Há vários anos que uma das minhas viagens de sonho é ir à Escócia. Este ano, e por uma agradável coincidência, tive que me deslocar várias vezes a esta região em trabalho. Fiquei maravilhada com Edimburgo, que em nada desapontou e cuja aura de mistério e magia me lançaram num remoinho de lembranças de leituras passadas, visitei Glasgow várias vezes mas um bocado de fugida, e vi da janela minúscula de um avião as montanhas, os lagos e o verde que povoam a imaginação quando se pensa em Escócia.
No entanto, a minha viagem de sonho é muito mais do que isto. Quero conhecer esta parte do UK de uma ponta a outra, quero ir a Inverness, a Aberdeen, à Ilha de Skye, visitar os castelos assombrados, caminhar à beira dos lochs, andar no comboio que diz que tem as melhores vistas daquele campo, palmilhar aquilo de uma ponta à outra. Só assim arrumarei a Escócia no compartimento mental dos sonhos realizados.
Entretanto vou-me apercebendo que aquilo tem mesmo uma identidade própria e singular, diferente de (pelo menos) Londres e arredores, ainda que não sinta que estou noutro lado que não o UK. É complicado, para uma pessoa de fora, entender completamente os meandros da identidade de um povo, e por isso é sempre muito interessante quando se tem oportunidade de falar com insiders. Para além de uma ou outra conversa que já tive com o boss - que por acaso é escocês - tive no outro dia uma conversa curiosa com um senhor em Glasgow, que dizia que se irritava quando as pessoas diziam que o seu inglês era muito bom; "Eu não falo inglês", dizia ele, "Falo escocês, o que não é de todo a mesma coisa". Eu não concordo, inglês é a língua, o que há são depois as variantes. Ninguém diz que fala americano, assim como não se diz que se fala brasileiro; o que existe é o inglês escocês, o inglês indiano, o inglês irlandês, e por aí fora. Português europeu e português do Brasil. Mas não deixa de ser extremamente interessante a veemência com que o senhor disse aquilo, e a forma como ele diferencia a língua que fala, da língua que falam grande parte dos seus concidadãos. Durante a licenciatura, quando fiz o minor em Estudos Ingleses, um dos livros de leitura versava precisamente sobre a identidade dos vários povos das ilhas britânicas. Fascinou-me - e continua a fascinar-me - a complexidade das identidades nacionais dos quatro países. O que é ser britânico? E o que é ser inglês, escocês, welsh? Que um escocês não é inglês mas é britânico (ou pode nem se sentir tal). Mas que um inglês entende Englishness e Britishness como sendo a mesma coisa, e que por vezes um escocês se identifica mais como europeu do que como britânico. Fascina-me profundamente, isto das identidades nacionais. Se não tivesse seguido pela via do género, na minha dissertação, tenho a certeza que teria enveredado por aqui. O referendo para perguntar aos escoceses se querem uma Escócia independente já tem data marcada para setembro de 2014, e eu mal posso esperar pelo resultado. Seria algo inédito nos nossos dias, e, caso vença o "sim", muitas questões ficariam em aberto: Teria a Escócia que se candidatar novamente à UE? Manteria a libra esterlina? Como seria o estatuto dos seus cidadãos? Teriam que pedir visto para visitar outro país europeu? Desatará a abrir embaixadas escocesas pelo mundo fora? É incrivelmente interessante porque abriria um precedente nesta Europa cujas regiões querem mais e mais autonomia: a Catalunha, o Norte de Itália, o País Basco, a Bretanha, a Flandres, a Irlanda do Norte...
Mas divago. Eu queria era vir para aqui sonhar um bocadinho e não meter-me numa discussão sobre nacionalidades.
Dizia eu que a minha viagem de sonho à Escócia é muito mais do que Edimburgo ou Glasgow. Há outra parte crucial, para além de a palmilhar de uma ponta à outra, que é o meio para lá chegar: obrigatoriamente partindo de King's Cross de comboio, atravessando Inglaterra toda até à região nortenha do UK. Para vislumbrar o campo inglês, uma ou outra aldeia lá ao fundo, e ver a paisagem a mudar de forma.
Esta semana, foi mesmo isso que aconteceu. Não parti de King's Cross mas de London Euston (uma vez que para Edimburgo é que eles partem de KC e eu fui para Glasgow) e a atenção à paisagem foi reduzida uma vez que ia a trabalhar (benditos comboios com wi-fi) mas deu sem dúvida para maravilhar os sentidos e espicaçar a curiosidade. Se eu pensava que tal viagem me iria apaziguar o desejo de conhecer a Escócia, enganei-me profundamente; se há coisa que fez foi tornar mais obsessiva esta vontade.
A viagem dura cinco horas e, a cerca de hora e meia do fim, as planícies verdes inglesas começam a dar lugar a um outro tipo de paisagem bem diferente:
Olhei para o lado e até me assustei com o que passava do outro lado da janela: montes imensos, arredondados e verdes, florestas e vales, pelos quais o comboio passava, indiferente e seguindo o seu curso. Começou-me a dar um bocado de raiva por a máquina fotográfica (ou vulgo telemóvel) não estar à altura para captar a beleza do que os meus olhos viam; e convenhamos que a janela de um comboio em movimento não ajuda. Às tantas desisti e decidi apoiar-me apenas nos olhos e na memória para guardar estas vistas.
Quando parámos em Carlisle e eu vi escrito por debaixo da placa da estação a expressão "Lake District" é que me ocorreu que aquilo ainda não era a Escócia mas sim uma região que já tinha ouvido falar por alto, pautada por lagos (pois), florestas e de grande beleza natural.
E foi então que a minha lista de "sítios a visitar antes de morrer" adquiriu mais um nome. No fundo, no fundo, o que eu quero é palmilhar o Reino Unido de uma ponta à outra, que aquilo tem tanto sítio para visitar, tanto castelo, manor, palácio, aldeia, vila e parque natural que uma vida inteira não chegava para conhecer como deve ser.
Entretanto comecei a chegar à Escócia. Uma vez que as linhas férreas não têm placas de indicação, como é que eu descobri? Muito simples:
Neve!
Quilómetros e quilómetros de manto branco a tapar aquelas montanhas e aqueles campos, que desconfio tenham outro encanto quando a neve derrete. Mas assim, de uma perspetiva quentinha e confortável, me pareceram muito bonitos na mesma.
Ainda embriagada pelo que tinha visto na viagem, surripiei da receção do hotel uns três ou quatro panfletos de excursões pela Escócia. Só para me darem umas ideias... Entre eles havia uma revista grátis totalmente devotada a roteiros a pé pela região. Páginas e páginas com percursos de vários quilómetros, com respetivos mapas, distâncias e fotos do que se pode ver em cada um. Fiquei pasmada com a devoção que aquele povo parece ter pelas paisagens incrivelmente belas com que a natureza os brindou. De notar que este é um país onde em meados de março apanhei neve e ventos gelados, e onde no inverno anoitece às três da tarde. E não é plano, de todo. Nada convidativo a atividades exteriores, portanto.
No meio da coleção, encontrei o que andava à procura: excursões de um, dois e três dias por sítios emblemáticos da Escócia. Ouro sobre azul: são excursões pequeninas, em carrinhas de 7/9 lugares, muito personalizadas e com guias apaixonados pelo que fazem. Desde a experiência na Normandia, onde fizemos uma destas excursões muito pessoais pelas praias e cemitérios de guerra, que acredito ser a melhor maneira de conhecer verdadeiramente uma região. Alugar um carro é aventureiro mas para quando se tem muito tempo e, arrisco, dinheiro. Há que contar com muito desvio, enganos no caminho, fails em aldeias ou vistas que não são assim tão bonitas porque na foto pareciam diferentes. Partir com um guia é ter a certeza do que se vai ver, de que vamos visitar o que há de mais bonito e historicamente relevante. E além disso, é completamente diferente acompanhar as vistas com relatos apaixonados e cheios de detalhes que só quem conhece pode dar.
Trouxe o panfleto das excursões. O grupo chama-se Timberbush Tours e é exatamente o que pretendo no dia em que a roadtrip pela Escócia acontecer. Espantou-me os preços em conta (excursões de um dia inteiro por volta de £30 por pessoa) e a diversidade de percursos por onde escolher. Comecei logo a maquinar fazer dela a nossa escapatória deste verão, mas por mais que deseje esta viagem sei que não vou poder privar-me de verdadeiro calor e sol uma vez no ano e ir mais para o norte em vez de rumar ao sul. Este inverno extraordinariamente rigoroso não me deixa sentir bem em desperdiçar a semana estival anual numa viagem à Escócia. Cá ficará a marinar por mais uns aninhos. Entretanto, vou-me babando com as fotos do folheto.
S.
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