pela Bela. Por ter cabelo castanho, por adorar ler e por ser diferente.

    A parte de acabar com o tal do monstro que fica bem giro (é o mais hot do universo disney para mim) é quase secundária =)

    Fora isso, as minhas personagens favoritas são mesmo a Bela pelos motivos já citados, a Mégara (eu tenho aquele sentido de humor) e a Rapunzel (super non sense e disparatada).

    A parte dos homens não interessa tanto quando nos identificamos com as personagens =).

    Fora isso, a ideia de encontrar alguém que amamos é bem apelativa e não se cinge apenas pelo "final feliz". Não acho um mau sonho para se ter. Desde que não fique em risto a nossa individualidade.

    Beijinho. Conheci hoje o blog e adorei.

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  4. Não seria um mau sonho se fosse um entre muitos; o problema é que é sempre "O" sonho possível para as personagens femininas da Disney. Raramente têm personalidade própria, aspirações individuais, vida própria, vá. E nas piores, como a Cinderela, Branca de Neve e Bela Adormecida, há toda aquela lógica do príncipe que vem salvar a donzela, que ainda está demasiado entranhada nas lógicas das relações da vida real. Mas sim, para ser justa, a Disney tem vindo a diversificar as suas heroínas mais recentemente, o que torna muito mais interessante e bem mais complexos os seus filmes. A existência da Brave é uma grande lufada de ar fresco, especialmente pelo facto de não meter príncipes encantados pelo meio.

    E acabei de reparar que o meu conhecimento da Disney anda escasso, não faço ideia quem é a Mégara e ainda não vi a Rapunzel :/

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